Coube ao investigador Félix Monteiro (1909 – 2002) ser o primeiro estudioso, no pós-independência, chamar a atenção, nas suas “Páginas Esquecidas” (Raízes, N.º 21, Praia, 1984), para os escritos de Guilherme Dantas, reproduzindo uma amostra significativa entre poesia e prosa desse jornalista e escritor multifacetado.
Poesia
Arnaldo França (1925 – 2015) explica que pouco depois de publicado o artigo na revista Raízes, Félix Monteiro foi procurado pela Senhora D. Maria de Fátima Braga Vieira de Andrade que o informou que “em casa dos seus antepassados se encontrava um manuscrito, encadernado em couro, com um fecho metálico, contendo poesias de Guilherme Dantas e de que lhe fez entrega”. É a partir desse manuscrito que Arnaldo França organiza e prefacia o livro Poesias, saído em 1996.
O livro Poesias, de Guilherme Dantas, é uma colecção de mais de cento e vinte poemas, sendo a primeira feita em Mafra, aí por volta de 1867, e a última, datada de Setembro de 1875.
Prosa de Ficção
Em 1999, estando eu em Lisboa a realizar pesquisas sobre a imprensa cabo-verdiana, tomei contacto com a obra ficcional de Guilherme da Cunha Dantas, que desconhecia até então – Contos Singelos (Mafra, 1867) e textos dispersos publicados na imprensa periódica em género de folhetim, como era usual e em voga na segunda metade do século XIX.
À medida que fui lendo os textos em prosa de Guilherme Dantas – quatro contos, uma reportagem e um romance – foi tomando corpo a ideia de os divulgar como uma homenagem ao escritor e um serviço à nova geração. Foi assim que, no ano 2000, organizei, de forma autónoma, dois volumes: Contos e Bosquejos, e Memórias dum Pobre Rapaz, cada um deles com um prefácio e notas.
Em 2007 foi publicado o romance, ficando os contos e bosquejos a aguardar vez.
Embora sendo ficção, a prosa literária de Guilherme Dantas pode ser enquadrada no género evocativo, memorialista, contendo muito do biográfico ou do autobiográfico. Nela o escritor faz o registo da experiência, ainda que ficcionada, do autor, ao mesmo tempo que retrata para a posteridade factos e acontecimentos da sua época.
Memórias dum Pobre Rapaz
Memórias dum Pobre Rapaz é o entretecimento de duas histórias românticas de profundo amor e paixão cuja acção se situa na segunda metade dos anos oitocentos, sob a influência do terceiro romantismo português, e decorre em dois espaços físicos distintos e complementares, Portugal Continental e as Ilhas de Cabo Verde.
Essa bi-espacialidade é também consequência e espelha a realidade bi-pátrida em que viviam os homens das Ilhas dos anos oitocentos – situação ambígua de estar e sentir a pátria, o que fazia com que assumissem ora como sendo de Portugal, ora como de África ou de Ultramar, ora como de Cabo Verde ou, ainda, como a sua ilha ou local de nascimento.
Contos e Bosquejos
O livro integra quatro contos – “Nhô José Pedro ou Cenas da Ilha Brava”, publicado pela primeira vez em Mafra, fazendo parte do livro Contos Singelos (1867); “Amor! Ai! Quem Dera“; “A Morte de D. João. Memórias do Hospital”; “O Sonho. Memórias dum Doido”; e bosquejos, “Bosquejos dum Passeio ao Interior da Ilha de Santiago” – uma espécie de Viagens na Minha Terra (1846), de autoria de Almeida Garrett (1799 – 1854), escritor português introdutor do romantismo.
Com a publicação desses Contos e Bosquejos, fica concluído o projecto de reedição da obra completa de Guilherme Dantas, fundador da ficção cabo-verdiana juntamente com José Evaristo d’Almeida, quase 130 depois da sua morte. De fora ficaram apenas os contos “Cenas de Mafra”, inserido no livro Contos Singelos (1867), e “Frei José e o Diabo”, publicado no Almanach de Lembranças Luso-Brasileiro (1872), por estas estórias se situarem em Mafra e não terem qualquer relação com Cabo Verde.
“Que o olvido, esse ingrato esquecimento, não apague a sua [Guilherme Dantas] memória”.
De registar, em jeito de conclusão que, de há uns tempos a esta parte, tem havido uma preocupação louvável em reeditar livros de referência há muito esgotados, obras póstumas e espólios de autores já desaparecidos, como José Evaristo d’Almeida (1810? – 1856?), Guilherme Dantas (1849 – 1888), Eugénio Tavares (1867 – 1930), Januário Leite (1865-1930), Félix Lopes da Silva (“Guilherme Ernesto”) (1889 – 1967), Pedro Cardoso (1890 – 1942), e Sérgio Frusoni (1901 – 1975), para além dos já clássicos da literatura moderna como António Aurélio Gonçalves (1901 – 1984), Jorge Barbosa (1902-1971), Baltasar Lopes (1907 – 1989) e Manuel Lopes (1907 – 2004). Foi nesta linha que se organizou Contos e Bosquejos e Memórias dum Pobre Rapaz.
Guilherme Augusto da Cunha Dantas nasceu a 25 de Junho de 1849, na localidade do Pé-da-Rocha, ilha Brava, filho do 1.º Tenente de Artilharia Vitorino João Carlos Pereira Dantas e de Isabel da Cunha, e faleceu na Praia, ilha de Santiago, a 24 de Março de 1888. Estudou na Escola Real de Mafra, Portugal, onde, em consequência de um banho frio em pleno Inverno em Ericeira, ficou surdo. Regressado a Cabo Verde, pelos finais de 1868, Guilherme Dantas viria a entrar para a administração pública como amanuense da Cantadoria da Junta da Fazenda e destacado para prestar serviço como encarregado da guarda e conservação (bibliotecário) da Biblioteca e Museu Nacionais de Cabo Verde, de 1871 a 1876.
Depois de regressado a Cabo Verde, Guilherme Dantas deslocou-se por três vezes à sua ilha natal, a última, no ano anterior à sua morte, em 1887.
Texto originalmente publicado na edição impressa do nº 790 de 18 de Janeiro de 2016.