Uma questão de atitude

PorLígia Dias Fonseca,29 mai 2023 8:01

​O fim de semana prologado no município da Praia foi de muitos eventos e animação. O tradicional festival da Gamboa encheu a cidade de muitos sons musicais durante dois dias e, segundo os que lá estiveram, valeu a pena.

Há questões que terão de ser reavaliadas na próxima edição, desde logo a localização deste festival, uma vez que a dimensão do mesmo já não se mostra compatível com a sua realização no meio da cidade. Estamos certos que a autoridade municipal será capaz de ouvir o apelo do Presidente da República e encontrar uma solução que dê satisfação a todos, mantendo a alegria e o desfilar de talentos consagrados e dando oportunidades às revelações, correspondendo ao que os jovens querem e respeitando a tranquilidade dos que habitam na cidade. Um desafio para o qual todos os munícipes são chamados a dar opinião, apresentar propostas de forma a se encontrar a solução mais consensual possível. Festejar o município tem de ser motivo de satisfação para todos. A festa é de todos nós, de todas as idades. Que seja sempre uma grande festa.

A Feira do Empreendedo­rismo e Fomento Empresarial (FEFE) também marcou a sua presença durante três dias, na Praia. Tive oportunidade de visitar a feira na tarde de sexta-feira. Fiquei impressionada com o número de novas empresas de jovens e em áreas muito diversas, desde cuidados de saúde e bem-estar até trabalhos de construção civil, energias renováveis, decoração, artesanato, enfim… a imaginação e ousadia da nossa juventude em pleno funcionamento. Percebi que a política do empreendedorismo tão cara e fomentada pelo governo em exercício está a produzir efeitos.

Nessa tarde, na programação da FEFE estava uma conversa aberta com o Vice-Primeiro Ministro e Ministro das Finanças, Dr. Olavo Correia (VPM), moderada pela minha amiga Eunice Mascarenhas, Presidente da AMES (Associação das Mulheres Empresárias de Santiago). Não resisti e fui assistir.

Enquanto ouvia o VPM respondendo às questões colocadas quer pela Dra. Eunice quer pela plateia, não pude deixar de pensar que há muito tempo não ouvia um político com responsabilidades de governação falar com tanta paixão sobre o desenvolvimento do país e a sua confiança na capacidade dos jovens de empreender e transformar os desafios em oportunidades.

O reconhecimento de que há negócios que só podem prosperar se tivermos um mercado maior (a questão da escala) e como para isso os transportes marítimos e aéreos são fundamentais, foi feito sem tabus nem titubeações, admitindo o VPM que garantir transportes regulares que liguem todas as ilhas e também o país com o exterior é da maior importância e que o governo continua a trabalhar na concretização desse objetivo.

O apoio aos jovens empreendedores sem qualquer tipo de preconceito foi pedido pelo VPM, chamando atenção que um pequeno negócio muitas vezes gera dois, três postos de trabalho que têm impacto na vida dessas famílias. E esta melhoria de vida, nem que seja de uma só família, é uma coisa boa e deve ser prestigiada por todos. Fez questão de afirmar que é essa consciência de que tudo o que ajuda a melhorar a vida das pessoas deve ser incentivado e acarinhado que o leva a estar com o mesmo sentido de estado tanto na inauguração de um pequeno negócio local, como na abertura de uma grande fábrica ou estabelecimento hoteleiro.

Uma ideia muito replicada nesta conversa foi sobre a mudança de atitude. Primeiro é preciso que todos nós percebamos que não há dinheiro público, mas sim dinheiro que vem de todos nós, dos impostos que cada um paga, afirmou o VPM. Quando se pede um apoio ou subsídio ao Estado, temos de compreender que o dinheiro que será afetado a esse apoio é dinheiro de veio do bolso de cada um dos contribuintes. Continuou o VPM, na explanação desta ideia dizendo que a compreensão deste facto ajudará os cidadãos a dar valor a tudo o que os poderes públicos fazem: escolas, estradas, hospitais, serviços públicos. Estas infraestruturas representam o trabalho dos contribuintes. Quando são vandalizadas, não conservadas, é o dinheiro dos contribuintes que está a ser desperdiçado.

Ouvindo o VPM nesta sua proposta de mudança de atitudes no sentido de se assumir que ser funcionário público é estar ao serviço das pessoas, que são os contribuintes que pagam todo o serviço público, não pude deixar de participar na conversa e de dizer que essa mudança de atitude começa com a educação e que tem de ser ensinada nas escolas desde muito cedo. Sugeri até que ao lado do VPM teria de estar também o Ministro da Educação. Quando entramos nas nossas escolas e vemos o chão cheio de manchas pretas de pastilhas elásticas cuspidas pelos alunos e demais utentes das escolas, quando vemos escolas e suas estruturas e equipamentos destruídos e roubados, isso representa um total alheamento da comunidade relativamente a estes princípios do serviço público e dos bens públicos como sendo propriedade de todos nós e não de entes misteriosos. Mas a educação não se dá apenas nas escolas, começa nas nossas famílias e na comunidade. Criar no cidadão esta atitude de que o que é público é para ser preservado, protegido, conservado, que o dinheiro público vem do trabalho de cada cidadão contribuinte, que ser funcionário público é ser um servidor, exige que quem educa, quem ensina, quem serve, tenha também essa noção das coisas. A mudança de atitude capaz de dar ao cidadão as ferramentas para o empreendedorismo não pode começar aos 16, 18 ou 30 anos de idade. Tem de começar quando ensinamos uma criança a dizer por favor, obrigado, a partilhar os seus brinquedos, a arrumar o local de convívio antes de se ir embora, a não atirar copos, papéis e garrafas para o chão durante um festival.

A questão dos impostos e a obrigação de todos pagarem de acordo com os rendimentos auferidos e pagarem com a consciência de que devem pagar, faz parte também desta proposta de mudança de atitudes reivindicada pelo VPM como necessária para o desenvolvimento de Cabo Verde. Com surpresa, ouvimos o VPM dizer que é contra os regimes fiscais extraordinários. Surpresa porque todo o nosso sistema de captação de investimento assenta nesses regimes especiais concedidos ao abrigo de convenções de estabelecimentos, centros internacionais de negócios, zonas económicas especiais, etc. Se para captar investimento temos de recorrer aos regimes excecionais isentando ou dando taxas especiais de impostos, também se justifica que para incentivar a formalização dos negócios e o início de atividade de pequenos negócios se recorra ao REMPE (Regime especial para as pequenas e médias empresas). Não concordo com a qualificação do VPM de que este seja um regime dos pobres. Para mim é, sim, um regime para quem está a iniciar a atividade. O sucesso do REMPE dá-se cada vez que um negócio aumenta o seu volume e saí deste regime excecional entrando no regime fiscal normal. Por isso tenho defendido que nenhuma atividade económica deve ser impeditiva deste regime, como acontece na lei em vigor. Se um jovem quer abrir o seu escritório de advocacia, ou criar uma empresa de cuidados de saúde, não deve ficar impossibilitado de recorrer ao REMPE. O sucesso desse jovem começará a ganhar forma quando o seu volume de negócios crescer e perceber as vantagens de entrar no regime de contabilidade organizada. Se o REMPE é um regime dos pobres, então que se crie um regime de apoio efetivo ao início de atividade económica.

No fim deste evento pensei: que a paixão pelo desenvolvimento e confiança na capacidade dos jovens de superar desafios continue a mover o nosso responsável pelas finanças, fomento empresarial e economia digital fazendo-o olhar para a educação, setor onde as verdadeiras mudanças sociais podem germinar e o futuro dos jovens assenta, estabelecendo um regime de financiamento ao ensino superior, entre outras medidas. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1121 de 24 de Maio de 2023.

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Autoria:Lígia Dias Fonseca,29 mai 2023 8:01

Editado porAndre Amaral  em  29 mai 2023 8:01

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