História da Aéropostale cai no esquecimento

PorExpresso das Ilhas,8 abr 2017 6:11

 

A menos de cinco minutos do centro da cidade da Praia, na pacata aldeia de Calheta de São Martinho, município de Ribeira Grande de Santiago, situam-se as ruínas do edifício da mítica companhia aérea francesa, a Aéropostale, como que à espera de um projecto turístico e/ou de revitalização dos últimos fiapos da sua história.

Devido às condições que a baía de Calheta de São Martinho ostenta, protegida do vento e da agitação do mar, banhada por um céu límpido, a enseada serviu de base para as perigosas amaragens dos hidroaviões da Aéropostale nos finais da década de vinte do século passado, em trânsito para a América do Sul. Actualmente, muitos acreditam que o local reúne os ingredientes necessários para a promoção do turismo, ainda que não se vislumbre, com efeito, nenhum projecto desta natureza para a aldeia. 

Segundo Nuno Rebocho, colaborador da Câmara Municipal de Ribeira Grande de Santiago, a Calheta de São Martinho preenche todos os requisitos para servir de base para a dinamização de um turismo de qualidade. Porém, avança que neste momento a Câmara não tem em curso nenhum projecto para a antiga hidrobase da Aéropostale. Para justificar esta inação, Rebocho apresenta a disputa de terrenos entre moradores e a Santiago Golf Resort como um dos fatores inibidores. 

“Nestas circunstâncias, a Câmara fica impossibilitada de desencadear qualquer acção para a Calheta de São Martinho”, explica Rebocho, acrescentando que o plano de ordenamento turístico traçado pelo anterior governo “para além de ter violado a lei colocou entraves a uma possível atuação da edilidade ribeira grandense nesse sentido”.

 Se a Câmara está de mãos atadas para fazer andar projectos, a Direcção Geral do Turismo (DGT) para já não registou a entrada de nenhuma proposta de investimento turístico virado para a Calheta de São Martinho. “Não existe nenhum projecto turístico direcionado para Calheta de São Martinho”, garantiu-nos a técnica da DGT, Edsana Tavares. 

Facto é que o passado glorioso da travessia do Atlântico empreendida pela Aéropostale, empresa pioneira a cortar os céus do Atlântico levando correios na bagagem, faz recrudescer as potencialidades turísticas do local. “Paradoxalmente o património material da antiga hidrobase, embora de evidente valor histórico e museológico não é valorizado nem incluído nos roteiros turísticos”, refere num estudo sobre esta matéria feito pelo professor Wlodzimierz Szymaniak. 

Sem uma política de conservação do sítio e uma consequente promoção turística que vise acima de tudo promover o passado da hidrobase, toda a história contida ali tende a desaparecer com o passar do tempo. 

Em conversa com o presidente do Instituto da Investigação e do Património Cultural (IIPC), Charles Akibodé, ficamos a saber que, na verdade, não existe um programa de raiz direccionado para a preservação das ruínas da hidrobase da Aéropostale. 

O presidente do IIPC justifica esta falta de projecto de conservação do local com a adopção de uma nova forma de inventariação dos patrimónios, em que será a população civil a executar o processo. Ou seja, a hidrobase da Aéropostale terá que merecer, primeiramente, a valorização da comunidade como património a ser protegido para só depois beneficiar das políticas do instituto e das entidades públicas neste sentido. 

“O objetivo deste Guia Operacional – Vinte e Dois Cadernos para Vinte e Dois Municípios – é fazer com que as populações de cada município participem no inventário dos patrimónios locais, tanto materiais como imateriais, bem como os construídos”, explica Akibodé. 

Avança que o objectivo desta abordagem from bottom to top, com previsão de arranque em Julho deste ano, é estabelecer o roteiro da memória colectiva de cada concelho, no qual poderá vir a constar a antiga hidrobase da Aéropostale na Calheta de São Martinho se assim o entender a comunidade. 

 

Entre o mar, o céu e a história

Erguendo-se no meio das rotas do mundo desde sempre, as ilhas de Cabo Verde fazem a vez de uma antecâmara para as duas metades do mundo. As viagens de Cristóvão Colombo, louco pelo mundo novo e para satisfazer a rainha espanhola, de Diogo Gomes, os desvarios de Vasco Núñez de Balboa atrás do eldorado, de Charles Darwin indo ao encontro das origens, de desbravadores de oceanos, piratas e aventureiros destemidos têm interceptado Cabo Verde, quer seja por força de um itinerário difícil ou por mera estratégia de navegação. 

Toulouse, cidade do Sul da França até Santiago do Chile, representava um salto demasiado grande para aviação nas primeiras décadas do século XX. Por isso, dois pontos de paragens intermédios apareceram na rota: Saint Louis, no Senegal e Calheta de São Martinho, em Cabo Verde. Mesmo com a viagem fraccionada em vários saltos, o percurso dos estafetas aéreos da Aéropostale (pilotos militares desempregados com o fim da 1ª Guerra Mundial) tiveram que recorrer aos avisos para completar a ponte com o destino final.  

Num céu límpido de uma Primavera de 1928 o tenente Paulin Paris, pilotando um Laté, saiu do Senegal e poisou nas águas da baía da Calheta de São Martinho. As condições mínimas para a amaragem já tinham sido criadas um ano antes, mediante a instalação de uma estação de rádio e uma base marítima para hidroaviões. 

A história desta maratona aérea bordejando céus e mares, intercalada pela enseada da Calheta de São Martinho, tem o desfecho na América do Sul. Enfrentando riscos, os pilotos da companhia reduziram o prazo da chegada de uma carta à América do Sul de trinta dias para apenas uma semana.

Graças aos testemunhos literários de Antoine de Saint-Exupéry (ver Courrier Sud), a história da Aéropostale teve uma expansão à esfera universal. Devido aos riscos inerentes à travessia do Atlântico, a líder, na época, do transporte de correio na rota Europa, África e América tinha a preferência em contratar pilotos solteiros para evitar eventuais indemnizações à viúva. Sabe-se que muitos dos seus pilotos perderam a vida antes de alcançar os quarenta anos.

A ousadia valeu à Aéropostale uma ascensão meteórica em pouco tempo. Entretanto, a hydrobase viu o seu crescimento estrangulado pelo progresso da aeronáutica, que já no início dos anos trinta possibilitava travessias directas para o continente americano sem a necessidade de escala em Cabo Verde. Deste modo em 1933, a companhia aérea Aéropostale conheceu seu fim e foi absorvida pela então recém-criada Air France.

 

Do património apagado pelo tempo ao turismo light 

À volta dos escombros da antiga companhia aérea Aéropostale reside a pequena povoação da Calheta de São Martinho, tão esquecida quanto a história da extinta companhia francesa, Aéropostale. As razões para que esta mão cheia de pessoas se permaneça ali vão-se desvanecendo na aridez do solo, na miséria que se exala pela atmosfera e nas derradeiras ruínas da Aéropostale.  

Uma estrada de terra sem uma sinalização, indicando que ali no leito do remansado oceano o destemido Jean Mermoz poisou hidroaviões, dá acesso à localidade. Uma paisagem agreste, típica de uma área litoral, predomina. Animais perambulam pela povoação juntamente com crianças descamisadas correndo arco ou atiçando cães vadios. 

Pelo que se pode notar, no local ainda sobrevivem os últimos traços da passagem da Aéropostale. Uma base da potente grua, instrumento que servia para deslocar os hidroaviões para terra, alguns restos da maquinaria e meia dúzia de casas que pertenciam aos engenheiros da companhia enformam as últimas lembranças deixadas pela Aéropostale. A última intervenção feita ali é uma placa comemorativa colocada pela cooperação francesa em 1981. E em 2003 os Correios de Cabo Verde lançaram uma série de quatro selos alusivos ao 75º aniversário da hidrobase. 

Para além da história da mítica Aéropostale e dos seus bravos e acrobáticos pilotos, a localidade de Calheta de São Martinho goza de uma baía de água transparente, sempre bem abrigada do vento e da agitação do mar à espera de projetos de âmbito turístico.

Na opinião do estudioso Wlodzimierz J. Szymaniak, “Calheta de São Martinho é um local ideal para projectos turísticos de diversa índole, devido à confluência dos fatores de carácter patrimonial, histórico, biológico e desportivo”. 

Ao que pudemos constatar, as histórias da baía da Calheta de São Martinho e Aéropostale estendem-se também ao fundo do mar. A sensivelmente cinco centenas de metros do porto da Calheta de São Martinho, repousa uma embarcação que poderá ter pertencido à Aéropostale. No entanto, a sua verdadeira história trágico-marítima carece ainda de uma revelação. Emanuel Charles d’Oliveira, no seu livro Cabo Verde na Rota dos Naufrágios, limita-se apenas a mencioná-lo. 

 

O caso de sucesso do Senegal 

Este país africano, que outrora serviu de ancoradouro para a longa travessia do Atlântico empreendida pela Aéropostale na rota Europa, África e América soube preservar e tirar partido da presença dessa companhia aérea no seu território gerando dividendos através do turismo.   

Contrariamente ao que se verifica em Cabo Verde, no Senegal o legado da Aéropostale tornou-se deveras num activo turístico muito apreciado e rentável. A título de exemplo pode-se apontar o caso de Hotel de la Poste. Trata-se de um belo edifício com traços modernistas, sito na cidade de Saint Louis, que outrora albergava os destemidos aviadores da Aéropostale.

Actualmente, o estabelecimento hoteleiro promove a divulgação do passado glorioso da Aéropostale através da exposição permanente de fotografias e mapas antigos. Na mesma cidade pode-se também visitar a antiga hidrobase onde se pode apreciar o monumento do piloto Jean Mermoz.

 

Projectos que não decolaram 

Calheta de São Martinho é deveras atractiva e tem aguçado o apetite de alguns investidores. No rol dos pretensos investidores destaca-se a Santiago Golf Resort com um projecto que em tese iria gerar 3.750 empregos directos e outros 3.750 indirectos, caso fosse implementado. No entanto, a iniciativa redundou-se num verdadeiro “elefante branco”.

Em 2015, a Lusofonia Cabo Verde Eco Resort, rendida aos atractivos da localidade, apresentou um projecto de cem milhões de euros, que seriam aplicados na construção de dois hotéis de cinco estrelas, um hospital vocacionado para o turismo de saúde e uma marina. A ambição do projecto perspectivava, para além de uma marina para a localidade de Calheta de São Martinho, uma base para um hidroavião. 

Na altura da socialização do investimento desta empresa levantou-se a preocupação quanto a sua viabilidade, tendo em alerta o que se verificou com a Santigo Golf Resort. Contra todas as espectativas do então ministro das Infraestruturas Manuel Inocêncio Sousa, que até afixara a data para o arranque das obras no primeiro semestre de 2016, o projecto não decolou.

Em Junho de 2016 chegava ao público a notícia de que a Lusofonia Cabo Verde Eco Resort tinha comprado cerca de trinta hectares na Santiago Golf Resort para a construção de dois hotéis com 600 quartos. Pelos vistos, o início da construção que estava agendado para início de 2017 ainda não se materializou.

 

Embaixada da França pretende inscrever hidrobase nos circuitos turísticos

Em parceria com a UniPiaget, a Embaixada da França está a realizar um projecto de reabilitação da antiga hidrobase da Aéropostale e a promover a sua inclusão nos circuitos turísticos. O projecto terá início ainda este ano, no entanto ainda espera a conclusão dos estudos, a serem feitos por alunos da UniPiaget.

De acordo com o Embaixador da França, Olivier da Silva, para além de reabilitar o grande bloco que servia de suporte de rádio para os navios e do farol, o projecto visa também recuperar as casas deixadas pelos engenheiros da companhia, ocupadas pelos moradores/pescadores da Calheta de São Martinho. 

“Trata-se de um projecto, primeiro, de reabilitação porque é um património cabo-verdiano e ao mesmo tempo francês. E, segundo, revitalizar o conhecimento do que foi feito nos anos vinte no quadro da Aéropostale”, especifica Olivier da Silva.

Prevê-se também a realização de várias conferências sobre a temática, contando com assistências vindas de Toulouse, cidade do Sul da França onde começou a rota da Aéropostale. “Não queria que fosse esquecido o papel importante que Cabo Verde teve nesta rota, e evitar que se pense que se fez o salto de Senegal até o Brasil directamente sem passar por Cabo Verde”, revela. 

No fim do ano 2018 e início de 2019 vai completar um século do início da rota da Aéropostale de Toulouse até Santiago do Chile.

“Acho muito interessante renovar esta história que não é perdida, mas que não é muito aparente. A ideia para mais tarde seria a inclusão nos circuitos turísticos e sinalizar na via de Praia até Cidade Velha a existência da hidrobase”, perspectiva o embaixador francês.  

 

Aéropostale no tempo

1918 – Pierre-George Latécoère cria uma empresa de aviação para distribuir os correios da França para as suas colónias africanas;

1927 – Marcel Bouillour-Lafont compra 94% da empresa de Latécoère e rebatiza-a com o nome de Aéropostale;

1927 – Cabo Verde entra na rota do Atlântico Sul, com a montagem do posto de rádio na baía de Calheta de São Martinho; 

1928 - O primeiro hidroavião chega a Calheta de São Martinho, pilotado pelo tenente Paulin Paris;

1933 – Anuncia-se o fim da Aéropostale;

1982 – Cooperação Francesa coloca uma placa comemorativa na hidrobase da Aéropostale em Calheta de São Martinho;

2003 – Correios de Cabo Verde lançam uma série de quatro selos alusivos ao 75º aniversário da hidrobase da Aéropostale. 

2015 - Jessika Magdalena Tomczyk, da Universidade de Warmia e Mazury da Polónia, concebe um projecto, Design Concept of Calheta Bay On The Island of Santiago, de valorização urbanística da zona da hidrobase, como trabalho final no curso de arquitectura paisagística. 

 

 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 801 de 05 de Abril de 2017.

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Autoria:Expresso das Ilhas,8 abr 2017 6:11

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  9 abr 2017 11:34

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