Humbertona grande Violão Cabo-verdiano

PorExpresso das Ilhas,20 nov 2016 6:00

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Humbertona significa violão, grande violão cabo-verdiano. Porque há um estilo de tocar violão cabo-verdiano. Em Humbertona esse estilo se cristaliza num diamante: rítmica, bordões, solos e improvisos e até percussão no espelho do violão.

 

Naturalmente que antes e depois de Humbertona, guitarristas de mérito existiram e existem. Mas a sua originalidade e intuição na escolha judiciosa de um vasto reportório, fazem de Humbertona um dos maiores guitarristas cabo-verdianos que se dedicam à morna e à coladeira, dois géneros tão primos-irmãos.

Humbertona emprestou à tradição do violão cabo-verdiano uma notável particularidade: a subtileza e a elegância, no sentido da simplicidade aristocrática, isto é, da excelência. Em todos os álbuns que gravou, estão a emoção e a grandeza de uma alma de artista, sobretudo na morna mas também na coladeira. A grande referência, e com absoluta justeza, foi o álbum Sodade, acompanhado pelo excelente guitarrista Toi d’Bibia. Rapsódia de mornas e coladeiras. Um marco decisivo na música instrumental de Cabo Verde, que posteriormente nunca deixou de encantar gerações de melómanos e onde muitos guitarristas se foram inspirar.

O estilo de Humbertona é único, de um lirismo romântico, onde está subjacente o espirito musical destas ilhas. Daí que a sua arte nos toca profundamente e se torna universal.          

Vamos ao princípio: a data e local onde nasceu.

Nasci em Santo Antão, Tchã de Manilin, Concelho de Porto Novo a 17 de Fevereiro de 1940.

 

Os primeiros estudos?

Primários em S.Vicente, com a professora Inácia Bettencourt (minha mãe) e liceais no Liceu Gil Eanes em S. Vicente.

 

Primeiros estudos do violão. 

Comecei aos 12 anos com o Mestre Reis (solfejo durante 3 meses) e a seguir, com Malaquias Costa (violão) em S. Vicente, durante um mês e meio, depois foi tocando com amigos, tocatinas, serenatas etc. Tudo em S. Vicente onde vivi desde os 2 anos de idade.

 

Qual o guitarrista que admira? Ou outro músico. Compositor? Cantor?

Luís Rendall e Lela Preciosa e mais tarde Baden Powel, Luís Bonfá, Toquinho, Bau, Voginha, Kim Alves, Manel Candinho, Hernani etc. Compositores B.Leza, JMonte, Manel de Novas, Eugénio Tavares, Betu, Nhela Spencer, Vlu, Constantino, Morgadinho, Ano Nobo, Paulinho Vieira, mas também Mozart, Vivaldi, Chopin, Vasco Martins, Caetano Veloso, Vinícius de Morais, Toquinho, Chico Buarque, Rui Veloso…

 

O posterior itinerário estudantil-politico.

Após o serviço militar em Portugal, regresso a S. Vicente em finais de 64, onde fui cofundador do Conjunto Ritmos Caboverdianos, tocando guitarra solo, com os irmãos Marques da Silva e Nho Djack Felícia. Em 66, após um mês em Lisboa com o conjunto Ritmos Cabo-verdianos, separo-me do conjunto e vou para a Bélgica onde inicio os estudos universitários na Universidade Católica de Louvain, onde me licenciei em Economia Aplicada (Gestão). Simultaneamente me dedico à causa da Independência de Cabo Verde, ingressando no PAIGC em finais de 66; ao mesmo tempo continuo com a musica, tendo gravado 7 LP’s a solo e acompanhando vários artistas (Bonga nos seus primeiros dois discos, Luís Morais etc.). Os 2 primeiros LP’s a solo, foram gravados na Holanda com Waldemar, Franck e Tols. De um modo geral, os discos eram gravados na Holanda com músicos Cabo-Verdianos ali residentes ou de passagem, designadamente vários elementos do conjunto Voz de Cabo Verde, (Chico Serra, Luis Morais, Franck Cavaquinho, Toi de Bibia, Morgadinho) para além de Piuna, Tazinho e outros.

 

Os discos de ‘Protesto e Luta….

Também participei na edição de dois discos no quadro da Luta de Libertação, sob a série Protesto e Luta, sendo um de poesia de denúncia e combate como declamador, e outro de músicas de denúncia do sistema colonial, acompanhando o vocalista Nho Balta. Grande parte da atividade politica em que me enquadrava era dirigida à comunidade CV residente em Rotterdam, com edição de boletins de informação e eventos diversos para informar e mobilizar cabo-verdianos para a causa da independência. Os encontros com dirigentes do PAIGC (Amílcar Cabral, Aristides Pereira etc.) tinham lugar na Suécia e por vezes na Bélgica ou na Holanda. No plano artístico participei num filme e numa peça de teatro, ambos na Bélgica, e em vários ‘shows’ com diferentes artistas. Costumo dizer que o meu violão foi a minha bolsa de estudos, pois numa base semiprofissional, a atividade artística me permitiu garantir o pagamento das minhas despesas com os estudos universitários.

 

Quais os primeiros discos que gravou?

Antes do primeiro LP, gravei, em Lisboa em 1966, com os Ritmos Cabo-verdianos, um primeiro disco de 45 RPM com 4 músicas, em que o vocalista era Longino Baptista. O primeiro LP, gravado na Holanda sob a chancela “Morabeza Records” foi “Lagrimas e Dor”, publicado em 1967. Seguiram-se “Morna ê ka sô dor”, “Dispidida” com Piúna, “Stora-Stora” com Marcelo e Waldemar, Sodade, com Toi de Bibia, Chico Serra e Humbertona, Angola 72, e Angola 74 (com Bonga)

 

O LP ‘Sodade’. Uma obra-prima. Curioso: a afinação é -65 cents do La internacional. Foi afinação de ouvido?

Foi afinação de ouvido entre o meu violão e o do Toi de Bibia. Preparei a estrutura do disco na Bélgica (sozinho porque Waldemar já tinha partido para se juntar ao PAIGC em Conakry) e parti para Paris onde já se encontrava o Toi de Bibia. Lá fizemos os ensaios durante alguns dias e marcamos a data da gravação com Morabeza Records na Holanda, através do proprietário da gravadora que era Djunga de Biluca. Cronometramos as duas rapsódias (Mornas e Coladeiras) para dar cerca de 15 minutos de cada lado.

 

Porquê o distinto músico Toi d’Bibia?

Com o Toi eu tinha ligações de amizade e também familiares com a esposa Dudu, que é minha prima. Além disso tivemos uma longa convivência que vinha desde a formação do Conjunto ‘Voz de Cabo Verde’ e o Toi tinha um excelente acompanhamento que me agradava muito e se encaixava perfeitamente na minha forma de dedilhar. De assinalar que na altura da gravação (1973) o Conjunto original ‘Voz de Cabo Verde’ já se tinha desmantelado: Franck Cavaquinho, Chico Serra e Luís Morais voltaram para Cabo Verde, Toi de Bibia e Morgadinho foram para França e Djosinha e Jean da Lomba foram para os USA.

 

Uma das características de ‘Sodade’ é a ‘suavidade tropical’. Deveu-se também à inesperada escolha de cordas nylon para a época?

Quando iniciei os primeiros passos no violão, era com cordas de metálicas e nos Ritmos Caboverdianos também toquei com cordas metálicas, até porque usava guitarra elétrica. A partir de 1966, já na Bélgica, passei a usar cordas de nylon que davam uma sonoridade mais suave. Todos os meus discos foram gravados com cordas de nylon, com exceção de “ Chico Serra e Humbertona” que gravei com a guitarra elétrica que pertencia ao conjunto Voz de Cabo Verde, que nessa altura atuava numa ‘boite’ em Rotterdam (La Bonanza).

 

A gravação é soberba. Na verdade, no violão cabo-verdiano continua a ser uma referência. Onde gravaram?

-‘Sodade’ foi gravado na Phonogram Studio, em Hilversum que na Holanda é conhecida como Cidade da Rádio.

 

A fita teve cortes de tesoura  (montagem)?

Os estúdios de gravação, montagem etc. são dirigidos por profissionais na matéria, de modo que o artista não intervém nos detalhes do trabalho técnico. Faz sucessivas audições para corrigir o que não ficou bem e se necessário repete a gravação. Só sei que a consola de gravação tinha muitas pistas independentes, creio que 24, e cada instrumento entrava na sua pista e posteriormente se fazia a mistura. Eu, como era estudante no país vizinho, fazia as gravações e voltava para a Bélgica.

 

Quantos ‘overdubbs’ foram feitos?

Dois ou três ‘overdubbs’. No meu caso terei feito 3 porque meti alguma percussão no lado Coladeira, utilizando a caixa do meu violão.

 

A rapsódia obedeceu a um esquema antecipado ou foi feita no estúdio?

A opção de fazer em rapsódia foi minha e do Toi; ensaiamos a sequência das músicas em Paris. Mas no estúdio fizemos alguns ajustamentos. Quis fazer algo diferente da forma tradicional de gravar músicas de Cabo Verde. O formato em Rapsódia e o solo utilizando os bordões terão sido as novidades dessa experiencia musical. Na altura confesso que desconhecia a recetividade que esse modelo experimental poderia vir a ter. Mas se volvidos 40 anos o disco ‘Sodade’ ainda é uma referência, é porque terá certamente marcado um momento.

 

A escolha do título. Na altura já conhecia o famoso tema ‘Sodade’?

O tema “Caminho Longe” que mais tarde se viria a chamar “Sodade”, era já conhecido em S. Vicente, trazido de S. Nicolau, salvo erro por Amândio Cabral que era oriundo da região de Tarrafal de S. Nicolau (Praia Branca), onde a musica teria nascido, sendo a autoria atribuída a um compositor de nome Armando Zeferino. Nos anos 50 um grupo de S.Vicente que se chamava “Los Pantchos” integrado por Eduardo de Jon Xalino, Pirra e Caduka, tinham essa música no seu reportório e fizeram uma gravação na Radio Barlavento. É bom que se diga que a expressão Saudade/Sodade andava na boca dos emigrantes longe da terra. Presumo até, que essa expressão terá chegado a Cabo Verde com os descobridores que certamente sentiram saudades da família ao deixar a Terra. Não deixa de ser curioso o facto das gentes do Algarve, de onde partiam as caravelas, pronunciarem Sodade, tal como a versão crioula. Confesso que ao dar o nome de SODADE ao meu disco, não me referia à música “Quem mostrób esse Caminho Longe” ou simplesmente “Caminho Longe”. Enquanto emigrante na Terra Longe, tinha Sodade da minha terra e das minhas gentes e, em 1973, quando se fez a gravação, as minhas hipóteses de regressar a Cabo Verde eram remotas, por razões de ordem política. Foi assim que me veio a ideia de chamar ao disco ‘Sodade’. Conheço dezenas de mornas cujas letras contem a palavra Sodade, que se tornou num lugar-comum na existência do cabo-verdiano.


Breve análise de ‘Sodade’ de Humbertona

Produção: Morabeza Records, Holanda, 1973

Rapsódia de Mornas

Tonalidade: La menor (diapasão 440 Hz, menos 65 cents)

Introdução com acordes cíclicos de 8 compassos, expressão rítmica:

A-/D-/G/A-/F/E7/E7/A-

Baixos do violão.

Melodia da morna Lora de Djack de Carmo (em forma ABC> AA´BB´CC´´)

De novo os acordes cíclicos, com improvisações e frases melódicas, com apogiaturas, tremolos. Entrada da ‘choradinha’, no segundo movimento cíclico.

Morna ‘Persiguida’ de Luís Rendall e B.Léza (AABB), com repetição.

Terceiro ciclo de acordes com improvisação e entrada de uma nova ‘choradinha’

Morna ‘Mal de Amor’ de Eugénio Tavares (AA´BB`)

Esquema cíclico, com improvisações melódico-rítmicas, aceleração do tempo.

Morna ‘Meu bem se eu não te amo (AB)

Improvisação com frases da morna ‘Meu bem se eu não te amo’

Esquema cíclico rítmico com progressivos baixos nos bordões do violão. Entrada de uma nova ‘coradinha’. Clímax. Aceleração

Fade out a partir de 15:18 até 15:35

Andamentos metronómicos (bpm)

Principio: semínima: 72

Meio: semínima: 84

Fim: semínima: 96

Eis uma aproximação da escrita para violão da sequência cíclica usada por Humbertona e Toi de Bibia, como movimento introdutório. Optou-se, nesta primeira versão pela técnica dedilhada. Originalmente Humbertona como Toi d’Bibia tocam a técnica do violão cabo-verdiano, cuja dedilhação é com o polegar e o indicador, com partes de ‘rasgueado’, (que vai ser estudado com aplicação escrita):

A Morna e o violão são inseparáveis. Os compositores e intérpretes sempre usaram o violão como o instrumento polifónico mais acessível que poderia inspirar, acompanhar e ajudar na composição ou expressão das melodias da Morna.

O violão deve ter chegado a Cabo-Verde aí por volta de 1850/60, ou via Portugal ou via Brasil, já que foi nessa altura que também se espalhou pelo mundo. Como se sabe, teve a sua origem no alaúde árabe e foi em Espanha que nasceu o violão moderno em 1850, finalmente traçado pelo espanhol António Torres, espalhando-se então rapidamente pelo mundo. Em Portugal, segundo Tomás Borba, o violão é a designação portuguesa para a guitarra e tinha a função principal acompanhar a modinha (forma muito popular de canção da época) e os fados. Acredita-se, tanto no Brasil como em Portugal que o nome ‘violão’ derivou do termo ‘viola’, instrumento semelhante ao violão, mas mais pequeno. Como a guitarra espanhola era maior, o ‘ão’ pode ser uma amplitude verbal.

Como é bastante provável que a Morna nasceu na ilha da Boa Vista, é também coerente que o violão tivesse aí tido uma maior representatividade. De facto a tradição oral indica que foi nesta ilha que nasceu uma forma ‘suis generis’ de tocar o violão, com o ritmo mais acelerado, ‘rubato’ e o jogo dos bordões. Os posteriores guitarristas desta ilha, tais como Luís Rendall, Pedro Magala, Ângelo Lima e Voginha, levam a crer que, com a forma de tocar, que assim foi. Mesmo os músicos mais conhecidos que não nasceram na Boa Vista, como por exemplo o Humbertona ou Bau, possuem essa original técnica, que é adaptada conforme o temperamento ou os temas que tocam.

A sequência cíclica

(muitas vezes usada por Humbertona)

Uma das formas mais comuns de tocar o violão da Morna, sobretudo em rapsódias e improvisações, é a sistematização de ciclos de acordes que em geral são de 4 ou 8 compassos. As tonalidades mais usadas, naturalmente são La, Mi e Ré (nos tons menores) e La, Mi, Ré, Sol e Do nos tons maiores. Isso deve-se á tessitura do violão e o uso dos graves, como também ao conforto das posturas. Mas todos os mestres podem tocar em qualquer tonalidade. 

Eis um exemplo simples em La menor com um ciclo de acordes de 4 compassos. Utiliza-se, para uma mais ampla compreensão, a escrita de acordes norte-americana jazzística. Deve-se lembrara que A=La, B=Si, C=Do e assim sucessivamente.

O acorde tonal (Am) - o acorde de passagem grau I sétima (A7) - o acorde de IV grau (Dm) - o acorde de passagem VII grau maior (G) - de novo o acorde tonal (Am) - o acorde de passagem VI grau (F) - o acorde V grau sétima (E7):

 

Os mestres-violão tocam com a mão direita o polegar e o indicador, o que é de uma maior eficacidade no jogo rítmico sincopado, no uso dos bordões ao mesmo tempo que os acordes que são executados normalmente com a técnica do ‘rasgueado’. Muitos sentem-se mais à vontade com esta técnica, outros avançaram para o violão dedilhado, isto é tocando com os 4 dedos da mão direita. Nos solos a situação é idêntica. É uma técnica peculiar. Pode ser paradoxal, mas a melhor maneira de a aprender de forma eficaz é a tradição oral, isto é, trabalhar diretamente com um mestre-violão.


 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 781 de 16 de Novembro de 2016.

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Autoria:Expresso das Ilhas,20 nov 2016 6:00

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  2 jan 2018 18:45

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