Testemunhos (e reivindicações) de um sector esquecido

PorExpresso das Ilhas,15 jan 2017 6:00

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Falar de indústria em Cabo Verde continua a ser um exercício raro. O país não é conhecido pelo seu sector industrial, apesar de existirem casos de sucesso, projectos que contrariaram as probabilidades. Nesta reportagem, reunimos histórias de industriais da ilha de São Vicente. Narrativas de gente que trabalha diariamente em áreas que, por vezes, passam ao lado do grande-público e, quase sempre, à margem das prioridades dos sucessivos governos.

No programa do IX Governo não faltam referências à indústria nacional. O executivo, liderado por Ulisses Correia e Silva, quer promover a produção interna, e coloca a indústria ligeira de exportação no centro da estratégia. Virado para o mar, o Governo quer desenvolver as indústrias naval e pesqueira. De volta à terra, promete aumentar a competitividade da agro-indústria, direccionando-a para um mercado potencial de 1,5 milhões de consumidores (turistas incluídos, já se percebe).

“A retoma da aposta na industrialização de Cabo Verde deverá ser mantida como dimensão essencial do nosso modelo de crescimento económico, por força do contributo que poderá trazer em termos de aumento da capacidade exportadora, da diminuição das importações e da geração de riqueza”, lê-se na página 44 do programa de um Governo que prometeu, ainda em campanha, diminuir a burocracia e melhorar o financiamento às empresas.

Os industriais estão à espera. Expectantes – e cansados de promessas por concretizar – preferem ver para crer se, desta vez, as intenções sairão do papel.


Carlos Santos, Construções Metálicas

Carlos Santos é um produto da Cabnave. Em 2000, deixou os estaleiros, para, no ano seguinte, iniciar o seu próprio negócio. A Construções Metálicas de Cabo Verde, assim se chama a empresa, arrancou com seis funcionários (agora são 77). Tem duas unidades de produção permanentes, na Praia e Mindelo, e uma unidade temporária (com possibilidade de se tornar permanente) no Sal.

No essencial, o trabalho consiste na fabricação e transformação de todo o tipo de estruturas metálicas, ligeiras ou pesadas, serralharia civil ou mecânica, inox ou alumínio, para referir apenas alguns exemplos.

Carlos começou, em nome próprio, numa garagem. À medida que o mercado respondia favoravelmente, foi crescendo em volume de negócios, área ocupada e quadro de pessoal.

“Não nos falta trabalho”, garante, apesar de reconhecer que a situação actual não é fácil.

“A empresa cresceu, temos mais responsabilidades e, neste momento, a situação financeira de todas as empresas não é boa”, afirma.

Mesmo assim, numa época em que os principais clientes estão em Santiago (Praia), Sal e Boa Vista, “trabalho não falta”, garante.

A falta de transporte marítimo regular é um constrangimento. A ligação entre as diferentes ilhas do arquipélago é uma dor de cabeça que afecta o sector privado nacional desde há muito. O tipo de produto que sai da fábrica da Construções Metálicas exige determinadas condições de transporte. O ideal é que este seja assegurando em embarcações roll on/roll off, o que se tornou quase impossível com os afundamentos, nos últimos anos, dos navios Pentalina, Vicente e Sal-Rei.

“Para transportar uma estrutura metálica para a Boa Vista  ou para a ilha do Sal, nos barcos de passageiros, para além de ficar caríssimo, o material chega deteriorado. És obrigado a refazer a pintura  e outras reparações, porque não tens um navio adequado para transportar os produtos. Antes, conseguíamos cumprir os prazos e os materiais chegavam no destino em boas condições. Neste momento é impossível”, explica.

A escassez de soluções de transporte não implica apenas com a entrega do produto e cria constrangimentos, também, a montante, porque interfere nas negociações com potenciais clientes.

“Quando estamos a negociar uma obra e os clientes perguntam pelo prazo de entrega, a resposta é sempre: prazos dependem dos navios. E isso é um problema”, destaca.

 

Paulo Melício, Universal Rectificações

Assim como Carlos Santos, também Paulo Melício passou pela Cabnave. Em 2008, deixou os estaleiros, mas não perdeu os barcos de vista. Por conta e risco, apostou na pequena oficina que, oito anos antes, tinha montado em casa, na Bela Vista. Quis ver no que dava e correu bem. Faz agora meio ano, mudou-se para a zona industrial de Ribeira de Julião, num espaço maior e mais adequado ao trabalho que desenvolve. A Universal Rectificações dá emprego a 14 pessoas e faz questão de oferecer um serviço de standard internacional.

“Um navio estrangeiro não está à procura de um trabalho de Cabo Verde. Quer fazer um trabalho que possa ser feito aqui ou no estrangeiro. Temos que apresentar um serviço de qualidade”, diz.

O percurso não tem sido nem rápido, nem fácil, mas a confiança crescente e a publicidade ‘boca-a-boca’ traduzem-se em passos pequenos mas firmes. Com capacidade para reparar peças ou produzi-las de raiz, tem como meta a internacionalização.

A falta de matéria-prima, importada pelo próprio, é a maior dor de cabeça de Paulo Melício. É necessário gerir stocks com particular atenção, para garantir resposta, em tempo útil, às necessidades dos clientes.

“Sempre que há uma necessidade tens que te sacrificar para teres aqui, pelo menos, cinquenta ou sessenta porcento daquilo de que precisas. Caso contrário, sempre que chega um cliente, pedes para ele esperar, porque vais  pedir o material da Holanda ou Portugal e o cliente não é isso que quer. Quando chega, quer uma solução”, esclarece.

 

João Santos, Sociave

Dos três protagonistas deste texto, o terceiro será, por ventura, o mais conhecido. Médico veterinário de profissão, João Santos entrou no mundo dos negócios em 1993, para trabalhar na empresa familiar, AGROPEC. Desde então, o grupo evoluiu, para se tornar na primeira exploração industrial avícola do país. Anos volvidos, a área de negócio alargou-se para outros ramos da agro-pecuária.

Em 2007, a família adquiriu a SOCIAVE – negócio pelo qual mais dá a cara. Depois, foi a vez de apostar numa suinicultura, ainda em São Vicente. Pelo caminho, comprou um centro de incubação, em Ribeira de Julião, com capacidade para 14 mil pintos por semana. 

A última aquisição aconteceu já no final de 2016, por concurso público. O Centro Agro-Alimentar de Porto Novo, a conhecida Fábrica de Queijo, saiu do impasse em que estava há vários anos e já voltou a produzir – além de queijo, enchidos e derivados de porco. 

“O cabo-verdiano é um ser, por natureza, persistente, esperançoso”, recorda João Santos, para quem a persistência e teimosia com que enfrenta os desafios de um sector esquecido são resultado de uma forma de estar na vida, “à espera de dias melhores”.

Os investimentos não são à toa. Percebe-se a relação entre cada uma das apostas feitas pela família Santos. O objectivo é diminuir a dependência externa e maximizar os ganhos de escala, da origem do produto à sua transformação final.

Os números falam por si: quinhentas toneladas de carne de frango e vinte milhões de ovos por ano.

“Poderia ser muito mais, caso houvesse uma regulação e um controlo efectivo do produto importado. Andamos aqui a comer o lixo que vem da Europa e de outras partes do mundo. Aquilo que não se consome lá, o subproduto, vem para aqui”, declara.

A capacidade instalada, nas diferentes unidades do grupo empresarial liderado por João Santos, permite aumentar a produção e garantir a auto-suficiência das necessidades nacionais de frango.

João Santos vislumbra um “enorme” potencial de crescimento do sector no qual opera, mas pede regulação que favoreça a penetração nos mercados emergentes e turísticos de Sal e Boa Vista, através do fornecimento das grandes cadeias hoteleiras, que têm mantido um modelo de negócio que favorece os fornecedores internacionais.

“Não se consegue atingir os  maiores hotéis, estes trazem consigo os fornecedores dos países de origem. Aquilo é  uma máfia montada neste país. Terrível. Se é um grupo espanhol, traz um grupo espanhol com ele, para lhe fornecer os produtos que são importados, essencialmente, desses países. Se é um grupo italiano, idem. Não se sente e nunca se sentiu o exercício do poder do Governo”, refere.

Em Fevereiro, a SOCIAVE espera receber a certificação ISO 22000, de segurança alimentar, mas nem isso parece ser suficiente para merecer a preferência dos gigantes mundiais do turismo, instalados em Cabo Verde.

“Se nós não conseguimos atingir esses hotéis, como é que o agricultor do interior de Santiago ou de Santo Antão ou as cooperativas vão conseguir?”, questiona.

 

À espera do Governo

O sector industrial cabo-verdiano está (talvez de forma crónica) em fase embrionária e os exemplos de sucesso não são suficientes para que se conclua o contrário. Quem tem investido sente-se quase sempre sozinho, sem o respaldo das autoridades.

Paulo Melício não hesita em contrariar a orientação política dos sucessivos governos, que têm mantido o sector industrial distante das prioridades.

“Do Governo estamos e continuamos à espera de melhores dias. Segundo dizem, a indústria  é o motor de crescimento de qualquer país. Primeiro vem a indústria e depois os outros sectores, só que em Cabo Verde  teimamos em deixar a indústria para o fim”, lamenta o industrial.

No caso concreto da Universal Rectificações, Melício sente falta de uma maior aposta na formação profissional, com a tónica colocada na qualidade e até na internacionalização da mão-de-obra.

“Muitas vezes simplificam as formações neste ramo, com formações, por exemplo, de três meses. Depois, dizem ‘formámos tantos jovens’,  mas a verdade é que não formaram nada, porque na nossa área uma formação a sério dura, pelo menos, um ano. Precisamos especializar a nossa mão-de-obra. Estão todos a ir para engenheiros mas não estamos a olhar para a formação profissional”, desafia.

Sem quadros qualificados disponíveis, a Universal tem capacitado o seu próprio pessoal e espera, por essa via, uma abertura do Governo para negociar eventuais incentivos.

Afinado pelo mesmo diapasão, Carlos Santos também alerta que a resolução de parte das dificuldades enfrentadas pela empresa que dirige depende da intervenção do Governo. Uma política de incentivos fiscais e medidas facilitadoras do financiamento bancário, a juros mais baixos, são algumas ideias do responsável da Construções Metálicas.

O contexto desfavorável, os entraves criados pela máquina do Estado e sector financeiro travam o crescimento das empresas.

“Gostaria de fazer algum investimento, mas com os valores de taxas que temos é preciso pensar duas vezes”, resume.

“Outra situação tem a ver com a actualização da pauta aduaneira: temos produtos que estão sujeitos a transformação e que deviam ser isentos. Um exemplo tão claro: perfis para fazer janelas de alumínio. Até fazermos a janela temos que transformar os perfis, mas como o perfil já vem com o tratamento consideram-no um produto acabado e és obrigado a pagar direitos”, demonstra.

Da lista de reivindicações de Carlos Santos consta ainda a diminuição do tempo de desalfandegamento e a criação de um quadro legal que impeça aquilo que chama de “concorrência desleal” de empresas estrangeiras que trazem para o país o produto já transformado. “Chegam, fazem o trabalho e vão-se embora”, conclui.

De olhos postos no futuro, João Santos, da SOCIAVE, consegue vislumbrar alguns sinais positivos no Orçamento de Estado para 2017, em particular na relação entre fisco e contribuinte.

“Nós produzimos produtos de primeira necessidade, isentos de IVA, mas pagamos IVA em todos os serviços que nos são prestados, nomeadamente nas alfândegas. Temos sempre um crédito elevado no Estado para receber. Eu não posso estar a dever ao Estado, tenho obrigação de pagar, mas o Estado está a dever e não me paga. Neste momento já há uma efectiva conta corrente”, exemplifica.

O empresário, “liberal por natureza”, não quer protecção do Estado. Pede apenas que cada um cumpra o seu papel, para que todos possam ganhar.

 

 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 789 de 11 de Janeiro de 2016.

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Autoria:Expresso das Ilhas,15 jan 2017 6:00

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  16 jan 2017 15:41

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