Há onze famílias a viver na zona marítima da Preguiça. Habitam nos antigos armazéns da alfândega, em condições precárias. Ganham o sustento do dia-a-dia através da pesca tradicional. Os homens saem para o mar, várias vezes, da manhã à tarde. As mulheres aguardam cada chegada. São elas que percorrem os vales e as montanhas de São Nicolau para vender o peixe. É uma existência no limite e não apenas porque moram perto das escarpas ingremes da baía de São Jorge.
A natureza demográfica da Preguiça impôs o primeiro objectivo do projecto: melhorar a condição de vida dos pescadores. E uma intervenção prioritária: o porto. Mas estas foram as ideias iniciais. Entretanto, o projecto evoluiu em quatro dias. Mudou paradigmas e intenções. Procurou soluções que trouxessem sustentabilidade. A resposta foi encontrada no turismo e na transformação de uma zona em pedaços num espaço atractivo. É o laboratório da Preguiça
Em parceria e sob coordenação da ONG Atelier Mar e com o M_EIA [Instituto Universitário de Arte, Tecnologia e Cultura], o Departamento de Arquitectura da Universidade de Coimbra [DARQ] e a Cátedra UNESCO em Diálogo Intercultural em Patrimónios de Influência Portuguesa [Patrimónios], comprometeram-se com o desenvolvimento de uma acção integrada de planeamento estratégico, desenho urbano e arquitectura para a Vila da Preguiça.
A Patrimónios e o DARQ responderam ao desafio com uma equipa constituída por 3 professores e 9 alunos. A estes junta-se um professor e uma aluna do M_EIA. O trabalho tem como prazo de desenvolvimento o ano-lectivo 2018-2019. Começou em finais de Setembro, prevendo-se a entrega em Junho, reservando-se Julho para a conversão de alguns elementos do formato académico ao de plano e/ou projecto em termos e suportes que permitam a sua aprovação e implementação administrativas e em obra.
A evolução do Laboratório da Preguiça
Se no início o plano era realojar as famílias que ocuparam os edifícios públicos e usar essas casas para outros fins, hoje o projecto prevê a manutenção dessas famílias na zona ribeirinha da Preguiça – seja em casas reabilitadas seja em casas construídas de raiz – e o desenvolvimento sustentável de toda a zona, não só melhorando as condições do porto como também com uma forte aposta no turismo.
O que mudou entretanto? O contacto com a realidade. Durante quatro dias, alunos e professores do M_EIA e do DARQ estiveram na Preguiça em contacto directo com a população. Fizeram-se levantamentos porta-a-porta, mediram-se áreas, observou-se a entrada e saída dos botes do porto de pesca, fotografou-se cada milímetro da localidade, desenhou-se, andaram-se quilómetros.
A casa da pintora e escritora Leopoldina Barreto serviu de quartel-general. Foi nessas mesas, sobre plantas à escala 1:2000, que se abriram estradas, construíram-se piscinas naturais, acrescentaram-se guinchos e elevadores ao porto de pesca, remodelaram-se habitações, plantaram-se árvores, instalaram-se equipamentos sociais e de lazer. A nova Preguiça começa a tomar forma, para já no papel.
Afinal, como vai ser a Preguiça do futuro? Podemos resumi-la em oito partes: um plano de pormenor que tem como objectivo estabelecer a forma e as regras de ocupação do solo; o espaço público que será requalificado, num programa de intervenção que incluirá um novo arruamento paralelo à pequena marginal existente; a renovação do porto que terá como focos o turismo (principalmente a pesca desportiva) e a pesca artesanal, e que incluirá um guincho de movimentação de embarcações e plataforma elevatória para transportar cargas; uma pequena indústria de secagem e salga de peixe na parte de cima da vila, com o objectivo principal de criar um produto de nicho; a piscina atlântica, uma infra-estrutura de carácter público para servir os turistas e, principalmente, os habitantes da ilha; o Laboratório da Preguiça, que será instalado na antiga alfândega, terá um centro interpretativo, gabinete técnico e terá a recepção e serviço de reservas para o alojamento local; o centro multiusos, que sairá da recuperação de dois dos mais relevantes edifícios da zona marginal e que será um espaço de convívio e de oficinas para potencializar a produção local; e a parte habitacional, uma parte será reabilitada, a outra construída de raiz.
“Parece-me que a Preguiça tem sentido para todos nós”, diz Leão Lopes, Reitor do M_EIA, ao Expresso das Ilhas, “porque é uma ideia que está encravada desde sempre. Sempre se falou na Preguiça. Sempre se disse que é preciso intervir. Cada câmara que é eleita tem a Preguiça no seu programa e achamos que poderia ser um momento de reunir as contribuições que têm sido produzidas à volta da reabilitação/reintegração da povoação na economia da ilha e oferecer a possibilidade de produzir um plano, consistente, credível sob o ponto de vista técnico e científico, que possa estimular os governos locais e centrais a arrancar e a investir seriamente nesta comunidade”.
Um mar de possibilidades
“Há aqui várias oportunidades”, sublinha Walter Rossa, professor catedrático do DARQ, “para as pessoas da terra e para Cabo Verde. Sempre que olhamos para o Índice de Desenvolvimento Humano, temos Portugal e depois Cabo Verde. Portugal e Cabo Verde são os únicos países da CPLP que não têm riquezas, o que demonstra que a riqueza dos países são as pessoas e não o que está debaixo de terra. Acho que é uma oportunidade para testar a capacidade que Cabo Verde tem vindo a demonstrar. De ir, com pequenos passos, construindo um país cada vez mais interessante para as pessoas que cá vivem e que é construído pelos nacionais, pela sua capacidade própria”.
“O caso da Preguiça”, continua o docente, que também investiga e desenvolve acções de cooperação com foco nas relações entre património e ordenamento do território, “é uma coisa preguiçosamente adormecida no tempo. O que estamos a fazer é um salto. É uma vila que fica em estado comatoso com a revolução industrial e queremos ir buscar as pontas soltas que ficaram dessa história e continuá-las. Vamos pegar nas coisas que ficaram descontinuadas no tempo e transformá-las numa realidade contemporânea”. No fundo, usar o património para o desenvolvimento. “Não queremos preservar apenas por preservar. Queremos preservar para viver melhor, para demonstrar que o património mais importante são as pessoas”.
A estadia em Cabo Verde foi determinante para que os estudantes que nunca tinham tido contacto directo com realidades africanas ou mesmo extra-europeias, começassem a sentir as diferenças e especificidades. “As escolas não têm respondido muito bem ao desafio que é colocar junto dos estudantes o entendimento da arquitectura como um serviço público e não apenas obra de autor. Temos serviços públicos de justiça, saúde, ensino e devíamos ter mais”, refere Walter Rossa. “Se ler a Declaração dos Direitos do Homem, verá que o habitat está lá inscrito. Estamos a chegar a um ponto em que os arquitectos vão ser chamados a representar um papel fundamental num serviço público de arquitectura que consubstancie um conjunto de direitos humanos. Penso que é muito interessante lançar este desafio e haver alunos que correspondem. E dedicam-se. Daí este investimento”.
Pesca artesanal, património, turismo, desenvolvimento. As peças começam a encaixar e o que parecia um quebra-cabeças complicado revela-se um puzzle onde tudo tem o seu lugar. Ou como resume o professor de Coimbra, sustentabilidade não é mais do que construir infra-estruturas para as pessoas que são tão boas, que os outros também querem visitar.
“O problema do turismo sustentável é que às vezes as coisas transformam-se em quimeras complicadíssimas. O que leva uma pessoa a fazer turismo? Essa para mim é a pergunta base”, diz Walter Rossa. “A autenticidade é o que está aqui em questão. Mas, eu quero desenvolvimento, não quero congelar as pessoas no tempo. Por isso, tenho de fazer intervenções que não são dirigidas ao turismo, são dirigidas às pessoas. O turismo cultural deve existir baseado na curiosidade que as pessoas têm de usufruir experiências positivas que os locais têm. Isso faz toda a diferença. Temos de perceber que património é desenvolvimento e o turismo é uma alavanca fundamental, mas pode ser predador e é com isso que temos de ter cuidado”.
As rodas da engrenagem já começaram a funcionar. E a população agora está na expectativa. “Essas expectativas têm de ser muito bem geridas”, avisa Leão Lopes. “Costumamos sugerir que as instituições eleitas tenham cuidado com o seu discurso junto das famílias. Nós somos ONG, somos entidade académica, temos outro tipo de discurso e outro tipo de cuidado. Nós não criámos expectativas de uma forma deliberada. O que é que fazemos? Estimulamos as famílias e dizemos-lhes que somos parceiros, independentemente dos programas políticos que possam existir. A partir desse crédito que nos dão, ganhamos alguma legitimidade junto das instituições do Estado e fazemos a ponte no terreno. É isso que dá sentido ao nosso trabalho”.
“Pela minha experiência internacional”, continua Walter Rossa, “as decisões devem ser tomadas o mais próximo dos interessados. No fundo, somos parceiros do município enquanto o município entender, como nós, que está ao serviço da comunidade. Enquanto for assim, somos parceiros. Porque somos sempre garantidamente parceiros da população, é por isso que estamos cá. Quando isso é entendido pelas autoridades públicas, as coisas correm maravilhosamente”.
“Desde que se lançou a ideia de uma intervenção conjunta que houve um bom acolhimento”, saliente Leão Lopes. “Entretanto, as coisas atrasaram um bocado, as coisas nem sempre correm ao nosso ritmo. Felizmente que no caso da Preguiça as coisas precipitaram-se por incentivo da ministra das infra-estruturas. Já estamos aqui, já arrancámos e acho que não vamos parar. Enquanto ONG, Atelier Mar, como é nossa tradição, não vamos afrouxar, porque já temos um compromisso moral, já demos a cara por esta comunidade. Esperamos que as entidades eleitas correspondam e aproveitem esta dinâmica que inaugurámos desde que estamos aqui”.
Se tudo correr conforme o planeado, as primeiras obras começarão ainda durante 2019. Depois, a Preguiça vai ser aquilo que a comunidade local quiser. “Nós colocamos um desafio a nós próprios e agora vamos transferir este desafio, sob a forma de propostas, para a comunidade local. Depois vamos ver quais são os desafios que a comunidade local coloca às nossas propostas”, conclui Walter Rossa. “Com certeza que isto não vai ficar na mesma. E espero que fique melhor”.
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 890 de 19 de Dezembro de 2018.