Preconceitos e outras ameaças à liberdade ensombram 50 anos de Abril - Festival LeV

PorExpresso das Ilhas, Lusa,14 abr 2024 15:56

Isabela Figueiredo: "A democracia não é perfeita"
Isabela Figueiredo: "A democracia não é perfeita"

As ameaças à liberdade e à democracia, e as novas formas de censura impostas por “leitores sensíveis”, quando se assinalam 50 anos de 25 de Abril, foram preocupações debatidas no Festival Literatura em Viagem, em Matosinhos. Escritor cabo-verdiano Joaquim Arena foi um dos oradores convidados.

O Festival LeV – Literatura em Viagem, que começou no dia 8 de Abril, teve o seu momento alto no fim de semana, com as mesas de debate participadas por autores, abertas ao público.

O poema de Sophia de Mello Breyner que alude à madrugada clara e limpa, quando Portugal emergiu “da noite e do silêncio”, serviu de mote para uma mesa que juntou o deputado e historiador Rui Tavares, o jornalista Júlio Magalhães, a escritora Isabela Figueiredo e o coronel da guerra colonial Carlos Matos Gomes, também romancista, sob o pseudónimo de Carlos Vale Ferraz.

Isabela Figueiredo começou por considerar que o caminho para a democracia está permanentemente a ser percorrido e é um objectivo sempre a alcançar.

“Se até agora o caminho foi claro? Sim. Se foi limpo? Às vezes não. A democracia não é perfeita”, afirmou a autora de “Caderno de Memórias Coloniais”.

Carlos Matos Gomes pegou na ideia da “manhã clara e limpa” para assinalar que “a maior claridade atribuída ao 25 de Abril é principalmente a do direito das mulheres, que hoje consideramos um dado adquirido, mas que não era”.

Esta afirmação suscitou alguns aplausos e reacções de apoio entre o público, que aproveitou para lembrar criticamente o livro “Identidade e Família”, recentemente editado, de vários autores com uma linha de pensamento conservadora, que exalta o papel da mulher dona de casa.

Júlio Magalhães enalteceu “o regresso de muitos jovens à política e à vontade de votar”, depois de muitos anos afastados, a que assistiu no último dia 10 de Março.

Num registo mais crítico, Rui Tavares lamentou que quando se celebram 50 anos da revolução que acabou com a ditadura, se assista na Assembleia da República a quem pretenda “acabar com o caso de paixão que o povo tem com o 25 de Abril”.

O deputado pelo Livre lembrou que o século XX em Portugal “foi cortado ao meio” e que houve pessoas que viveram metade da vida em ditadura, e dirigiu um alerta aos jovens sobre as conquistas e o risco de as perder: “Tudo o que aconteceu foi belo e único, mas atenção que quando perdemos, não sabemos por quanto tempo está perdido”.

Centrando-se na liberdade enquanto “essência do ser humano”, Carlos Matos Gomes manifestou receio por ameaças que pairam a essa liberdade, comprometendo o livre arbítrio, a capacidade de pensar, criar, reagir, ver o mundo e o interpretar.

“Estamos a ir para um beco, porque nos estão a dizer que ir para o beco é a única forma de interpretar a realidade. Querem fazer-nos caminhar como o gado, como os nazis encaminharam os judeus para a câmara de gás, a mesma situação que se vive hoje em Gaza. São as várias faces da censura”, afirmou.

Debruçando-se sobre a “liberdade de ofender”, os limites da liberdade de criação e a dúvida sobre se serão os “leitores sensíveis” o novo “lápis azul”, ao serviço da inclusão, a mesa seguinte reuniu o cronista e escritor Henrique Raposo, a escritora e editora Inês Pedrosa, e o jornalista e escritor cabo-verdiano Joaquim Arena.

Reportando-se ao seu romance “Siríaco e Mister Charles”, vencedor do Prémio Oceanos 2023 na categoria de ficção, que tem como protagonista um anão com o corpo malhado (não sendo negro, nem branco), porque sofre de vitiligo, Joaquim Arena questionou como esta personagem seria tratada na língua inglesa, que, sob a tendência do politicamente correto, passou a designar os anões como pessoas baixas.

“Os anões tratados no meu livro têm esta particularidade que faz com que sejam figuras tratadas com chacota. Se alguém ler o livro falando em pessoas baixas, e não anões, perde-se todo o contexto, porque são essas características que dão o motivo de chacota. Isso é o que resulta da mudança de conceitos, quando nos confrontamos com o politicamente correto”.

Numa comparação com o teatro, o escritor considerou que o texto é como uma máscara que o actor usa em palco, a pessoa que está no livro é a personagem e não o autor.

Também para Inês Pedrosa, “o politicamente correto é terrível”, porque escamoteia a realidade: “Há a questão histórica, falar com a realidade da época, mas há também a questão do respeito pela escrita de cada autor, pelas questões estilísticas de cada escritor”.

Outro aspecto referido pela escritora é o do cancelamento, difamação e ameaças nas redes sociais, que pode acabar com a carreira de uma pessoa, que, na sua opinião, deveria ter mecanismos de regulação e uma justiça mais actuante.

Sobre a defesa da identidade – quer seja racial, de género ou outra – entre quem escreve e a personagem, a escritora deixa a questão: “Agora ficamos a escrever só sobre a nossa vidinha?”.

“Os leitores sensíveis dizem que não posso escrever sobre temas que não são a minha experiência. Se entrarmos por esse caminho vamos ficar mais racistas”, afirmou.

Henrique Monteiro iniciou a sua intervenção considerando que a pergunta deveria ser ao contrário: “Se o leitor tem direito a ficar ofendido ao ler um livro”.

“Eu acho que não tem, não tem o direito de tentar cancelar. Vivemos numa época de tribalismo, e portanto todos os dias andamos a apagar fogos de pequenas minorias que ficam ofendidas”.

Para o escritor, os chamados “espaços seguros” são a anulação da arte, a infantilização do romance, a literatura fofinha e conversa motivacional, quando a literatura “tem de ser perigosa”.

“É fascinante olhar o mundo através dos olhos de outra pessoa, ver o mundo através de uma pessoa que por vezes é o meu contrário, que vê e faz coisas que eu nunca fiz”, sustentou.

Outro ponto, para Henrique Monteiro, é que é preciso escrever sobre o que aconteceu, tem de haver uma “literatura que vai às feridas, senão vai ter personagens como o João César das Neves, que diz que as mulheres não eram oprimidas, porque não se queixavam”.

“As mulheres não tinham meios para se queixar, não sabiam que se podiam queixar, não tinham sequer literatura que as ensinasse a pensar e a dar-lhes as palavras para se queixarem. Por isso, quando queremos literatura fofinha estamos a criar situações muito perigosas”, frisou.

Pelo festival passaram ainda Afonso Cruz, Mário Rufino e Álvaro Cúria, para falar sobre a liberdade criativa, assim como Dulce Maria Cardoso, Madalena Sá Fernandes e Rafael Gallo, que debateram a liberdade de não ler um mau livro.

Um dos tópicos abordados por vários escritores foi a necessidade de mudar o modelo de educação, que força os alunos a ler determinados livros, afastando-os, por vezes, definitivamente da literatura.

Também o escritor Miguel Esteves Cardoso, que encerrou o festival com uma “entrevista de vida”, tocou nesse ponto, afirmando que a “leitura é um prazer e não funciona por obrigação”.

Tal como outros escritores, que sugeriram as escolas terem um leque alargado de possibilidades literárias que dessem aos estudantes margem para escolher o que querem ler, Miguel Esteves Cardoso afirmou que “as pessoas não devem ser obrigadas a ler, têm de ir à procura dos livros, não são os livros que vão à procura das pessoas”.

Comentando a política actual, o escritor classificou o Chega como um “laranjinha despeitado”, chamando a atenção de que “a extrema-direita não é o Chega, são as pessoas que votaram nele”.

“O Pedro Passos Coelho está a fazer uma jogada que é dizer que também há um facho no PSD: ‘Eu sou o facho no PSD’”, afirmou, levantando gargalhadas na plateia.

Sobre se este é o país que foi sonhado há 50 anos, defendeu que, “tirando o Chega, que é um borrão na pintura, portámo-nos muito bem e as coisas melhoraram muito”.

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Autoria:Expresso das Ilhas, Lusa,14 abr 2024 15:56

Editado porJorge Montezinho  em  15 abr 2024 9:37

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