E como é que vocês partilham esse trabalho?
O nosso centro de documentação tem permitido que muitos investigadores tenham acesso a documentação sobre o teatro em Cabo Verde. E pelo menos umas cinco teses de doutoramento já foram feitas com base na nossa documentação. Eu não sei se há tantas na área da música. Dou-te um exemplo concreto: uma professora da Universidade de Valência fez uma tese de doutoramento sobre as nossas adaptações crioulas de Llorca. Ela veio, estudou tudo sobre o teatro em Cabo Verde, acompanhou a montagem de Bodas de Sangue em crioulo e fez uma tese chamada Llorca Crioulo. Já foram feitas teses de doutoramento sobre circulação de espetáculos, festivais, dramaturgia, e o CEDIT tem permitido esse trabalho de investigação.
Como é que tu vês o teatro em Cabo Verde a evoluir, a reunir um capital para o futuro? Com formação? Com universidades?
No que diz respeito ao teatro, devemos começar pela base – como em tudo; não podemos construir o edifício pelo telhado; e a base está nas escolas, na formação. E o que é que estamos a fazer? Estamos a construir a base sem arquitetos, sem engenheiros. Estamos a implementar o ensino artístico no ensino oficial, mas sem preparação. No que diz respeito ao teatro, sem professores preparados do ponto de vista pedagógico. Está em curso uma revisão curricular – com a qual eu concordo; mas para essa revisão ser implementada, seria fundamental a formação de professores também na área do ensino artístico, e na área específica do teatro.
Eu vou te dar um exemplo e gostaria que comentasses: essa revisão curricular vai instituir aulas de empreendedorismo e os professores do ensino secundário tiveram acesso a cinco dias de formação para poder ministrar essa disciplina.
O meu comentário é que esses professores têm muita sorte (risos)! Tiveram cinco dias de formação para implementar essa disciplina. Os professores que foram escolhidos para dar drama não tiveram essa oportunidade. Eu sou contactado muitas vezes por professores aflitos que me dizem, “João, um mesteb! Ke material é k’m ta usá? Um meste bos consei porque na escola es one m ti ta ba da teatre”. Eu ajudo no que posso, mas as coisas não deviam ser feitas assim.
Como é que deveriam ser feitas, no que ao teatro diz respeito?
Eu escrevi uma vez no meu blogue Café Margoso sobre essa questão. O jornal A Nação pegou na crónica e escarrapachou-a na 1ª página do jornal. “João Branco bate forte e feio no ensino do teatro”. A resposta da responsável do Ministério da Educação foi muito interessante; que os professores estão preparados porque tem uma disciplina de expressão dramática no Instituto Pedagógico. Eu fui me informar. É uma disciplina semestral, com 3 meses de aulas, uma aula por semana, em que o próprio professor não tem preparação em expressão dramática.
Neste quadro, qual será o objetivo de instituir aulas de expressão dramática?
Certa vez eu disse que hoje, o teatro é poder. Temos um Ministro da Cultura que é dramaturgo; o Diretor Nacional das Artes é ator e encenador; o teatro dá visibilidade, e logo é poder; é uma arte apetecível neste momento. Fica bem dizer que há teatro nas escolas. Fica bem. Eu penso e defendo que deveríamos começar pela formação de professores – mas seriamente, feita como deve ser. Se trazem professores de fora para ensinar valências onde nós não temos experiencia, porque não trazer professores de fora formados em pedagogia teatral? A própria Associação Mindelact assinou um acordo com a maior escola de artes cénicas da América latina. Se nós, uma ONG, conseguimos chegar a instituições desse nível, qual é a dificuldade dos órgãos do Estado entrarem em contacto com essa ou outras escolas e universidades e dizer-lhes: ‘meus Srs., queremos implementar o teatro nas escolas e queremos formar professores nesta área; como é que podemos fazer isso? É possível cederem-nos um conjunto de professores para dar formação a professores?’
Qual tem sido o relacionamento institucional entre o Ministério da Cultura e o Mindelact??
Ótimo. Antes de ser ministro, o Mário Lúcio Sousa escreveu que o Mindelact deveria ser classificado como património da nação. O apoio do Ministério tem sido fundamental, e deste Ministro também. Há muitos países ditos evoluídos que não têm a cultura inscrita como um dos eixos estratégicos de desenvolvimento nacional. O Mário Lúcio Sousa consegui uisso e eu acho que é algo histórico. Agora, se me perguntares se esse apoio podia ser mais, claro que podia. E gostaria que o Ministro viesse mais vezes – ele só veio uma vez até agora, e acredito que a sua agenda não lhe permita estar aqui mais vezes connosco. Mas continuo a acreditar que ele é um fervoroso apoiante do teatro, de uma forma em geral.
Há uma abordagem à cultura em Cabo Verde que eu acho perigosa e gostaria que comentasses, que é o entendimento da cultura exclusivamente como folclore. O Mindelact diverge desse entendimento mais conservador da cultura. Como é que as instituições aqui se relacionam com a criação contemporânea?
Eu acho essa componente cultural que diz respeito ao folclore importantíssima – até porque a criação artística bebe muito nela. Na adaptação da Tempestade de Shakespeare que fizemos no ano passado, os ritmos crioulos estão todos lá – funaná, mazurka, morna. Mas também acho o seguinte: a cultura de forma geral – e o MC em particular – têm relacionamentos estratégicos com outros Ministérios, certo? A componente do folclore deve ter um relacionamento específico com o Ministério do Turismo; a questão do ensino das artes nas escolas tem uma ligação direta com o Ministério da Educação; mas a criação contemporânea é a única que está exclusivamente ligada ao Ministério da Cultura.
O mercado doméstico de Cabo Verde tem apenas 500 000 pessoas. O que o turismo pode representar para a internacionalização da nossa expressão artística? Não vês no Mindelact a possibilidade de exportar o teatro de Cabo Verde?
Ele já faz isso há muito tempo. O teatro Cabo-verdiano internacionalizou-se de uma forma clara, e um dos motivos foi o Mindelact. Agentes teatrais e programadores vêm ao festival, estabelecem-se contactos e, 6 meses depois, há grupos locais a ir para o Brasil, para Portugal, para Angola. Hoje em dia é inconcebível organizar um festival de teatro lusófono e não convidar um grupo de teatro de Cabo Verde. Porque na África dita lusófona de quem é que se ouve falar mais? Do teatro de Cabo Verde. Porquê? Por causa do Mindelact.
Daniel Monteiro, o Presidente da Associação Mindelact, referiu a insuficiência das salas de espetáculo. Como é que tu – como encenador e como produtor – desenharias o espaço de representação para o Mindelo?
Um espaço grande significa manutenção. O Mindelo não tem como sustentar grandes auditórios com palcos de 3000 lugares. A grande frustração dos grupos de teatro nacionais, no que diz respeito ao mercado, é que passamos três meses a ensaiar um espetáculo e, passadas duas ou três apresentações, já toda a gente o viu. Aquilo que eu defendo para o Mindelo são salas pequenas, multifuncionais, com bancadas amovíveis e 100 a 120 lugares. Isto é muito mais barato – construção e manutenção – do que um teatro tradicional.
Pela tua experiência como é que esse tipo de investimento foi feito em outras paragens? Foi o Estado, as parcerias ou foram as próprias companhias?
Na maior parte das vezes são as companhias, com o apoio substancial do Estado. Em Mindelo, com uma estrutura desse género, conseguiríamos ter teatro todos os fins de semana do ano. E durante a semana? Aulas de teatro para crianças, para jovens; aulas de teatro para professores...(risos). É um drama querermos fazer teatro e não termos como, fisicamente.
Qual é a importância das receitas de bilheteira para o orçamento do festival?
Nos anos passados, a bilheteira tem coberto cerca de 20% do orçamento, o que é bastante razoável. Mas eu sempre defendi que os bilhetes deviam ser ainda mais baratos. O festival é feito para a população. Este ano, para veres todas as peças pagas sete ou oito contos. Eu defendo que uma solução poderia passar pelo Ministério dizer que o Estado tem interesse em que vá mais gente aos espetáculos. Os produtores em vez de cobrarem 500 CVE, cobram 250; os outros 250 paga o Ministério.
Não achas que há algum perigo em depender do Estado para subsidiar o nosso consumo cultural?
Porque é que ninguém fala nessa questão no que diz respeito ao Carnaval? Ou ao festival da Baía das Gatas, que é sustentado maioritariamente por dinheiros públicos? Porque é que ninguém diz isso em relação à educação? Nós estamos a fazer educação. Eu sou a favor do subsídio direto do consumo da cultura, como está a acontecer no Brasil com as bolsas de cultura. Por insistência minha, os espetáculos da Teatrolandia são grátis; mas não eram. Não é que não valorizemos os artistas do teatro infantil, é uma questão de estratégia: aquilo que semeias hoje, colhes amanhã; as crianças que vão ao teatro hoje são as que comprarão bilhetes amanhã.
Na conferência de imprensa na 6a feira falaste na “economia de afetos” que sustenta o Mindelact. Como é que funciona? Qual é a moeda?
O Kretcheu, mas não o de papel; Kretcheu for real. As equipas que trabalham no festival representam uma componente humana incrível: nós temos gente que se levanta às seis da manhã; sai do trabalho às cinco e meia da tarde e às seis está no Centro Cultural do Mindelo, pronto para trabalhar para o festival, de graça. Eu digo sempre a esse pessoal: não temos muita coisa; mas temos a possibilidade de receber bem. Temos a possibilidade de fazer os artistas sentirem-se acarinhados. Eu já fui a muitos festivais com a minha companhia; e não há nenhum que trate o artista como o Mindelact trata. Claro que há festivais que nos tratam muito bem; mas nunca ao nível do Mindelact. E a economia de afetos parte daí. Depois as pessoas chegam aqui, veem e perguntam como é possível que uma cidade como o Mindelo, num país como Cabo Verde tenha um festival assim? E são companhias que já viajaram por todo o mundo. Isso toca as pessoas. E depois há um terceiro fator, que é o público. Atribuímos no mês de Março o prémio de mérito teatral; e atribuímos um prémio ao público do Mindelo. Eu já fiz teatro em muitos outros países; e o público do Mindelo é de facto um público especial. Vai ao teatro porque gosta verdadeiramente de teatro; vai para apreciar e reconhece o esforço, até quando vê que está mal feito. O teatro é acima de tudo uma arte que vive da troca de energias entre palco e plateia. A troca de energia no teatro em São Vicente é muitíssimo forte; os artistas sentem isso e querem voltar. Eu definiria a nossa economia de afetos com essas três componentes.
Falando do público de São Vicente, o que tem ditado as escolhas da programação?
Quando faço a programação procuro ter sempre presente duas coisas: a qualidade e a diversidade; interessa trazer espetáculos que sejam de linguagens artísticas diversas, de proveniências diversas, estilos de representação diversos...
Quais têm sido as preferências do público Mindelense? O teatro clássico ou o experimental?
Aquilo que a minha experiência me diz é que o público do Mindelo não gosta sobretudo de ser enganado. E o tipo de teatro que muitas vezes nos tenta enganar é aquele que designamos por “contemporâneo” – com muitas “aspas”. O público Mindelense reconhece o falso, mas reconhece quando o contemporâneo é de facto contemporâneo. Vou-te dar um exemplo: no ano passado estiveram cá Os Satyros –uma companhia bombástica de São Paulo – com uma peça chamada “Inferno na Paisagem Belga” sobre os poetas Rimbaud e Baudelaire. O espetáculo fazia gente do público dizer poemas de Baudelaire em crioulo; fazia perguntas picantes ao público sobre quem já fez e quem já não fez; tinha a projeção de um nu integral de um dos atores numa das paredes. A cena do julgamento do Baudelaire foi encenada com um ator completamente nu, aberto e indefeso. O público do Mindelo aplaudiu esta peça de tal forma que Os Satyros disseram que foi o seu espetáculo mais intenso, apesar de já o terem representado mais de 500 vezes. O público reconheceu a honestidade e a verdade daquele trabalho. Mas quando se vem aqui com pseudo teorias e pseudo intelectuais, na passagem de pau, es ka ta podê. E as pessoas cobram-me a mim (risos) ‘John, sinceramente, kasta de kosa é es’?
E o teatro Cabo-verdiano? O que é que tu vês acontecer nas companhias de cá?
A grande maioria das pessoas que fazem teatro aqui no Mindelo foram meus alunos. Orgulha-me verificar que pessoas que começaram a fazer teatro no CCP estão agora a fazer coisas muito diferentes umas das outras. Para mim é motivo de orgulho enquanto pedagogo, porque demonstra que não estou a tentar fazer cópias de alguma forma “correta” de fazer teatro. O que fazemos é tentar fornecer ferramentas, e a possibilidade de esses grupos simplesmente verem coisas. Um dos principais travões ao desenvolvimento do teatro em Cabo Verde antes do aparecimento do Mindelact era que as pessoas não viam teatro; não tinham referências. E hoje podem trabalhar com manipulação de objetos, com máscaras, podem trabalhar com mil técnicas diferentes porque têm as referências e podem experimentar. E nesse sentido, o teatro Cabo-verdiano é muito ousado; até atrevido. Mas eu gosto dessa coragem, desse atrevimento.
Achas que São Vicente detém uma vantagem no contexto do teatro nacional?
Obviamente. A principal é o festival. A outra é o trabalho do Centro Cultural Português aqui na área da formação. Essas são as duas vitaminas sem as quais nenhuma atividade pode nascer: referências e formação de base. Em todas as profissões, temos que estar constantemente atualizados; no teatro é a mesma coisa. E o Mindelo tem essa grande vantagem: tem uma formação que é contínua – neste momento no CCP temos uma oficina permanente de teatro para crianças. E dessas crianças, a maioria vai continuar a fazer teatro, é uma coisa que fica embrenhada.
E em 20 anos? Como será a edição de 2034, a celebração da 40ª edição do Mindelact?
Gostaria de ver os espaços físicos multiplicados. O espaço que temos agora é belíssimo mas já não responde às necessidades do festival. Gostaria que houvesse três ou quatro pequenos teatros na cidade, o que permitiria às companhias apresentar as suas peças mais vezes.
Em 2034, como seria a relação do Mindelact com as instituições culturais em Cabo Verde?
(risos) Eu nem sei se haverão instituições culturais em Cabo Verde em 2034. Repara: vem um Governo a seguir e acaba com o Ministério da Cultura e tu fazes o quê? Vai ver o historial do pelouro da cultura no Governo de Cabo Verde: nós já tivemos o Ministério da Cultura acoplado ao Ministério da Defesa – o que eu acho genial, é a defesa da nossa identidade (risos). Mas para responder à tua pergunta, em 1994 eu nunca poderia imaginar que em 2014 estaríamos onde estamos. Para mim é impossível fazer uma previsão desse tipo. Eu nem sequer sei se vai haver Mindelact em 2015.