Malaca, crioulos asiáticos

PorJosé Almada Dias,3 ago 2013 0:00

Existem crioulos na Ásia com quem qualquer cabo-verdiano pode conversar em crioulo de Cabo Verde! Numa viagem à Malásia pude conversar e confraternizar com eles, experiência que partilho de seguida.

 

Purgueira no  mundo e a identificação crioula entre  cabo-verdianos  e brasileiros

Em Fevereiro de 2010, eu e o meu primo Edério Almada empreendemos uma viagem à Ásia para assistir a uma conferência sobre biocumbustíveis em Kuala Lumpur, capital da Malásia.

Na mala levávamos o conhecimento de que o óleo extraído da purgueira de Cabo Verde foi o combustível usado para iluminar as ruas das cidades de Lisboa e Rio de Janeiro. Com alguma “garganta” crioula, quase que podíamos afirmar que o nosso país já foi exportador de combustíveis (pena que não havia uma OPEP nessa altura!).

Logo na primeira intervenção da conferência, ficámos a saber pela boca de um brasileiro que o sabão da Corte Real de Portugal era feito a partir de purgueira vinda de Cabo Verde. Ficámos tão surpresos como ficou o conferencista “brazuca” quando, no primeiro coffee break, fomos ter com ele dizendo que éramos de Cabo Verde. Ele nunca tinha conhecido cabo-verdianos na vida dele e não estava à espera de encontrar logo dois em plena Malásia!

A delegação que acompanhava esse empresário produtor de biodiesel a partir de purgueira no Brasil incluía membros do Governo do Estado de Tocantins e do Governo Federal – é sempre assim, onde os empresários brasileiros vão, estão sempre acompanhados pelas autoridades regionais e federais numa promoção conjunta do país, um filme que vi nas diversas conferências, sobretudo de turismo, a que assisti por esse mundo. Que sortudos são os empresários brasileiros!

Escusado será dizer que passámos todos os dias na companhia dos nossos irmãos brasileiros, entre almoços e jantaradas, numa identificação habitual entre cabo-verdianos e brasileiros lá onde se encontrem. E na Malásia não foi diferente e 3 meses depois o empresário “brazuca” estava no Mindelo para nos visitar.

 

Malaysia truly Asia

 

A Malásia tem cerca de 28 milhões de habitantes, dos quais 67% de malaios, 24,6% de chineses, 7,3% de indianos, entre outras etnias. Um verdadeiro caldeirão de povos asiáticos. Compreende-se que o slogan  deste turístico país seja “Malaysia truly Asia”. O culto guia/condutor que nos levou a Malaca é um exemplo disso: malaio, filho de pai indiano e mãe chinesa.

A meio da viagem de 4h de “hiace” entre Kuala Lumpur e Malaca, ao ouvir-nos a falar em crioulo, perguntou-nos de onde vínhamos. Ficou surpreso quando falámos em Cabo Verde, pois pensou que eu era árabe e tinha ficado espantado com o pedido de viagem a Malaca, pois os árabes que vão de férias à Malásia não se interessam por cultura, apenas por farra! Quando lhe dissemos que íamos a Malaca para tentar descobrir uns malaios descendentes de portugueses que falavam uma língua semelhante à nossa, disse logo que toda a gente os conhecia e que lhes chamavam os “portuguese”! E ainda acrescentou que o Edério se parecia com eles (eu continuava a lembrar-lhe os árabes que iam de férias à Malásia).

 

Orgulho lusitano em Malaca

 

Visitar Malaca é realmente um acto de cultura. Cidade-porto com uma localização priveligiada, possui uma enorme densidade de museus, templos religiosos e uma arquitectura diversificada, testemunhos dos vários povos que por aí passaram. A cidade foi um importante entreposto de comércio de chineses e indianos e esteve sob domínio português, holandês e inglês. É comum numa mesma rua encontrarmos um templo hindu, outro chinês e ao lado uma igreja católica.

Fascinante foi a visita a uma réplica de uma caravela portuguesa em tamanho real, um dos maiores atractivos turísticos da cidade. Os portugueses só estiveram 130 anos em Malaca (entre 1511 e 1641), mas o governo malaio faz questão de mostrar esse legado e com isso diversificar a sua oferta turística. Compreende-se que a Malásia seja um dos famosos Tigres Asiáticos, com um rápido e invejável desenvolvimento!

Dentro da nau existem figuras em tamanho real dos navegadores portugueses, incluindo Afonso de Albuquerque, o estratega da conquista de Malaca. Reza a história que, dada a importância do porto no comércio de especiarias, Afonso de Albuquerque ordenou aos seus marinheiros para casarem com malaias, e trouxe mulheres portuguesas para desposar malaios, uma inteligente estratégia de conquista pela misciginação. Há registos históricos de terem acontecido mais de 100 casamentos, daí resultando a comunidade de crioulos malaios com ascendência portuguesa, os “portugueses” de Malaca, uma comunidade hoje espalhada igualmente pelas cidades de Kuala Lumpur e Singapura. Para além desses casamentos há menções de vários autores de que os portugueses terão trazido para Malaca escravos africanos que se misturaram igualmente nessa comunidade. E há quem sustente que esses escravos poderão ter vindo de Cabo Verde!

Do alto da coberta da réplica da caravela portuguesa de Afonso Albuquerque, com Malaca a meus pés, ouvindo os guias turísticos a contar esta epopeia lusitana, senti de repente um desavergonhado orgulho nas minhas costelas lusitanas. Nascido numa geração que assistiu à independência de Cabo Verde, aprendi a ter uma relação ambígua com os portugueses, de modo que a minha primeira reacção foi tentar afastar essa inoportuna sensação. Mas rapidamente compreendi que estava errado. Os Descobrimentos também são uma conquista minha, pois nós, cabo-verdianos, na qualidade de descendentes de portugueses, fazemos parte e somos o resultado dessa grande epopeia, com tudo o que ela teve de muito bom e de muito mau. Se os malaios se orgulham disso, apesar de os portugueses terem sido expulsos de Malaca pelos holandeses desde 1641, porque é que nós não podemos sentir o mesmo?! Afinal, não foi o próprio Amílcar Cabral que disse que a luta era contra o fascismo português e não contra o povo português?! E Cabral desposou uma portuguesa...

Na longínqua Malásia, em território supostamente neutro, despi a couraça e reconciliei-me comigo próprio e com a minha História, uma catarse necessária que só pecou por tardia!

 

O encontro com os crioulos de Malaca

 

Depois do almoço, chegámos finalmente ao bairro português (portuguese settlement). À entrada do bairro, existem posters gigantescos dos habitantes locais vestidos com trajes tradicionais portugueses a dançar o vira do Minho! Gente que tem apelidos como Sequera (Sequeira), Aranjo (Araújo), Tissera (Teixeira), Silva, Gomes, entre muitos outros nomes portugueses.

Era domingo à tarde e infelizmente havia pouca gente na rua, com um calor de quase 40ºC. Fomos a um bar onde encontrámos o primeiro “português”. Depois das apresentações, puxei do meu melhor crioulo de Santiago, aprendido em tenra idade quando era estudante na bonita e pacata vila de Assomada. A conversa decorreu normalmente, nós no nosso crioulo de Cabo Verde (nas duas variantes) e o Nick Tissera no seu papiá criston (ou kristang).

Ele disse-nos “nôs no ta papiá kriston ou old portuguese”. Falámos de Cabo Verde e Portugal e da comemoração em Malaca das festas juninas, em que envergam trajes tradicionais portugueses e dançam o vira do Minho (e que eu tinha visto num programa da RTP uns anos antes). São João e São Pedro são os pontos altos, particularmente este último, que é o padroeiro dos pescadores.

Tentei falar em crioulo com a moça que nos servia no bar, mas ela só respondia com tímidos sorrisos. O Nick disse-me “el tem um poco di bergonha”. As novas gerações parecem ter mais relutância em falar a língua materna com estranhos.

Quando dissemos que tínhamos que regressar a Kuala Lumpur, o Nick disse “nhôs ficâ, Domingo no tem Intrudo; no ta bai pa missa, depôs no ta quei na festa”!

Estávamos a uma semana do domingo de Carnaval. O Nick explicou que o Intrudo deles consistia em, depois da missa, irem de porta em porta com mangueiras para regarem os vizinhos e amigos nas suas casas. À noite, seguir-se-iam bailes até à Terça-feira Gorda, ou dia de Intrudo (Carnaval). Tal e qual o Entrudo que se praticava em Portugal há vários séculos!

O convite foi bastante sedutor e estivemos tentados a mudar a viagem. Infelizmente, tal não foi possível.

 

Crioulos de base  portuguesa no mundo

 

A língua materna dos “portugueses” de Malaca, o papiá criston, é um crioulo de base lexical portuguesa, como explica a investigadora Dulce Pereira no seu livro Crioulos de Base Portuguesa. Lendo esse livro (gentilmente cedido pelo meu amigo Tiago Leão), fiquei a saber que existem crioulos de base portuguesa espalhados por vários continentes: na Ásia, em várias cidades da Índia (Diu, Damão, Bombaim, Korlai, Quilom, Cananor, Tellichey, Cochim, Vaipim, Coromandel e Bengala), do Sri-Lanka, antigo Ceilão (Trincomalee, Batticaloa, Mannar e Puttalam), na Malásia (Malaca, Kuala Lumpur e Singapura), nalgumas ilhas da Indonésia (Java, Flores, Tenate, Ambon, Macassar e Timor), em Macau e Hong-Kong; em África, em Cabo Verde, Guiné-Bissau, Casamansa (Senegal), São Tomé e Príncipe e na ilha de Ano Bom (Guiné Equatorial); na América existem ainda crioulos com forte influência lexical portuguesa, casos do papiamento das ilhas caribenhas de Curaçau, Aruba e Bonaire e ainda do saramacano no Suriname.

 

Strela di cu cumprido

 

O povo crioulo de Malaca tem uma deliciosa forma de denominar uma estrela cadente: strela di cu cumprido! Faz todo o sentido! Às crianças chamam crença-macho e crença-fema, dizem hómi, boca lebi (falador), rabentá (arrebentar), suá (suar), bai (ir), barê (varrer), bazá sangui (hemorragia), biziá (vigiar), bocê (tu, você), brem-brem (barulho), brigá, brincá, cabá, cada-bez, cada-qual, cagá, cantá, coza, dodo, dôs bêz, duenti, fitisera, fretá (alugar), grándi, greza (igreja), grosera (mulher vulgar), impê (de pé), imbigo (umbigo), infadá (enfadar), jugadêra (jogadora), labá-limpá (lavar e secar), lêti (leite), mintira, morrê, ondi, onti, palabra, papiá, ragaçá, rastá, rudiá, scondê, screbê, sonhá, soltá, sperá, spada, tapá, etc., etc.

Palavras para quê?! Não parece uma mistura de crioulo de Santiago e de São Vicente, ou Sotavento e Barlavento? Pelo menos em Malaca não existe o problema das variantes...

Quase que custa a crer que esta língua, que se transmite apenas por via oral há mais de quatrocentos anos, por apenas cerca de quatro mil almas católicas no meio de um país de milhões de muçulmanos, tenha sobrevivido inclusive a proibições e perseguições religiosas, designadamente dos holandeses, que proibiram a utlização da língua e as tradições “portuguesas”.

Qual será a razão desse inacreditável feito? Qual a explicação para esta “teimosia” em manter vivas tradições e uma herança cultural portuguesa por gente que nunca esteve em Portugal?! A investigadora portuguesa Dulce Pereira afirma que a religião poderá ter sido um factor decisivo.

Esta comunidade piscatória, durante séculos esquecida, tornou-se hoje um atractivo turístico. O Governo malaio, sábia e pragmaticamente, ao se aperceber do súbito interesse pelas festas dos crioulos “portugueses” de Malaca (consideradas as mais animadas da Malásia), tem vindo a prestar-lhes todos os apoios. O turismo parece ser a solução para os jovens “portugueses”.

 

Sorriso crioulo nas alturas

 

Na viagem de regresso, a KLM cancelou o voo e fomos transferidos para um avião da Malaysia Airlines. Os deuses estavam realmente de feição! O mesmo tipo de avião (Boeing 747), mas a qualidade de serviço passou a ser outra: asiática!

Logo à partida, notámos que uma das hospedeiras tinha uma beleza que a distinguia das outras. Não deixava de ser malaia, mas com traços diferentes. Na qualidade de bom crioulo cabo-verdiano, logo a seguir ao jantar, na primeira oportunidade, meti conversa com a dita aeromoça (o equivalente em calão jovem mindelense seria “meti-lhe uma frase”).

Comecei a contar-lhe como gostei da Malásia, a ida a Malaca, a experiência única de comunicar na minha língua materna com um povo tão afastado geograficamente. À medida que ia falando, reparei que ela ia abrindo um encantador sorriso, provavelmente o sorriso mais bonito que já vi a 11 mil metros de altitude. Acabei  por perguntar-lhe porque razão sorria e ela respondeu-me: “sou de Malaca, o meu nome é Anete Perera” (Pereira)! Realmente as estrelas estavam em conjugação! Ainda tive tempo de lhe dizer que provavelmente ela poderia ser parente do primeiro Presidente da República de Cabo Verde, após o que ela teve que voltar aos seus afazeres. A viagem à longínqua Malásia não poderia ter tido melhor fecho!

No caminho de regresso ao Carnaval do Mindelo, após uma maratona de 21 horas de voo e seis descolagens e aterragens (via Amsterdão, Londres, Lisboa, Praia e finalmente Mindelo), ficámos com a certeza de que algum dia voltaremos para festejar com os nossos irmãos crioulos de Malaca o Intrudo, ou as festas juninas de São João e São Pedro.

 

Língua(s), Identidade e Pátria(s)

 

Dulce Almada, eminente filóloga e investigadora cabo-verdiana, no seu livro Bilinguismo ou Diglossia, afirma que “a língua é uma das manifestações mais marcantes da identidade cultural de um povo”. Presumo que não estarei longe da verdade ao dizer que a língua é também pátria!

Regressei da Malásia infinitamente mais rico. Aprendi que para além de ser cabo-verdiano, tenho uma pátria que é a língua portuguesa, que me liga aos meus irmãos timorenses, macaenses, moçambicanos, angolanos, são-tomenses, guineenses, brasileiros e portugueses, mas que também possuo uma outra pátria que é a língua crioula cabo-verdiana com que posso comunicar com os povos crioulos e irmãos de Malaca na Malásia, de vários pontos da Índia, da Indonésia, da China e do Sri-Lanka (terra do meu amigo Asangha que hoje vive na Praia), da Guiné-Bissau, Casamansa e Ano Bom, a juntar aos crioulos caribenhos das ilhas de Curaçau, Aruba e Bonaire.

A minha identidade crioula está espalhada por esse Mundo e tenho ainda muitos irmãos e parentes para visitar e conhecer....

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Malaca

Autoria:José Almada Dias,3 ago 2013 0:00

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  31 ago 2020 23:09

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