Nomeado para o cargo na sequência das eleições europeias de 2019 e reconduzido em março de 2022 -, Charles Michel anunciou no passado fim de semana que não completará o segundo mandato de dois anos e meio, que expiraria no final de novembro, dado ter decidido candidatar-se às eleições europeias de junho encabeçando a lista dos liberais belgas do MR, segundo vários observadores já com o objetivo de assegurar outros 'voos' políticos.
Esta saída precipitada e inédita de Michel inquieta Bruxelas e muitos Estados-membros por se dar num período particularmente crítico, abrindo a porta à possibilidade de ser o primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, o mais eurocético dos 27, a dirigir os trabalhos das cimeiras europeias em plena negociação da nova moldura institucional da União Europeia (UE) na sequência das eleições para o Parlamento Europeu. Mas constitui apenas o mais recente de uma série de episódios que levam muitos dos críticos do antigo primeiro-ministro belga a acusarem-no de pensar mais na sua carreira pessoal do que nos interesses do bloco europeu.
"O capitão abandona o navio no meio de uma tempestade. Se é assim que está tão pouco empenhado no destino da União Europeia, então qual é a sua credibilidade como candidato?", questionou na sua conta oficial na rede social X (ex-Twitter) a eurodeputada neerlandesa Sophie in't Veld, uma das principais figuras da bancada dos Liberais europeus (o Renovar Europa).
Criado em 2009 com o Tratado de Lisboa, o cargo de presidente do Conselho Europeu foi assumido até agora por três homens, dois dos quais belgas, todos antigos chefes de governo: Herman van Rompuy, entre 2009 e 2014, o (agora de novo) primeiro-ministro polaco Donald Tusk, entre 2014 e 2019, e Charles Michel, entre 2019 e 2024. Michel é o primeiro a não cumprir o mandato até ao fim.
As imagens que mais perdurarão do 'reinado' de Charles Michel, de 48 anos de idade, serão a constante e evidente rivalidade com a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, em busca de maior protagonismo sobretudo na cena internacional, a polémica em torno das suas frequentes e onerosas deslocações, muitas vezes com recurso a aviões privados, mas, sobretudo, a pobre gestão na preparação e condução das cimeiras de líderes da UE -- a principal missão do presidente do Conselho Europeu.
Em seu favor, o dirigente belga poderá argumentar que teve de presidir ao Conselho Europeu num contexto particularmente difícil, numa primeira fase devido à pandemia da covid-19 -- que forçou mesmo a que durante muitos meses boa parte dos trabalhos tivesse de ser realizada com recurso a videoconferências -, e depois devido à agressão militar da Rússia à Ucrânia.
No caso da resposta à pandemia, a verdade é que esta foi em grande medida conduzida pela Comissão Europeia -- caso da histórica aquisição conjunta de vacinas -, e Charles Michel ficará sobretudo lembrado pela gestão pouco hábil das negociações entre os 27 em torno do gigantesco plano de recuperação pós-covid, a chamada 'bazuca', com muitos a recordarem a cimeira de julho de 2020, que se tornou a segunda mais longa da história da UE, ao arrastar-se por quatro dias e quatro noites, entre muitas críticas às propostas inviáveis que o presidente do Conselho ia colocando sobre a mesa para tentar conciliar os interesses dos países 'frugais' e restantes.
Entre outras cimeiras recordadas por muitos diplomatas com longa experiência em Bruxelas como das mais caóticas em muitos anos, e que mais exasperaram líderes à volta da mesa, conta-se um Conselho Europeu celebrado a 23 e 24 de março do ano passado, durante o qual alguns chefes de Estado ou de Governo intervieram mesmo para expressar críticas à forma como os trabalhos estavam a ser conduzidos, algo extremamente raro em Bruxelas.
Foi o caso da primeira-ministra dinamarquesa, Mette Frederiksen, que usou da palavra para deplorar a forma como Michel permitia debates sem fim e alternados sobre matérias tão diferentes como apoio à Ucrânia, migrações e economia, sem tomada de decisões, numa cimeira cuja confusão permitiu a líderes voltarem a colocar sobre a mesa propostas que já haviam sido afastadas em sede de reuniões preparatórias ao nível de embaixadores.
Já quanto à resposta à invasão russa da Ucrânia, é certo que, pelo menos até recentemente, o bloco comunitário conseguiu uma resposta unida como poucos antecipariam, mas vários analistas consideram que tal não se deve ao mérito negocial de Charles Michel, que, de resto, em dezembro passado, viu o Conselho Europeu terminar sem um acordo sobre o apoio financeiro à Ucrânia, face ao bloqueio da Hungria 'de' Viktor Orbán.
A falta de 'mão dura' face às persistentes 'chantagens' de Orbán é, aliás, outra das falhas apontadas por críticos de Charles Michel ao seu trabalho à frente do Conselho Europeu.
O apoio à Ucrânia originou também diversos episódios que deixaram à vista de todos a relação tensa entre Michel e Von der Leyen - possível também por o Tratado de Lisboa atribuir igualmente ao presidente do Conselho, além da preparação e presidência das cimeiras, representação externa da UE, ainda que esteja sobretudo a cargo do alto representante, Josep Borrell -, quando Charles Michel viajou de surpresa até Kiev a 19 de janeiro do ano passado, duas semanas antes de uma cimeira UE-Ucrânia, numa aparente 'jogada' de antecipação a uma visita à capital ucraniana de Von der Leyen e de vários membros do colégio da Comissão, anunciada dias antes.
Mas o episódio que mais terá marcado negativamente a imagem de Charles Michel e ditou em definitivo a relação fria entre os dois líderes ocorreu durante uma deslocação de ambos a Ancara a 07 de abril de 2021, para um encontro com o Presidente turco, Recep Tayyip Erdogan.
A reunião no palácio presidencial ficou marcada por um incidente diplomático motivado pelo facto de estarem apenas reservadas cadeiras para Erdogan e Charles Michel, enquanto para Von der Leyen estava destinado um lugar secundário num sofá lateral - razão pela qual o incidente ficou conhecido como 'sofagate' -, que a presidente da Comissão ocupou nitidamente contrariada, enquanto o presidente do Conselho se instalava confortavelmente na sua cadeira, o que lhe valeu acusações de sexismo e de pactuar com a 'provocação' de Erdogan.
"Senti-me magoada, sozinha, como mulher e como europeia", assumiu Von der Leyen depois do incidente.
A concorrência com Von der Leyen em busca de protagonismo na cena internacional estará também na base de outra das principais críticas feitas a Michel, a de que dedicou mais tempo a viagens ao exterior do que a fazer o seu trabalho em Bruxelas, e que foi reforçada quando, em abril, o jornal francês Le Monde publicou um artigo a dar conta de que as despesas de deslocação do dirigente belga eram muito mais elevadas do que as dos seus antecessores, sobretudo devido à utilização frequente de aviões privados, mesmo para viagens curtas, como a Paris, Berlim e Estrasburgo, o que levou de resto vários países a questionarem o Conselho.
A decisão, legalmente legítima, de Charles Michel de abandonar a liderança do Conselho Europeu em julho, para mais à luz de eleições europeias que poderão ditar uma mudança do tradicional equilíbrio de forças na UE face à ascensão da extrema-direita, e consequentemente complicar as negociações entre os 27 sobre quem ocupará os lugares institucionais de topo da UE nos próximos anos, não ajuda a que o dirigente belga venha a ser recordado com nostalgia em Bruxelas, tendo merecido críticas mesmo de vozes da sua própria família política europeia.