Miss Governação

PorRosário da Luz,4 fev 2013 0:27

Tendemos a conceber a liderança como concebemos o carisma: como uma habilidade pessoal, um dom individual dissociado do contexto que o produz. Mas as visões ou vontades de indivíduos carismáticos só se convertem em lideranças se encontrarem ressonância num coletivo. A competência social para produzir e absorver as lideranças necessárias ao momento é um capital indispensável na gestão das conjunturas desfavoráveis. Lideranças não se destinam a promover nem as mais nobres causas individuais; destinam-se a articular clara e produtivamente os anseios do coletivo. A sua arma é a narrativa e a sua missão é a canalização do potencial latente da comunidade para a transformação do status quo.

Quais são as nossas necessidades de liderança neste momento? Temos uma maioria parlamentar e um Governo que enfrentam uma séria crise de credibilidade desde o início da legislatura; cuja vitória num terceiro mandato não foi baseada positivamente num programa, mas negativamente nos receios de uma população insegura. Temos uma oposição que ataca há treze anos o histórico e o desempenho da situação com as mesmas prédicas apocalípticas; mas que em 2011perdeu as eleições legislativas pela terceira vez consecutiva, provando no processo o esgotamento desse discurso. Temos cidadãos que vivem sem segurança, sem trabalho, em burgos desorganizados e com serviços públicos deficientes, mas que são incapazes de utilizar os meios políticos e cívicos efetivamente ao seu dispor para alterar a sua realidade. Neste momento, por razões distintas, todos os setores da política Cabo-verdiana vêem-se sob o imperativo de reinventar conceitos, atos e falas. A exigência do contexto atual sobre a situação, a oposição e a cidadania é uma modificação categórica do paradigma de gestão e dos discursos vigentes. No futuro imediato, a perspicácia, a iniciativa e a criatividade serão cruciais para a sobrevivência de organizações e indivíduos.

Decorreu recentemente na cidade da Praia o concurso para “Miss Africa Ocidental 2013”. Segundo o press do certame, este foi estabelecido em 2008 com o objetivo de formar, entre outras competências, “futuras líderes” para a região. Efetivamente, todas as concorrentes afirmaram que o seu principal desejo “ é ver a África melhor”. Expuseram os seus projetos “para que, caso forem eleitas, a África seja um continente de oportunidade para todos.” Os seus planos incluem “Tirar as crianças da rua, ajudar os idosos e os órfãos, acabar com a pobreza e promover o turismo e a educação.” Parece brincadeira de jornal: quem consegue descobrir as diferenças entre o concurso “Miss Africa Ocidental”, a linha discursiva do Governo de Cabo Verde e a plataforma da Oposição?

Nesta triste conjuntura da nossa sociedade, o público Cabo-verdiano baixou as suas expectativas a ponto de esperar dos seus líderes o mesmo que espera de uma miss. Não espera rasgos de originalidade conceptual ou criatividade discursiva; não espera espontaneidade ou o mínimo de sinceridade. Não espera nenhum talento, nenhuma força excecional. Não espera nada para além do vago, superficial, genérico e ensaiado. As misses não sobem ao palco para que acreditemos no que dizem; para que apostemos na sua capacidade de criar dinâmicas de transformação na economia e na sociedade. O que esperamos das concorrentes num concurso de beleza é uma demonstração de conformidade canina a um sistema estético-ideológico. Ganha quem melhor representar o guião visual e narrativo.

Por um lado, há muito que a ambição das estruturas políticas em Cabo Verde não é transformar a sociedade; apenas obter ou manter o poder político, alargando continuamente a sua clientela. Por outro lado, temos eleitores desinformados sobre paradigmas alternativos, ou intimidados pela perspetiva do desconhecido, que pretendem apenas a sobrevivência satélite na rede estatal. As lideranças são talhadas para satisfazer as expectativas das organizações e comunidades que as produzem. É evidente que os líderes que se destacam neste contexto não são os detentores das visões transformadoras; são aqueles que prometem a continuidade do habitat.

Os últimos quinze anos marcaram a maturação de um conjunto de processos de relevo na sociedade Cabo-verdiana: a alternância política, a liberalização económica, o investimento estrangeiro no setor turístico, a crise subsequente do investimento estrangeiro e, finalmente, a redução da ajuda ao desenvolvimento. Ou seja, o início da nossa atualidade e da necessidade de um dinamismo muito mais transversal do que aquilo que tem sido necessário ou demonstrado até agora na sociedade Cabo-verdiana. Como nos temos comportado ao longo deste período, no que respeita a produção das lideranças necessárias ao momento? É legítimo questionar se está na natureza das nossas maiorias reinventar-se. Mas esqueçamos a maioria. A verdadeira questão é se a sociedade Cabo-verdiana tem a capacidade de se reinventar quando a sua sobrevivência está em jogo; seja através da maioria, da oposição ou da sociedade civil.

Sociedade Civil. A democracia exige competências que não se obtêm de um dia para o outro; e não nos faltam fundamentos históricos para a exiguidade das nossas referências políticas. Mas diz a sabedoria popular que cada povo tem o Governo que merece. Enquanto eleitores numa democracia, somos cabalmente responsáveis pelo nosso destino político. Não está muito claro se solicitamos, promovemos, toleramos ou suportamos as lideranças medíocres que se nos apresentam de forma sistemática. Mas não as rejeitamos de forma decisiva, nem produzimos alternativas. Por essa razão, partilhamos plenamente o ónus do vazio político que vivemos no momento.

Oposição. Desde 2001, a oposição em Cabo Verde tem uma única verdadeira força, que tem elegido muitos dirigentes mas produzido poucas lideranças. A oposição ao partido único tinha-lhe valido a maioria eleitoral em 91; mas a utilidade desta linha discursiva esgotou-se, naturalmente, em 2001 com a vitória popular dos antigos “ditadores”. Apesar disso, o discurso foi mantido intacto durante anos, composto posteriormente por acusações alinhavadas de irresponsabilidade económica. Ao longo de treze anos, não surgiu no seio da oposição nenhuma liderança nacional que articulasse uma estratégia clara de consolidação da estrutura, com vista á reconquista do poder; nenhuma liderança capaz de mobilizar os militantes e a sociedade nessa base, apesar das enormes brechas abertas progressivamente pela situação. 

Situação. A legislatura de 2001-2006 teve início na sequência da inusitada confusão política de finais dos anos noventa. Num ambiente fervilhante de rumores e de alegados desvios, a então oposição produziu algumas lideranças que ganharam relevância numa plataforma de credibilidade e transparência. Esta narrativa foi profícua, tanto interna como internacionalmente: chegamos a ganhar o título de Miss Governação Africana e, com a tiara, um conjunto apreciável de donativos que sustentaram durante algum tempo a reprodução do habitat. Á narrativa da credibilidade seguiu a do investimento externo e depois a da transformação económica.

Discursivamente, vivemos durante anos num delírio de viragem; mas nenhuma liderança ousou ainda articular a reestruturação material do paradigma económico ou o engajamento real da população na preparação do país para os desafios que já cá estão. O resultado foi que, com o advento de uma conjuntura menos favorável, a dissonância entre a ficção discursiva e a realidade observável fez-se sentir imediatamente após a conquista do terceiro mandato. O desgaste económico generalizado, as Presidenciais de 2011, as Autárquicas de 2012 e o próprio Congresso de lista única provaram conclusivamente a extrema dificuldade que o Executivo e o seu partido experimentam na produção de lideranças. Mesmo após o desmoronamento de todas as suas narrativas, inclusive a de relevâncias eleitoral, é patente a incapacidade orgânica da situação de dissociar-se quer do discurso falido, quer do modelo de gestão: o processo de transformação virtual já foi prorrogado virtualmente para 2030; e, apesar da bancarrota intelectual da Administração Pública e do seu clientelismo rompante, continuamos a falar de credibilidade e meritocracia. O eleitorado.cv não é propriamente assertivo e tem uma tolerância espantosa pela inércia e pela demagogia; mas perante a precariedade da sua sobrevivência imediata, não sei se continuará a perdoar este vazio de liderança

 

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Autoria:Rosário da Luz,4 fev 2013 0:27

Editado porExpresso das Ilhas  em  31 dez 1969 23:00

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