Aurélio Gonçalves, Escritor da Alma Mindelense

PorExpresso das Ilhas,8 out 2016 6:00

Assinalando o 115.º Aniversário do Escritor

A efeméride do 115.º aniversário de António Aurélio Gonçalves (São Vicente, 25.Setembro.1901 – 30.Setembro.1984), o escritor que melhor soube interpretar a alma das gentes da sua cidade, é motivo para uma homenagem e uma revisitação aos lugares desse seu Mindelo a que deu estatuto literário.

Mindelo é o espaço privilegiado e o pano de fundo exclusivo de toda a sua novelística, excluindo A Consulta (1952) e Noite de Vento (1970), em que existem breves referências memorialistas ao meio rural de Santo Antão.

Nesse realismo gonçalviano Mindelo surge definida em limites gerais e, sem se deter em pormenores, é apresentada a “Morada”, fixando-se em alguns bairros da periferia.

Na novela O Enterro de Nhâ Candinha Sena (1957), Cristiano, do alto de Celarine faz um ângulo de 180.º com o pescoço seguindo a cinta de penhascos e montes que delimitam a ilha. Começa no extremo leste, no Monte Verde, percorre São Pedro, no sul, e completa o semicírculo apanhando um trecho da baía e o Monte da Cara, ao ocidente.

Ao privilegiar a cidade do Mindelo, algumas zonas ou ruas surgem como acidentes ou simples referências enquanto outras aparecem como palco de acções menos importantes. Tal é o caso da zona da Praça Nova, o Largo da Alfândega, com a sua Esplanada dos Aviadores, a Rua de Lisboa, a Pracinha da Igreja e o Largo do Dr. Regala.

Nas noveletas (assim chamadas modestamente pelo seu autor) o leitor é guiado na toponímia da cidade enquanto o autor, como verdadeiro cicerone vai caracterizando a geografia económica e humana. É bom não perder de vista a importância pedagógica e manipuladora desta atitude de cicerone.

A Morada funciona como o centro da vida sanvicentina em que há um movimento pendular de atracção <--> repulsão; centro <--> periferia, em busca de uma melhoria social e económica:

melhoria económica, na baía do Porto Grande, nas casas das senhoras da Praça Nova, num lugar favorável para o comércio evitando, assim, acabar os dias no Rabo da Salina, ou em outro sítio qualquer;

melhoria social, pois é ali onde se adquire o estatuto de Dona, como são os casos das donas Lolinha e Zulmira, enquanto outras ficam Nhâs, como Nhâ Candinha, Nhâ Maria Arcângela;

melhoria espiritual, na procura da Igreja Matriz para o alimento espiritual.

O coração da cidade é apenas referido como lugar de onde saem caminhos para os bairros periféricos. É o caminho da Praça Nova, em direcção ao norte, que vai dar ao Madeiralzinho (Noite de Vento, 1970); a Pracinha do Dr. Regala que leva aos bairros do lado oriental, como o Alto de Celarine e a Fonte Filipe, e ao sul a Chã de Cemitério (O Enterro de Nha Candinha Sena, 1957). É a Rua de Lisboa que leva ao Alto de Celarine (Biluca, 1977) ou é a Rua António Nola, que leva ao Lombo (Pródiga, 1956, e Virgens Loucas, 1971).

Os bairros periféricos são enumerados na novelística de Aurélio Gonçalves mas, os que realmente constituem o espaço de montagem das novelas e, por isso, bem caracterizados, são a Fonte Filipe (Noite de Vento), o Alto Celarine (O Enterro de Nhâ Candinha Sena) e o Lombo (Pródiga e Virgens Loucas).

Fonte Filipe é apresentada como um morro onde há vento que vem de longe, que se levanta “traçando o desenho de uma pirâmide a oriente da cidade, impedindo o seu alargamento em direcção à Ribeirinha”. A paisagem “árida, escura, de uma cor suja de terra sem húmus, ao abandono” onde se dispersa “um casario de construções variadas na sua pobreza, compreendendo desde as filas do rés-do-chão com paredes de alvenaria, cobertas de telha, habitáveis, até às barraquinhas levantadas sobre ripas forradas de lona”. A população tem um viver difícil e incerto mas resignado: “as mulheres ‘sobem’ o seu cuscuz, fazem o seu giro, compram e revendem confeitarias […], os homens andam pela cidade a ver se tiram um dia de serviço”. Enfim, são sketchs, instantâneos do quotidiano da “vidinha de SonCente”

Alto de Celarine, como o próprio nome o define, é um alto que fica nas proximidades da Fonte de Cónego e da Fonte Filipe, com as mesmas características socioeconómicas destas.

Lombo é o desembocadouro da Rua António Nola, pálida lembrança de um “Mindelo de há muitos anos, com um porto animado de um movimento tumultuoso, insuflando vida a uma população atarefada e variada de trabalhadores da baía, delirando em bailes a pau-e-corda, oferecendo ligações fáceis, consumindo vidas”. A sociedade do Lombo é constituída por gente de muitos ofícios, alguns empregados, outros com a vida no ar, sem ocupação. A sua animação deve-se ao “marítimo que vem de longe, cansado de mar, faminto de terra firme, de mulheres, sedento de álcool e com vontade de dançar, de fazer doidices”.

Para além das novelas de António Aurélio Gonçalves, organizadas num único volume por Arnaldo França, em 1985, sob o título Noite de Vento[1], foram organizados e editados postumamente os romances Recaída (1993) e Terra da Promissão (1998) e Ensaios e Outros Escritos (1998).

António Aurélio Gonçalves foi escritor, professor no Liceu Gil Eanes e na Escola Técnica e um intelectual orgânico activo e crítico nas mais diversas áreas – prefácios de livros, seminários de literatura no Curso de Formação de Professores do Ensino Secundário, artigos em revistas como Claridade, Boletim Cabo Verde, Raízes e Ponto & Vírgula, conferências e a própria divulgação de conhecimento e de informação a quantos o procuravam em casa ou em qualquer lugar onde estivesse – praticamente até à sua morte, aos 83 anos. 

 

1 Essa publicação inclui A Consulta, 1952; Pródiga, 1956; O Enterro de Nhâ Candinha Sena, 1957; História do Tempo Antigo, 1960; Noite de Vento, 1970; Virgens Loucas, 1971; Biluca, 1977; Burguezinha, 1977; Miragem, 1978.

 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 775 de 05 de Outubro de 2016.



 

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Autoria:Expresso das Ilhas,8 out 2016 6:00

Editado porFretson Rocha  em  9 out 2016 9:11

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