
A maior embaixadora da música cabo-verdiana não poderia ser uma pessoa mais simples. Nasceu no Mindelo, sem mordomias, a 27 de Agosto de 1941. Filha da Dona Joana, uma cozinheira de mão cheia e de Nhô Justino da Cruz, tocador de viola, violão e cavaquinho.
Acompanhada por Lela, um dos seus quatro irmãos, começou a carreira na sua pequena ilha mas, que lhe traria uma fama que nunca almejou. Era feliz com o seu pequeno público que a aplaudia nos bares e hotéis da cidade e ofereciam mais um grogue para que ela cantasse mais uma morna.
Desses palcos para os do mundo, perdeu, com certeza, as contas aos carimbos no passaporte mas, não perdeu a simplicidade que lhe era característica na forma de falar, de lidar com as pessoas, sem cerimónias sem decoros exagerados, simplesmente a Cize. Uma Diva que gostava de anéis de ouro, de ter as unhas sempre arranjadas mas, que nunca gostou de sapatos e talvez por isso tenha mantido os pés bem assentes na terra, apesar da sua grandiosidade e reconhecimento pelos vários cantos e recantos do mundo por onde já andou.
"Tenho os pés cheios de calos" disse tranquilamente a um jornalista do ‘I', diário português. Quiseram sobrevalorizar o facto de cantar descalça divulgando que seria em solidariedade às mulheres e crianças pobres do seu país. Cesária Évora poderia ter aproveitado o protagonismo mas, desmentiu. "Canto descalça porque gosto", afirmou sem rodeios.
" Nunca gostei de sapatos na minha terra, não ia ser no estrangeiro que iria passar a usar. Faça frio ou calor ando sempre de chinelos" acrescentou a um jornalista da Lusa a quem também confessou não gostar de dar entrevistas. "As perguntas são sempre as mesmas. É repetitivo. Fico chateada mas, depois acabo por dar".
Família
A sua melhor amiga foi a sua mãe. Dona Joana que faleceu em 1999, um dos momentos assumidamente mais tristes de sua vida. Seria portanto, em Ribeira da Torre, Santo Antão, onde nasceu a sua mãe, o espectáculo em comemoração a este septuagésimo aniversário, com músicos convidados mas, que não chegou a se realizar.
Do seu pai, Justino da Cruz, herdou, certamente, o excelente ouvido para a música e a paixão pelas mornas e coladeiras.
Cesária teve três filhos. "Cada um com o seu pai", como disse sem rodeios a Herman José no seu programa. A segunda filha, Arlinda, faleceu e ficou só com Fernanda e Eduardo. Cesária já tinha netos e até mesmo um bisneto, o Luís Daniel, de três anos e meio.
Mas, membros da família eram também os seus músicos com quem dizia ter uma relação de mãe para filhos. Com o seu produtor, Djô da Silva também tem uma relação muito próxima. Era seu amigo, confidente e a pessoa a quem confiou grande parte das preocupações e decisões da sua carreira e que já afirmou considerar que José da Silva foi-lhe enviado por Deus.
Foi em Portugal que o conheceu quando cantava no restaurante do Bana. Djô perguntou a Cesária se não gostaria de cantar em França para os emigrantes cabo-verdianos. Com ele surgiu a oportunidade que a conduziu à porta de entrada para uma carreira internacional de sucesso. Em França, Cesária gravou, ainda em 1988, ‘La Diva aux pieds nus'.
A estrela
O estrelato veio tarde, aos 47 anos de idade mas, isso não a impediu de ganhar um Grammy em 2004 de Melhor Álbum de World Music ou de ser condecorada pelo Presidente Francês, Jacques Chirac, em 2009, com a medalha da Legião de Honra de França. Na loja parisiense onde comprava roupa tem uma cadeira com o seu nome e um cinzeiro para as beatas.
A brasileira Alcione, que esteve recentemente no nosso país, veio a Mindelo e foi visitar Cesária Évora porque, segundo ela, "vir a São Vicente e não ir ver a Cesária é como ir a Roma e não ver o Papa. Por isso, fui lá fazer a vénia", enalteceu.
Já foi comparada à portuguesa Amália Rodrigues, à francesa Edith Piaf, à cantora de jazz Billy Holliday e já foi chamada de ‘Bessi Smith dos Trópicos'. Mas, não quis saber. Preferia ser a Cesária Évora de Cabo Verde.
Sempre desprezou espalhafatos e honrarias exageradas dirigidas à sua pessoa. Gosta de coisas simples. Esta é, portanto, uma singela homenagem sem muita pompa. Não para a embaixadora da PAM, da UNICEF e também da música cabo-verdiana além-fronteiras, não para a Diva e Rainha da morna. É antes para a Cize, a que cantava no Lombo, que ia à Ribeira de Vinha comprar ovos e galinhas, à ‘mnininha de Soncent' que gostava de noitadas mas, preferia a ‘fralda' ao centro da cidade.
É para a Cize que não foi além da segunda classe, que nunca teve muita sorte no amor mas, que poucas queixas fez nesta vida e que muito aproveitou estas setenta primaveras. Goste ou não de homenagens é impossível não reverenciar Cesária Évora.
A morte
A morte veio esta manhã e levou aquela que é, para muitos, a figura mais importante deste pequeno arquipélago que ela deu a conhecer ao mundo mais do que qualquer outra figura nacional.
Cesária morreu na sua terra natal, esta manhã, às 11.20 e será enterrada na próxima segunda ou terça-feira, quando a sua filha chegar de Paris e juntar-se ao seu irmão e aos seus outros filhos e netos que já se encontram no Mindelo, São Vicente.
O dia 17 de Dezembro, a uma semana do Natal, ficará na memória dos cabo-verdianos espalhados por todo o mundo como um dia triste, em que a ‘Diva dos Pés Nus' fechou para sempre os olhos.
A sua morte é noticia internacional e já foi divulgada em vários órgãos de comunicação pelo mundo como a RTP, a RFI, a SIC Noticias e muitos outros media.
Parte deste texto foi divulgado no Jornal Expresso das Ilhas nº 501, de 31 de Agosto