As Ilhas do Meio do Mundo (2016), o último livro de Oswaldo Osório, enquanto objecto cultural, é um livro muito bonito. A concepção e a execução da capa é a expressão de uma sintonia perfeita de comunicação entre o avô-poeta e o neto-designer, onde se conjuga o erotismo, a lenda e o mito das hespérides.
Mesmo correndo o risco de ser acusado de ousado ou exagerado na minha interpretação, dizendo mais do que diz ou dizendo mais intensamente o que não diz, considero que a capa é de um erotismo quente com gosto a maçã que, lá no fundo, evoca Eva, a mulher inicial, origem da feminilidade, expectante da vida, ou não seria a metáfora um recurso a que o poeta faz uso para exprimir as suas ideias.
Isso é evidente pela figura de uma meia maçã cortada longitudinalmente, que se faz presente, tendo à frente, encostado ou saindo da sua polpa ou caroço, um dragoeiro de onde parece ter brotado a seiva e o vermelho que se alastra e cobre a capa toda.
É bom não esquecer que o dragoeiro é uma árvore milenar originária da região biogeográfica atlântica da Macaronésia, nativa dos arquipélagos das Canárias, Madeira e Açores, ocorrendo localmente da costa africana vizinha e em Cabo Verde, onde existe quase exclusivamente na ilha de São Nicolau, sendo uma árvore característica da ilha, e na Brava.
A seiva do dragoeiro forma uma resina translucente, de cor vermelho sangue quando oxidada, denominada, sangue-de-drago ou de dragão e que, devido às suas propriedades curativas, é muito usado nas ilhas. A medicina tradicional não o dispensa nas suas mesinhas. O sangue-de-drago é usado, entre outras coisas, para dores pa corpo, tomado em aguardente. É tido como fortificante e há quem o considere afrodisíaco.
Juntando a seiva do dragoeiro à seiva do livro, consegue-se o fortalecimento do corpo e da alma leitora.
O mito, esse, está a um nível mais profundo e obriga-nos a alguma explicação mais racional e mais detalhada. Refiro-me ao mito lendário das Hespérides ou das Ilhas Hesperitanas, também chamadas Ilhas Arsinárias.
A lenda das Hespérides reporta à mitologia grega, segundo a qual as três filhas de Héspero – deus, filho de Aurora e Atlas – possuíam um jardim cujas árvores produziam pomos (maçãs) de oiro, que eram guardados por um dragão de cem cabeças. Conta-se que Hércules entrou no jardim maravilhoso, matou o dragão e se apoderou dos preciosos frutos. Foi este o undécimo dos seus doze trabalhos.
Qualquer que seja a origem histórica da lenda das Hespérides ou da Atlântida, ela permaneceu no espírito dos homens, à luz dos textos egípcios em que Platão se inspirou, como símbolo de uma espécie de paraíso perdido ou cidade ideal e da Idade do Ouro.
Luís de Camões (1524 – 1580), no Canto 5º, Estâncias VIII e IX de Os Lusíadas (1572), identificava as Hespérides com as Ilhas de Cabo Verde:
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Entrámos, navegando polas filhas
Do velho Hespério, Hespéridas chamadas;
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Ali tomámos porto com bom vento,
Por tomarmos da terra mantimento.
Àquela ilha aportámos que tomou
O nome do guerreiro Sant’Iago,
Santo que os Espanhóis tanto ajudou
A fazerem nos Mouros bravo estrago.
Este mito lendário viria a ressurgir em Cabo Verde nas décadas de vinte e trinta do século passado, com as criações poéticas de Pedro Cardoso (Fogo, 1883 – 1942) e José Lopes (S. Nicolau, 1872 – 1962), dois antigos alunos do Seminario-Lyceu.
Avivando a lenda, Pedro Cardoso editou Jardim das Hespérides (1926) e Hespérides (Fragmento de um poema perdido em triste e miserando naufrágio) (1930) e José Lopes – “o vate hesperitano”, como se intitulava – Jardim das Hespérides (Sonetos do livro Hesperitanas) (1929), Hesperitanas (Poesias) (1933) e Alma Arsinária (Poemas em aditamento do livro Hesperitanas) (1952).
O recurso ao mito terá sido uma forma encontrada por Pedro Cardoso e José Lopes para a criação, explicação e fundamentação da tese de que as ilhas teriam tido “existência” e sido conhecidas muito antes da chegada das “lusas velas legendárias”. A relevância deste facto é que, com base nesse pressuposto, se poderia reivindicar a especificidade das Ilhas, o que daria força à tese da autonomia.
Eis como o mito é apresentado por José Lopes (1933:25-27):
Das vastas extensões assim submersas
Então ficaram essas nossas ilhas
E as outras suas célebres irmãs,
Como elas, pelo Atlântico dispersas.
As Hespérides, de Héspero as três filhas,
Por essa mesma tradição,
Deram o nome às nossas, com razão
Chamadas, pois, Ilhas Hesperitanas.
Também se denominam Arsinárias
Pelo cabo Arsinário dos Antigos,
Nome mudado em Caboverdeanas
Desde que as lusas velas legendárias,
Zombando das procelas, dos perigos,
Davam o nome Verde ao mesmo cabo
Que assim perdia o que lhe déra Strabo.
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É esta, pois, Irmãos Caboverdeanos!
A história original da nossa terra,
Que esse segredo do Passado encerra...
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Por seu lado, Pedro Cardoso (1926) escreve que
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As antigas Hespérides sagradas
São hoje as cabo-verdeanas ilhas
Mansões deliciosas e encantadas
De sereias gentis – de Héspero filhas
Guardam no seio, oculto, o pomo de oiro
Em luzente metal rico tesouro.
Defendendo a especificidade e a singularidade das Ilhas com uma “história original” – somos filhos, [...] de outros gigantes/ Que, ‘por mares não de-antes navegados’/ Nossas Ilhas tiraram do mistério/ Repovoando êstes restos espalhados – criava-se o fundamento para a alegação da sua autonomia económica e política, à semelhança das ilhas adjacentes da Madeira e dos Açores, outras suas célebres irmãs. Ou seja, justificava-se a posição de defender uma identidade para Cabo Verde, o que resultava, a nível individual ou colectivo do seu povo, na defesa de uma identidade distinta, específica e singular em relação ao país que o regulava, Portugal.
Essas ilhas fabulosas do Atlântico, por isso chamadas Ilhas Hesperitanas, foram nos nossos dias identificadas com as Canárias actuais.
O tema das Hespérides ressurge, mais uma vez, em As Ilhas do Meio do Mundo de Oswaldo Osório, adaptado aos novos tempos.
Sendo Oswaldo Osório um Poeta maior, com várias obras publicadas –Caboverdiamadamente construção meu amor (1975), O Cântico do Habitante Precedido de duas Gestas (1977), Clar(a)idade Assombrada (1977), Cantigas de Trabalho, Tradições orais de Cabo Verde (1980), Emergência da Poesia em Amílcar Cabral – 30 poemas (1988), Contos Os Loucos Poemas de Amor e Outras Estações Inacabadas (1997), Nimores e Clara & Amores de rua (2003) e A Sexagésima Sétima Curvatura (2008) – a escrita deste romance é o seu culminar, enquanto escritor, e que o consagra como romancista.
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NOTAS:
OSÓRIO, Oswaldo, As Ilhas do Meio do Mundo, Dada Editora, Praia, 2016.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 782 de 23 de Novembro de 2016.