O fundamentalismo é articulado habitualmente como a aderência estrita a uma doutrina política ou religiosa, um território conceptual situado entre a China Maoísta e a República Islâmica do Irão. Costumamos dotar o seu semblante de um carácter extremista religioso, racista, xenófobo e sexista; imaginamos Ayatollahs, Texanos evangelistas, partidos Nazistas e o Ku Klux Klan. Mas e se ao invés de narrativas de danação, supremacia e exclusão, o fundamentalismo se armasse de discursos de inclusão social, promoção regional, empoderamento de género e valorização cultural? E se, entre nós, a persecução de objetivos eminentemente democráticos, tais como a representatividade, a preservação cultural e a equidade, fosse marcada por uma ortodoxia extremista? Reconhecê-la-íamos como tal, no contexto da modernidade.cv?
Na modernidade, o fundamentalismo ideológico não se manifesta exclusivamente no terreno do Estado ou da Fé. Muito pelo contrário – e não obstante a robusta continuidade de fundamentalismos nacionalistas e religiosos pelo mundo afora – o princípio da rigidez doutrinária adaptou-se admiravelmente ao secularismo e à pluralidade, porque também se pluralizou. Protegido por constituições democráticas que consagram a descentralização ideológica, o fundamentalismo agora manifesta-se de forma fragmentada, na recusa de pequenos grupos de interesses em abrir a sua doutrina ao questionamento intelectual e ao debate social. Este neofundamentalismo ideológico – onde os protagonistas professam a pluralidade de ideias, mas demonizam qualquer antagonismo à sua própria ortodoxia – tem-se feito sentir com toda a força nos domínios institucional, académico, cívico e privado das democracias liberais, levando os teóricos da modernidade a identificar avatares tão exóticos como o fundamentalismo constitucional e o fundamentalismo ateu.
Cabo Verde não tem Católicos que defendem os valores da Inquisição, e muito menos Imãs que advogam o Jihad; já tivemos uma experiência de ortodoxia política marxista-leninista-nacionalista, mas esta terminou há mais de vinte anos, colocando-nos – em termos constitucionais – entre as mais modernas democracias mundiais. Infelizmente, o fundamentalismo ideológico.cv não se extinguiu com a ortodoxia pós-revolucionária e, tal como nas tais modernas democracias liberais, continua a manifestar-se vivamente nos campos institucional, cívico e intelectual. Só que o seu efeito sobre o nosso pequeno universo é muito mais pernicioso, porque a pluralidade Cabo-verdiana é meramente formal.
Um grupo de interesses só logra reproduzir-se se tiver acesso a recursos materiais e sociais que são, por natureza, limitados. Em Cabo Verde, os recursos materiais e intelectuais disponíveis para o suporte de linhas ideológicas não são apenas exíguos, mas continuam centralizados pelo Estado. Se as ideologias alternativas não encontram qualquer suporte material ou simbólico fora da esfera estatal, não existe pluralidade para além da nominal, e esta é esgotada no antagonismo entre interesses partidários. Neste contexto, o Estado retém o poder para tiranizar ideologicamente a cidadania porque continua a constituir o seu ganha pão quase exclusivo (quem diz pão diz salários, subsídios, financiamentos, viagens, formações e oportunidades de investimento).
Se em sede de partido único a ortodoxia regulava oficialmente o acesso à oportunidade política e social, em sede de democracia ela continua a regular oficiosamente o acesso à oportunidade profissional e económica. Consequentemente, o fundamentalismo ideológico continua a atrofiar a maturação da sociedade e o progresso da mentalidade.cv. O nosso neofundamentalismo encontra-se firmemente alojado no corpo de atores institucionais, académicos e kulturais Cabo-verdianos, e entre os seus domínios de eleição encontram-se as narrativas nacionais de regionalização, kultura e género. Este conjunto temático não é aleatório, assim como não o são inúmeros outros vícios da nossa atualidade conceptual; a incidência privilegiada do fundamentalismo ideológico nestes domínios resulta diretamente da eterna dialéctica.cv, entre o que é financiável pela comunidade internacional e o que traz retornos na plataforma popular.
As políticas de promoção de género, por exemplo, são altamente financiáveis pela comunidade internacional. As narrativas de género que predominam entre os nossos “parceiros de desenvolvimento” têm o carácter defensivo das ideologias forjadas na adversidade, numa realidade histórica completamente diversa da nossa. Mas na lógica da ajuda externa, os projetos não são financiados pela sua pertinência, e sim pelo seu conformismo; e para desbloquear recursos remotamente controlados há que reproduzir os scripts certos, facilmente inteligíveis para quem controla o dinheiro. Se não há recursos soberanos para formulações ideológicas autónomas, a ansiedade pela satisfação do financiador externo impera, e o terreno fica automaticamente planado para o estabelecimento de uma ortodoxia determinada por sensibilidades que são completamente alheias à configuração local do problema.
Entretanto, é criada toda uma classe de profissionais institucionais, consultoras, palestrantes e artistas do género, tanto nacionais como estrangeiras, cujos serviços integram estas modalidades de financiamento. Todo este círculo tem o pleno entendimento de que os recursos que suportam não só as políticas institucionais que lhes pagam os salários, como também as suas viagens ao Brasil, as suas formações em Portugal, as suas comissões e os seus cachets, só são desembolsados mediante uma reprodução adequada da ortodoxia institucional vigente, ela própria abjetamente tributária da ortodoxia Ocidental. Será legítimo pedir a toda esta cadeia que pare de se alimentar? Onde estão as fundações, as editoras e a academia com os recursos independentes para empregar os ideólogos alternativos da problemática do género e investir na produção de contraditórios? Não existem e, consequentemente, ao menor sinal de contestação, todo este conjunto económico sem alternativas coliga-se num fanatismo defensivo do seu tacho, e caracteriza qualquer debate intelectual como um ataque endemoninhado ao nobre objetivo da equidade.
Outro terreno fértil para o fundamentalismo.cv tem sido o da kultura. O nosso extremismo não é feito apenas de conveniências financeiras; também é feito de inseguranças psicológicas, enraizadas em perturbações económicas, demográficas e culturais recentes. Nos últimos 30 anos, duas dinâmicas dramáticas, relacionadas entre si, marcaram indelevelmente a nossa auto-percepção: a afirmação da hegemonia económica e demográfica de Santiago e a urbanização acelerada da sociedade.cv.
Em Santiago, a mais intensamente rural das ilhas Cabo-verdianas, a exposição súbita às tensões da existência urbana resultou numa profunda nostalgia pelo aconchego dos códigos tradicionais. É claro que as ambições da maioria estão progressivamente fixadas na cidade, mas não sem conflito: a insegurança cultural e um grave sentimento de desadequação social conduziram a uma veneração crescente pela tradição agrária de origem escravocrata, coletivamente erigida em únika autêntika kultura.cv. A nossa ortodoxia cultural contemporânea aquartelou-se no Pelourinho da Cidade Velha e decretou que qualquer narrativa de origem diversa não poderá representar mais do que um Cabo Verde ptod aga. Perante esta realidade eleitoral, e coerente com as suas políticas eminentemente populistas, o Estado Cabo-verdiano dedica-se de corpo e alma á propagação e ao financiamento desta tipologia de fundamentalismo, promovendo variados projetos de imortalização do bersu da nasionalidadi, enquanto ignora neuroticamente o Carnaval do Mindelo.
O discurso de regionalização que se faz ouvir atualmente em diversos quadrantes do arquipélago, particularmente no Mindelo, foi uma das consequências diretas dos moldes de afirmação da hegemonia de Santiago, e evidencia outro foco interessante de fundamentalismo.cv. O Mindelo já foi, no início do século XX, a única economia urbana nacional com recursos privados para investir em alternativas ideológicas e culturais. Ficou-lhe o acervo e a tradição, mas o suporte material que lhe financiava a criatividade autónoma ruiu: primeiro com a decadência do Porto Grande; depois com a estatização radical da economia no pós-independência e a sua centralização na Capital. Objetivamente, o Mindelo não deixou de ser o segundo polo político e económico do país; mas também objetivamente, é óbvio que no momento encontra-se muito aquém do seu potencial de produção cultural, particularmente no quadro da sua especificidade histórica e social. O produto ideológico deste colapso é um fundamentalismo derrotista, que se exprime em construções de vitimização extrema; o revés da fortuna Mindelense não passa do fruto dos sucessivos abusos políticos e administrativos perpetrados pela “República de Santiago” e calculados para humilhar a altiva nação sampajuda. Qualquer contestação desta ortodoxia do vazio culmina imediatamente numa acusação generalizada de conluio com a referida “República” e numa perda imediata de pureza ritual.
Em jeito de conclusão, gostaria de terminar com as palavras de um conferencista anónimo, citado pelo New York Times num fórum sobre esta matéria: “Na sociedade secular contemporânea, as formas tradicionais de fundamentalismo religioso e nacionalista não encontram muito espaço. Mas em contrapartida, a transmutação do fanatismo em dinâmica secular – igualmente rígida, igualmente tirânica, igualmente disfuncional e anti-intelectual – deveria causar-nos a mais séria inquietação”.