Na estória da família da Mãi Xanda (São Vicente, 1936 – 2009), sempre me intrigou a figura do meu avô, João Fidélis Brito, homem simples e carpinteiro, que não cheguei a conhecer porque faleceu cedo, quando a filha tinha 7 para 8 anos, diazá na munde, nos idos de 1944.
Farrapos de memórias desse meu avô chegaram a mim de forma esbatida pela linha feminina, através da minha avó Ma Liza e da minha Tia Tá, prima direita mais velha da minha mãe:
… Pai que, aos sábados, tocado pela bebida, calcorreava a morada e os bairros todos com a filhinha no catxacin …
… Carpinteiro conhecido e muito procurado porque bom fazedor de caixão, que levava as sobras de alparca (tecido barato de algodão ou viscose, fino e brilhante), para fazer vestidinhos à filhinha querida …
… Carpinteiro que caiu de um primeiro andar na morada, na Rua São João, quando colocava as culmeiras na casa de Nhô Gûste Maderênce, de que viria a falecer com 37 anos …
Sem dados certos, acreditei que o apelido Brito do meu avô vinha da ilha de Saninclau, eventualmente da Praia Branca ou da Fajã. Aliás, o meu gosto pela História, pela literatura e pela cultura e a própria importância da ilha que chegou a ser sede do bispado e albergar o Seminário Liceu entre 1866 e 1917, considerada, na altura, a Atenas de Cabo Verde, ter-me-ão dado esse orgulho de pertença e espicaçado a procura das minhas origens aristocratizadas.
Materializei a imagem desse meu avô patxê par loa1 quando, nos anos 80, conheci o meu Tio Lela Brito, único irmão paterno da minha mãe, regressado de Angola devido às convulsões políticas e sociais. Parecidíssimo com o pai João Fidélis, segundo me disseram, de estatura mediana, cabelo fino e ondulado, feições parecidas com a Xanda e tom de pele escura.
Os amigos de Saninclau “puxaram-me” para as minhas origens, Praia Branca, Fajã, Queimadas … Qual dêje?!...
– Bajôfe y screte moda bô ê,2 só podes ser neto de padre. Aposto que do padre António Brito, das Queimadas, disse-me certa vez a Tanha Pimentel.
Pesquisei documentos de arquivo e finalmente descobri. Saninclau?! Ledo engano. João Fidélis Brito, filho legítimo de Fidélis António Brito e de Maria da Luz era da Boa Vista! O meu avô era, portanto, um cabrêr, que teria ido a Soncent à procura de trabalho como tantos outros das ilhas vizinhas de Saninclau e da Bubista.
– Eu, neto de cabrêr, cmêdor de pêxe q léte, tâmara q léte y cuscuz de potóna?!1.
Contei isso ao meu amigo Germano Almeida, o cabrêr mais importante que conheço depois de Aristides Pereira, o primeiro Presidente da República, e de Alfredo Brito, professor primário de várias gerações, que deu uma das suas estrondosas gargalhadas e me animou. Sim, há coisas piores. Rimo-nos com gosto.
O consolo, a reconciliação e o orgulho da nova “filiação” veio-me ontem em conversa amena com o amigo de Bubista, Marcelino Santos, emigrado há muito na Argentina. Segundo ele, cabrêr é, na linguagem actual e muito em voga, um empreendedor porque trabalhador de muitos ofícios. Ele é [era], conforme a época do ano, pescador, marinheiro, agricultor, pedreiro, pastor de cabra, sapateiro, escalador de peixe seco, fazedor de txacina e de cal, tocador e, sobretudo, êss ca ta ftá4.
Para arrematar, Marcelino contou-me estórias hilariantes de Nhô Manê Gódja, das muitas das gentes da Bubista.
Nhô Manê Gódja, da localidade da Estância de Baixo, pastor e criador de cabra, era um homem de 2,15 metros de altura – quando andava de burro, caso não estivesse apoiado nos estribos, os pés arrastavam-se pelo chão – calçava sapatos n.º 46, feitos nos EUA, pesava mais de 130 kg, puro músculo, enxaguava a boca de manhã com uma caneca de 4 cantos (tipo das de Azeite Galo), tomava café por uma lata de “catatône”5 (lata de atum da Fábrica de Conserva Ultra de 2 Kg).
Certa vez, regressando Nhô Manê Gódja a casa ao fim do dia, não havia maneira de conseguir fazer avançar o seu óze (asno, macho) que teimava em querer montar uma fêmea com que se cruzou. Às tantas, farto disso, Nhô Manê Gódja desmonta-se, avança em direcção ao macho e dá-lhe um valente murro no meio da testa, que cai estatelado no chão, desmaiado. Sem remédio, lá teve ele que esperar a alimária despertar para prosseguir viagem.
Numa outra ocasião foi chamado à Administração Civil por via de seis cabras com a sua marca que tinham sido apanhadas em lugar de agricultura e levadas para coima e colocadas no curral da Administração.
Inteirado do assunto na Administração Civil, a situação era: ou o Nhô Manê Gódja pagava uma multa (dinheiro que ele não tinha) ou deixava ali três cabeças de cabra para fornecer leite para o Sr. Administrador (situação de que não estava de acordo) ou passava uma semana no calaboiço (condição que estava fora de questão) ou recebia 24 palmatoadas.
Nhô Manê Gódja, homem honesto e cumpridor da lei, estendeu as duas mãos ali mesmo e recebeu do jovem aspirante da administração civil, que teve de subir para cima de um banco, as tais palmatoadas. Terminado o castigo, ao sair com as mãos inchadas, Nhô Manê Gódja olha para o aspirante e diz-lhe:
– Oiça cá uma coisa, vou-me embora com as minhas cabras porque se lhe desse agora um soco ia parar ao Djêu.
1 Forma de falar do natural de Sanicolau pelo qual é muitas vezes identificado.
2 “Janota e inteligente como tu és…” (trad.).
3 “Eu, neto de cabreiro, comedor de peixe com leite, tâmara com leite e cuscuz de potona” (trad.). Forma pejorativa usada por gente de Soncent, cuja explicação vem do facto de a cachupa ser cozida/temperada com peixe que, depois de se lhe ter sido retirado e separado o caldo, é comido com leite fresco ou coalhado. Potona é uma espécie de palha que produz grãos nas raízes e que serve para se fazer cuscuz.
4 Não furtam.
5 Catatone, nome de um dos barcos de pesca da Fábrica de Conserva Ultra.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 796 de 28 de Fevereiro de 2017.