Baltasar, o crioulo cabo-verdiano atlântico e republicano

PorExpresso das Ilhas,26 abr 2014 0:00

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Cabo Verde é um arquipélago crioulo onde vive um homem crioulo e cujas crioulas são cantadas na música popular. Baltasar Lopes da Silva.

Acabo de ler o livro Baltasar Lopes, um homem arquipélago na linha de todas as batalhas da autoria de Leão Lopes e que resultou da sua tese de doutoramento com o mesmo título. Trata-se de uma obra fabulosa, leitura obrigatória para todos os cidadãos deste pais e para aqueles que se interessam pela cultura e história de Cabo Verde e a sua relação com o mundo e com ideais da liberdade. São vários os sentimentos que nos assaltam ao longo destas 457 páginas, com especial relevo para a indignação: indignação pela História sofrida deste país e das suas gentes, pela forma enviesada como essa História nos é contada e “ensinada”, mas sobretudo indignação pela forma como a figura ímpar que foi Baltasar Lopes da Silva foi subtraída do nosso conhecimento colectivo, do nosso dia-a-dia.

No ano passado escrevi uma crónica de homenagem a Baltasar Lopes da Silva, a 23 de Abril, data do seu nascimento, que circulei entre amigos e que este jornal quis publicar, tendo eu recusado. Penitencio-me por isso, porque hoje, 21 de Abril de 2014, perguntei a uma turma de alunos universitários por que razão se comemora o Dia do Professor no dia 23 de Abril, e não houve um que soubesse! No próximo mês de Julho serão licenciados. E assim anda o ensino e a cultura neste país de desenvolvimento médio (ou será medíocre?).

Baltasar foi efectivamente a encarnação da figura do Professor, lembrado por várias gerações que ajudou a formar, com um espírito abnegado e uma competência ímpares. São testemunhas disso os milhares de alunos que passaram pelas suas mãos em mais de 40 anos, durante os quais ensinou as disciplinas de Português, Francês, Latim, Grego e História.

Antes foi um aluno brilhante no Seminário-Liceu de S. Nicolau, no Liceu Infante D. Henrique em S. Vicente e em Portugal no Liceu de Camões e na Universidade de Lisboa. Baltasar foi para Portugal aos 16 anos para estudar Medicina, mas tendo chegado tarde, acabou por matricular-se e concluir dois cursos universitários, Direito com 21 anos e Filologia Românica aos 23 anos de idade, ambos com a classificação de 17 valores! Um exemplo para todos alunos de Cabo Verde.  

Foi o escritor e poeta, cuja obra ensaística, jornalística e literária é para muitos a maior de Cabo Verde. O homem que escreveu Chiquinho, o primeiro romance da literatura cabo-verdiana, considerado pela catedrática portuguesa Maria de Lourdes Belchior o melhor romance de infância escrito em língua portuguesa.

Foi fundador e principal impulsionador da revista Claridade, nascida em plena ditadura salazarista, a arma escolhida para fincar os pés na terra. Nas palavras de Leão Lopes: cada combatente a sua arma, cada frente a sua estratégia. Claridade estabelece um novo espaço cabo-verdiano nas ilhas. Uma nova luz, integradora e democrática que não vinha de cima, vinha da terra, da terra dura e crua.

Foi ainda o filólogo pioneiro no estudo da língua crioula cabo-verdiana, que nunca parou de estudar, e que com ele o caboverdiano se orgulhou ainda mais de sua criação, uma língua própria, uma língua nova, digna, um património de grande dimensão e base da cultura cabo-verdiana.

Mas a novidade da tese de Leão Lopes é um novo olhar sobre o homem profundamente comprometido com a sua terra e as suas gentes: O itinerário de Baltasar Lopes da Silva construiu-se com o País e com ele se confunde porque encarnou as ilhas que lhe deram o sentido de ser cabo-verdiano e a determinação de luta por uma causa – a caboverdianidade; porque projectou na sua gente a finalidade da sua vida intelectual, profissional e cívica

O olhar é sobre este cabo-verdiano que nos anos 30 do século passado recusou uma carreira universitária em Portugal, e docência mais bem paga em Moçambique, Brasil e Macau para se fixar como docente no liceu de S. Vicente, na sua terra Cabo Verde. Uma opção consciente e reflectida de um homem que nunca abandonou o seu povo.

É um trabalho sobre os primeiros 33 anos da vida de Baltasar que analisa os diversos papéis que desempenhou na sociedade cabo-verdiana: ideólogo, cidadão inconformista e actuante, pedagogo, escritor, líder cultural, advogado, sociólogo, músico, animador do desporto.

Quantos desportistas nacionais sabem que Nhô Balta no seu tempo de estudante em Portugal foi campeão de atletismo e guarda-redes da equipa de futebol do Club Internacional do Futebol de Lisboa (já desaparecido)? Ou que foi um importante animador desportivo no Mindelo, particularmente do golfe e cricket?

 

…talvez seja a música a actividade ou arte que melhor se adapta e traduz o “génio” do nosso povo. Baltasar Lopes.

Baltasar aprendeu cedo a tocar viola de dez cordas, violão, cavaquinho e violino, este último o seu instrumento de eleição com o qual já regressado de Portugal participava em serenatas no Mindelo com B. Léza e com o qual nas férias em S. Nicolau participava nas orquestras que tocavam nos bailes. Quantos músicos cabo-verdianos sabem que este homem quis criar um Conservatório no Mindelo juntamente com o Maestro Alves dos Reis? Que Baltasar era tão amigo de B.Léza que o transportou e à sua música para o romance Chiquinho? Tanto o criador [B. Léza] como o exímio executante do violão são presenças literárias no romance e também a música cabo-verdiana, morna, batuque, a marcha carnavalesca e ainda o samba brasileiro. Quantos sabem que das tertúlias entre os dois, e fruto dos questionamentos de Baltazar ao compositor, B.Léza compôs as mornas Eclipse e Resposta de segredo co mar (morna onde pela primeira vez B. Léza introduz o meio-tom de influência brasileira)? Leão Lopes defende que Baltasar foi juntamente com o Maestro Alves dos Reis um dos primeiros teóricos e defensores da música cabo-verdiana como cultura erudita.

 

Eu não sei fazer nada sem pôr o coração na batalha. Baltasar Lopes.

Baltasar Lopes foi um advogado brilhante que defendeu sobretudo os mais desfavorecidos, aqueles que não lhe podiam pagar. No livro existe a citação do Dr. Aguinaldo Wahnon que dizia que era o “terreiro” do tribunal o grande palco de Baltasar. As audiências eram na altura acontecimento cultural em S. Vicente, onde o povo acorria para ouvir o Mestre que se apresentava por inteiro: escritor, sociólogo, poeta e romancista, ensaísta e sobretudo, ideólogo e político, defendendo contras as incongruências da justiça colonial do repressivo governo fascista e dos excessos dos metropolitanos residentes.

Nascido numa família de tradição republicana e democrata, cultivou esses valores toda a vida. Não teve a sorte de viver em democracia, de ver o seu povo viver em plena liberdade. Em defesa desse povo e dos valores que professava, resistiu às ditaduras tanto do regime de Salazar como do PAIGC. A PIDE/DGS, polícia política de Salazar, manteve-o sempre sob vigilância, violando toda a sua correspondência, reconhecendo que apesar da sua intensa actividade política, mexer em Baltasar seria mexer com o arquipélago todo e que a conjuntura de então não aconselhava tal risco.Dos arquivos dessa polícia em Lisboa, Leão Lopes tirou este elucidativo parágrafo:... O Dr. Baltasar Lopes da Silva é um indivíduo extremamente sagaz e muito culto – dizem que o expoente máximo da actual cultura caboverdiana – e mercê disso disfruta de um prestígio que o diviniza aos olhos dos seus patrícios. Tudo ou quase tudo, em Cabo Verde, gira sob a sua influência intelectual e à sua orientação se subordinam chefes de serviço e funcionários suplementares da Administração Civil local, na sua quase totalidade cabo-verdianos e seus ex-alunos...Como este cabo-verdiano era temido pelo regime fascista poruguês!

O mesmo se passou no período pós-independência onde a geração que ele ajudou a formar, já no poder, chegou a equacionar a sua prisão! Os jovens de hoje poderão perguntar: porquê prender um homem (já reformado) que dedicou toda a sua vida à caboverdianidade e a defender o povo destas ilhas?!

Um homem que deu tudo ao seu país sem nunca pedir nada em troca, como referiu o deputado Humberto Cardoso, num eloquente discurso feito na Assembleia Nacional a 23 de Abril de 2007, data do centenário do nascimento de Baltasar, onde relembrou que: a 28 de Abril de 1974, em S. Vicente, quando a multidão se pôs em movimento para festejar a Liberdade anunciada pelo 25 de Abril todos sabiam para onde se dirigir: a casa do Dr. Baltasar Lopes da Silva. A percepção geral era de que esse homem encarnava o momento.

Leão Lopes descreve que uns dias depois, a 1 de Maio de 1974, o primeiro que se assinalava após o 25 de Abril, Baltasar, estava com a sua esposa no largo da Câmara Municipal no meio de uma exuberante e alegre multidão (o homem despretensioso sempre no meio do seu povo): Baltasar não poderia deixar de estar presente na primeira manifestação de liberdade de um povo que havia cerca de 50 anos construía, penosamente, este memorável dia. De repente a multidão grita “Queremos Nhô Balta´s!” Baltasar foi transportado aos ombros, em meio de uma grande ovação para a varanda do edificio da Câmara Municipal onde discursou de improviso, dizendo que não ia dar vivas, que era tempo de usarmos as mãos para trabalhar em liberdade...como se pressentisse que essa liberdade ainda não havia chegado realmente. 

A cumplicidade de Nhô Balta ou Ti Balta com a gente destas ilhas vinha de longe. Quarenta anos antes, em 1934, a revolta do Capitão Ambrózio teve o dedo de Baltasar e dos seus colegas da Associação Comercial que escolheram Nhô Ambroze para liderar essa revolta popular, como atesta o livro.

Para mim uma das facetas mais importantes de Baltasar Lopes, foi ter resistido sempre às ideologias. Num tempo em que o fascismo fazia pender os jovens intelectuais para o marxismo, Baltasar mantém-se imune, preferindo utilizar o Direito para combater os excessos do poder e defender os direitos dos cidadãos, como sublinhou Humberto Cardoso. Também não se deixou entusiasmar com o movimento neo-africanista, como nos conta Leão Lopes: A África, no sentido civiliziacional e cultural encontra-se muito diluída no fenómeno da mestiçagem cabo-verdiana, o que vai provar mais tarde com o resgate de “sua” África através do Brasil. A identidade crioula cabo-verdiana não poderia ser melhor descrita e eu assino por baixo.

Como se explica que um homem com esta obra e esta envergadura seja quase desconhecido hoje em Cabo Verde? Se os jovens de hoje desconhecem Baltasar e os Claridosos, serão eles os únicos culpados? Certamente que não.

Leão Lopes fala-nos num silêncio deliberado promovido por uma certa elite política do país representada pela geração da luta de libertação a quem não interessava e talvez ainda não interesse, destacar a dimensão de um dos maiores resistentes ao colonialismo português e um dos mais coerentes e convincentes antifascistas da história caboverdiana.

Baltasar Lopes da Silva foi realmente um homem arquipélago (uma feliz ilustração do artista Leão Lopes). Esteve sempre nos locais e épocas marcantes da história recente deste país. Nasceu na ilha de São Nicolau, a mais central do arquipélago, frequentou o Seminário-Liceu, viveu no Mindelo a decadência do Porto Grande, foi Reitor e professor do Liceu que mais gerações de cabo-verdianos formou, estudou a língua e o folclore das ilhas, com especial ênfase para o da ilha de Santiago e desposou uma linda crioula de S. Antão, sua companheira de sempre. Morreu em 1989, ainda antes de poder ver o seu país e o seu povo em liberdade plena. Mas morreu com a sensação do dever cumprido, embora amargurado com o regime repressivo e autocrático instalado no país por ex-alunos seus, cabo-verdianos como ele.

A história de democratas liberais como Eugénio Tavares, Loff Vasconcelos, Pedro Cardoso, Cónego Teixeira, e de Baltasar Lopes da Silva e seus companheiros claridosos tem que ser mais estudada para poder ser contada às novas gerações. Esses pais fundadores da caboverdianidade, desta nossa identidade única, sonharam com um Cabo Verde livre e democrático, que continua ainda hoje a ser construído por tortuosos caminhos.

Leão Lopes promete no livro continuar a estudar este fenómeno da nossa história, que foi Baltasar Lopes da Silva. Que outros lhe sigam o exemplo. Um país pequeno e parco de recursos, com uma história sofrida, precisa conhecer bem os seus mais ilustres e inspiradores filhos, dos quais Baltasar foi sem dúvida o maior. As batalhas por cá continuam a ser muitas, sobretudo na construção desta nossa jovem e tão ansiada democracia. Baltasar estaria com o coração em todas estas frentes se cá estivesse. Que o seu exemplo perdure na nossa memória e que celebremos no dia 23 de Abril não apenas o Professor, mas o Homem Livre, íntegro e Cabo-verdiano acima de tudo.

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Autoria:Expresso das Ilhas,26 abr 2014 0:00

Editado porRendy Santos  em  28 abr 2014 15:58

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