Ler Claridade hoje é uma dádiva. Especialmente para os mais novos que ainda não tinham tido a oportunidade de ter a revista fac-similada e acessível, iniciativa rara e sui generis deste jornal das ilhas.
Reler Claridade hoje é mais que uma dádiva. Especialmente para aqueles que se dão conta da dimensão simbólica de iniciativa tão importante no plano cultural e por que não dizê-lo, também no plano político. Oitenta anos se passaram sobre um ideal projectado por um grupo de jovens atentos aos problemas da sua gente, da nossa gente, lançando os fundamentos de uma proposta estética que veio a inaugurar o movimento modernista cabo-verdiano ainda por compreender na plenitude, passados oitenta anos.
Uma leitura activa da revista empolga qualquer leitor. Projecta-nos num tempo estranho, passado é certo, mas ainda tão presente, que nos obriga a questionar os caminhos e os atalhos porque desde então temos percorrido.
Em 1934, no Mindelo, ilha de S. Vicente, um grupo de amigos e companheiros das lides literárias e de outras lides encontram-se regularmente na Pracinha do Liceu ou no escritório de um deles, Manuel Velosa. Almoçam e jantam juntos — eram quase todos solteiros, de entre vinte (Manuel Lopes e Baltasar Lopes com 27; Jaime de Figueiredo, 29) e pouco mais de trinta anos (Manuel Velosa, 34; Jonas Wahnon, 33; Jorge Barbosa, 32 e João Lopes, o mais velho, 40). Estes dois últimos, periodicamente, viviam noutras ilhas. No Fogo o primeiro, na Praia, o segundo. Num desses jantares de grupo e num pequeno restaurante de um tal Adelino de Matos resolveram retomar a ideia de publicar um jornal. De oposição, é óbvio. Jaime de Figueiredo se propôs de imediato para escrever o manifesto, que começou logo a redigir mentalmente com o seguinte estribilho: “Nós não transigiremos!” Dito em alto e bom som, empolgado, como era seu estilo.
No escritório de Manuel Velosa e à volta de jarras de grog-cocktail — o elemento de aglutinação — (muita água, grogue, nós moscada, bitter Angostura...) bebida inventada pelos ingleses e muito popular em S. Vicente continuou-se a debater os contornos do futuro jornal que acabou por desembocar na revista do grupo.
Nesse mesmo ano, de 1934, numa entrevista publicada no Brasil, Boletim da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro, assinada pelo brasileiro Delfim de Faria, o grupo se considerou num processo de aprendizagem e na tentativa de “encontrar o verbo” para os seus propósitos intelectuais e programa de acção. Delfim de Faria que durante a permanência de três dias em S. Vicente conviveu com o grupo, revela na mesma entrevista que conversando sobre diversos assuntos: Sociologia, História, Filosofia, Literatura, se apercebeu que as teorias mais modernas eram do domínio do grupo.
As linhas mestras programáticas que iriam dar corpo à revista estavam lançadas e o grupo já se identificava como “claridade”. As metas estavam estabelecidas, a vontade ou o problema do grupo já era, em síntese, um caso de fidelidade às origens. Armado de elementos “novos”, o “movimento” pretendia condensar os elementos dispersos da cabo-verdianidade para lhe definir uma estética própria partindo dessa vontade de aprofundamento das origens. A isso lhes impunha uma maior consciência do fenómeno sociológico cabo-verdiano para uma “mais consciente e realística orientação dos alvos a atingir.” O drama da emigração estava esmiuçado e equacionado (note-se Poema de Quem Ficou de Manuel Lopes no 2.º número da revista): o grupo extra-literário já tinha dado provas com acções cívicas e políticas importantes no seu activo. Meses antes (Junho) havia apoiado a revolta de Nho Ambrose e pagou caro por isso.
Na história da revista é Jaime de Figueiredo o catalisador da ideia enquanto Baltasar Lopes surge como estratega. A iniciativa anterior ao acolhimento de Baltasar no seio do grupo projectava uma revista diferente, tanto sob o ponto de vista editorial, como de proposta estética. Com a sua entrada as coisas mudaram de rumo ideológico e o programa enriquecido com outras disciplinas da escrita. De um projecto inicialmente ancorado essencialmente na poesia, na ficção literária e nas artes plásticas, impôs-se um outro com tónica na antropologia social, investigação linguística, a par da poesia e da ficção. Baltasar regressava às ilhas após um percurso académico exemplar numa cidade efervescente na altura sob o ponto de vista ideológico Lisboa. Pertencia –ao grupo que suportava um modesto mas importante jornal de tendência pan-africanista. Assim como Aurélio Gonçalves.
Jaime abandona o grupo logo após o seu regresso para a Praia. Dos literatos restam Manuel Lopes, Baltasar e Jorge Barbosa. Manuel Lopes reconhece que Baltasar foi quem, logo depois de seu acolhimento no grupo, tomou a rédea do bicho e o levou até onde sabemos. É o que explica a suspensão da edição de Claridade no terceiro número quando Baltasar vai para Portugal para concluir o doutoramento e o curso de magistério e só após o seu regresso é retomada. É sempre assim nessas lides e causas. Há um que pega o bicho pelos ditos e leva as coisas para onde têm que ir, até ao cansaço. Mas acontece que utopias cansam e o poeta se cansa. Para este, felizmente, que depois de cansado, esgotado, doente, haverá sempre um reino que o acolherá, Pasárgada[1], um lugar onde é amigo do rei e terá a mulher que quer na cama que escolherá.
Manuel Lopes fez sempre questão de afirmar que não houve movimento, que nunca quiseram penetrar nos problemas políticos; que a filosofia do grupo seria precisamente no levantar as questões locais e isto nada tinha a ver com a política... O regime repressivo colonial é que não pensava assim e por conta disso Baltasar Lopes veio a ficar na história das ilhas como o primeiro cabo-verdiano a ter ficha nos arquivos da polícia política de Salazar (PVDE), em 1939, como “desafecto à Nação” e o poeta Osvaldo Alcântara (seu pseudónimo enquanto poeta na revista) procurado durante anos, até ser descoberto no início dos anos sessenta. Manuel Lopes conta que Baltasar trouxe para Cabo Verde uns pedaços daqueles movimentos de Lisboa mas, era assunto mais dele que dos outros. De esquerda, de expressão da internacional socialista ou do socialismo democrático quereria dizer Manuel Lopes, o que a designação da revista, Claridade, proposta por Baltasar, não esconde.
Corre o ano de 1935 e S. Vicente está deprimida. Há comida, todavia não há trabalho, não há dinheiro. Apesar da crise económica mundial, o Porto Grande ainda contribuía com cerca de 30% para o orçamento geral do arquipélago, contribuição que não reflectia na amenização dos problemas sociais que assolava a ilha. Estamos em pleno Estado Novo, o regime de Salazar reprime e prende dirigentes e personalidades relevantes de correntes democráticas que se lhe opõem, dissolvem-se os sindicatos com a proibição à greve, já não é possível sair à rua reivindicando o direito ao trabalho sem graves consequências para os manifestantes. Nho Ambrose e seus companheiros são julgados e deportados para Angola. Os funcionários públicos são intimidados através de leis restritivas de participação cívica. Razão por que é Manuel Lopes, então funcionário do Telégrafo Inglês, quem assume a direcção da revista.
Contudo, os mindelenses não perdem a alegria de viver e de se cultivar. A Banda Municipal não falha em cada tarde de domingo na Praça Nova, no cine-teatro Eden-Park, o maestro da ilha, Sr. Reis, dá concertos de piano com peças de Beethoven, Schumann, Chopin. Na mesma sala são projectados filmes importantes como “O Barqueiro do Volga” e “Os Últimos Dias de Pompeia”; realizam-se bailes de carnaval, fazem-se concertos de jazz-band, inauguram-se exposições de Arte. Ainda no Eden-Park, recebem-se troupes de teatro da Metrópole, normalmente em trânsito para outras colónias.
Uma vida cultural intensa, mas sempre ameaçada pelo espectro da crise do emprego e com as maiores dificuldades pela luta para a sobrevivência material.
1936, o ano da Claridade é também o ano da abertura da Colónia Penal do Tarrafal, de Santiago; o ano marco do tenebroso regime de Salazar que iria perdurar até 1974.
Meses depois da saída do 1º número da revista chegavam a Tchom Bom 152 detidos, presos políticos que haviam participado na então Metrópole em revoltas contra o regime. A eles foram-se juntar um significativo número de revoltosos (cerca de 90) que, detidos pelas mesmas razões (revolta na ilha da Madeira) haviam sido deportados em 1931 para a ilha de São Nicolau.
Em 1936, os jornais da Metrópole não falavam de Cabo Verde. Sequer do seu recém- inaugurado “Campo de Concentração”, sequer da ameaça da fome a repetir-se nas ilhas. Em Cabo Verde, nestas ilhas em Março desse ano, a rapaziada que quis ficar, com os pés fincados na terra resistindo ao apelo das ondas “por onde passam cortejos de promessas, tentações, miragens...”, lançaram o primeiro número de uma revista de arte e letras: Claridade. Custo: 2 escudos (0,02 cêntimos do Euro). Foi lida? Sim pelos amigos, curiosos e pelos a quem 2 escudos não mexia com a rotina de sua escassa gestão de urgências e incontornáveis. 2 escudos neste tempo de um S. Vicente, à míngua, dava para sustentar um dia de caldos a uma família inteira. A maior parte da população activa ganhava nessa altura 4 escudos/dia, equivalente a metade de uma galinha, a cinco litros de milho, a dois quilos de arroz, a três quilos de atum, e ao custo diário de água necessária a uma família de seis pessoas. Claridade para uma parte desta maior parte só poderia ser lida na Biblioteca Municipal e passada, fraternalmente, de mão em mão amiga, até se esboroar.
1936 ainda é o ano em que a ordem constitucional vigente declara activo repúdio ao comunismo bem como a todas as ideias subversivas. A imprensa era a maior dor de cabeça do Estado Novo e a isso contrapôs com a mais duradoura instituição do regime: a Censura Prévia... dois meses depois do primeiro número da Claridade. A tenebrosa censura que tinha… somente por fim impedir a perversão da opinião pública na sua função de força social… e defendê-la de todos os factores que a desorientem contra a verdade, a justiça, a moral,...
Na sequência, o governo de Salazar proíbe a importação de publicações estrangeiras para “proteger” o pensamento português de tentações demoníacas, demolidoras do espírito da família e dos “interesses superiores da Nação”. Um gozo para os rapazes das ilhas que já liam tudo e que chegavam por via de mãos fraternas e solidárias: Anatole France, Ortega y Gasset, André Gide, os brasileiros todos: Machado de Assis, Afrânio Peixoto, Jorge de Lima, Gilberto Freire, Graciliano Ramos, Manuel Bandeira, Oswaldo Andrade, Jorge Amado, muitos deles proibidos pela censura em Portugal.
Março de 1936. O primeiro número de Claridade é acolhido com júbilo no Mindelo e na Praia. Por um restrito número de leitores. Em Portugal a revista Presença saúda a iniciativa, no Brasil é também notícia por via de um dos amigos do grupo, desde a primeira hora, José Osório de Oliveira.
Os três primeiros números publicados entre Março de 36 e Março de 37, sintetizam já toda a procura do grupo e fixam seus propósitos nas várias áreas de sua preocupação cultural, cívica e intelectual; folclore, conto, romance, poesia, crítica social, antropologia cultural, filologia.
O formato (27 x 37.5 cm) que seria abandonado no quarto número e o grafismo da revista nesta primeira fase reflecte uma mudança e uma preocupação visual inovadora no meio gráfico mindelense. A impressão é esmerada, as soluções gráficas, na ausência de outros elementos visuais foram encontradas com um jogo de “chumbos” de tipos ousados e variados.
Não há no grupo claridoso que restou nenhum elemento ligado às artes plásticas. Teria sido o Jaime de Figueiredo não tivesse ele saltado do barco ainda em terra. Um rapaz amigo de nome Miguel de Morais concebeu o logo Claridade, o papel de impressão, o chamado papel manteiga ou de embrulho, pardo, encorpado, que nas mercearias servia para embrulhar toucinho, banha, carne salgada..., compunha a apresentação gráfica da revista, despretensiosa, embora trabalhada com rigor e marca de honra do grupo claridoso. O frontispício do primeiro número, com a publicação de lantuna & 2 motivos de “finaçom” é eloquente quanto aos propósitos que sugeriram o lema criado por Manuel Lopes; fincar os pés na terra. O primeiro e inequívoco gesto de afirmação cultural da cabo-verdianidade na capa da revista! Uma marca de rebeldia a reforçar a intenção cultural, literária e científica. Baltasar já se encontrava no terreno a investigar para a sua tese de doutoramento sobre o crioulo das ilhas e considerava o finaçom; “vincada expressão poética do crioulo em Sotavento”. No frontispício do número 2 é a vez da “vincada expressão poética do crioulo no Barlavento”. Uma morna de B’Leza: Vénus!... No do número 3 é a vez do português com o Poema de Quem Ficou de Manuel Lopes. Bem pensado, bem realizado!!
Há oitenta anos um grupo de jovens nascidos nestas ilhas acreditou na utopia como um “princípio de esperança”, para citar Ernest Bloch na sua definição de utopia: “uma atitude” perante as nossas circunstâncias e perante o mundo. E deixaram testemunho de sua coragem e capacidade de indignação. E actuaram.
Que oportunidade tão extraordinária voltar a imaginar essa tertúlia de amigos que soube interpretar e viver o seu tempo. E deixou marcas. Indeléveis marcas nas entranhas de sua e nossa própria carne; irremediáveis cicatrizes de “escrita-ferida aberta” que não sara e, por isso, sempre viva.
Ler hoje Claridade, é mais que uma dádiva. É um tirar o chapéu a uma geração que há oitenta anos decidiu fazer as coisas acontecerem. No plano da moral, no plano da política. No plano intelectual, no da cultura de indignação e sua consequente expressão pública. No plano da estética. No plano da arte, do estudo sistemático e do conhecimento. No plano da realização de uma utopia onde cabia uma ideia e uma causa maior: a cabo-verdianidade.
[1] Refere Vou-me embora Pra Pasárgada de Manuel Bandeira e Itinerário de Pasárgada de Osvaldo Alcântara.
Texto originalmente publicado na edição impressa do nº 777 de 19 de Outubro de 2016.