A Análise: Debate sobre o Estado da Nação, 2014

PorRosário da Luz,11 ago 2014 0:00

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 A subordinação do serviço público ao interesse corporati­vo tem caracterizado de forma transversal a política Cabo­-verdiana. Posto isto, os cida­dãos não se terão surpreendido quando no debate de passada quinta-feira ficou estabelecido, mais uma vez, que nenhum dos sujeitos parlamentares tem como prioridade o exercício do seu mandato constitucional. Por ocasião do Estado da Na­ção, esse mandato consistiria numa caracterização útil e fiel da realidade socioeconómica no momento presente, para in­formação e proveito dos seus constituintes. Previsivelmente, ficou demonstrado ao longo do debate que a preocupação do­minante para o Governo, para a Maioria e para a Oposição é com o Estado das suas Can­didaturas; e com as perspeti­vas das suas corporações de ga­nhar as próximas legislativas.

Se o objeto do debate não foi, para nenhuma das partes, dis­cutir o Estado da Nação, seria um erro brutal da nossa parte assimilar as intervenções dos atores como perspetivas hones­tas – ainda que ideologicamen­te díspares – sobre a realidade Cabo-verdiana. O evento que teve lugar na Plenária da As­sembleia Nacional no passado dia 31 foi um comício, no qual os sujeitos parlamentares des­piram-se dos seus mandatos de representação para se lançar abertamente numa campanha de interesse partidário. Sendo assim, é enquanto comício elei­toral que deveremos analisar as dinâmicas políticas e narrativas que o marcaram.

O Estado do Governo. O Primeiro-ministro deu início à discussão com um relato deta­lhado do Estado da Nação em 2001. José Maria Neves exor­tou os Cabo-verdianos a recor­dar o país disfuncional que lhe foi legado há treze anos atrás;

exortou-nos a recordar o des­calabro que terá resultado dos dois mandatos do MpD e que aparentemente ainda não pode ser saneado pela sua governa­ção; exortou-nos a relembrar o exuberante desempenho eco­nómico do seu Governo antes da tragédia global instalada pela crise; e louvou a gestão visionária que este mesmo Go­verno fez da conjuntura, visão sem a qual o país estaria real­mente “bloqueado e à beira da catástrofe”.

Até aqui, parece que esta­mos perante uma reedição do EN2013. Mas a realidade é que a conjuntura degradou: o status quo económico e social agra­vou-se e o facto já se tornou evi­dente para a população; conse­quentemente, exige do Governo um maior esforço de justifica­ção. É nesse sentido que vemos surgir novas temáticas narrati­vas, tais como a “encruzilhada em que se encontra o país”. O Governo confessa que existem, de facto, “desafios ainda por resolver”: “os homens e as mu­lheres destas ilhas sabem que nestes poucos anos já demos passos de gigante, apesar das enormes dificuldades decor­rentes das vulnerabilidades e constrangimentos diversos e de um contexto internacional altamente desfavorável...po­deríamos ter conseguido mais? Certamente que sim, se tudo dependesse de nós. Ou seja, apesar da admissão de “novos desafios”, a justificação das di­ficuldades do país não passa de uma campanha que continua centrada na infalibilidade do Governo: a sua contenção é que nenhuma outro governo pode­ria ter feito melhor porque isso simplesmente não é possível.

Também vemos surgir mé­todos inventivos de qualifica­ção desses “novos desafios que nos confrontam”. Segundo o Primeiro-ministro, os “desa­fios” como a baixa qualidade da educação e o desemprego qua­lificado resultam paradoxal­mente da boa governação; são a consequência direta do sucesso deste Governo, que construiu cinquenta liceus, instituiu o en­sino superior no país e demo­cratizou a sociedade em tempo recorde. Porém, não nos foram explicitadas as decisões que le­varam o Governo a construir li­ceus sem formar professores, a instituir o ensino universitário sem qualidade ou regulação e a democratizar a sociedade pela via do mais baixo denominador comum. Mas foi-nos comuni­cada a necessidade absoluta de continuar a confiar na visão do PAICV para ultrapassar estas dificuldades, independente­mente da “aparente” estagna­ção e da “percepção” de insegu­rança dos cidadãos.

É difícil explicar que esta es­tratégia de dissimulação con­tinue a arregimentar a opinião pública a favor da Maioria; infe­lizmente, isso torna-se possível apenas pela baixa expectativa que os eleitores Cabo-verdianos têm sobre a visão económica dos seus governantes. A histó­ria Cabo-verdiana foi pontuada muito excecionalmente por pe­ríodos fugazes de prosperidade – sempre encarados como ano­malias pela memória coletiva. Durante cinco séculos a nossa normalidade consistiu em fo­mes cíclicas entremeadas de estagnação e o único alívio co­nhecido foi o assistencialismo.

O resultado hoje é que não há crescimento, não há empre­go, mas os governos nunca são verdadeiramente julgados pelo seu desempenho no domínio da economia real – porque os elei­tores simplesmente não têm as referências culturais necessá­rias para o fazer. A concepção Cabo-verdiana do exercício do poder é eminentemente pater­nalista: entre nós, o agente do poder não é aquele que faz, é aquele que dá. Os líderes não são julgados pela sua criativida­de; são julgados pela sua capa­cidade de garantir subsistência ao povo e mobilidade às suas clientelas. E neste domínio, o poder incumbente detém uma vantagem forte, simplesmente porque dispõe dos recursos do Estado.

Ainda assim, por imperativo de imagem, a linha discursiva do Governo continua a privi­legiar a inovação económica, apontando a Agenda de Trans­formação como via para trans­figurar Cabo Verde em centro internacional de prestação de serviços. Mas é só olhar para a hierarquia dos assentos do Go­verno na Sala de Sessões da AN para perceber os verdadeiros contornos da filosofia económi­ca do PAICV. Todos os respon­sáveis pelos sectores estratégi­cos da economia – a Ministra do Emprego, o Ministro do Turismo, a Ministra da Agricul­tura, a Ministra da Educação, o Ministro do Ensino Superior e o Ministro da Cultura, cada um com o seu cluster – esta­vam sentados na mesa dos go­vernantes juniores, segundo a sua colocação na orgânica do Governo; não tiveram acesso a microfone para o menor escla­recimento, e muito menos para intervenção. A determinação da orgânica do Governo é da com­petência exclusiva do Conselho de Ministros; aparentemente foi este órgão, liderado por José Maria Neves, que decidiu a de­sautorização relativa dos res­ponsáveis por todos os sectores estratégicos da economia real. À exceção das Infraestruturas, claro está; Sara Lopes estava sentada na mesa dos seniores.

O Estado da Maioria. O papel da bancada da Maioria neste debate foi estritamente o suporte. Felisberto Vieira – que também é candidato á presi­dência do partido – centrou as suas intervenções no elogio da governação e da visão conjunta da Situação, sem empreender qualquer tentativa de se des­tacar a título pessoal. É até es­tranho que o líder da bancada não tenha utilizado melhor a oportunidade para trabalhar a sua candidatura; mas limitou­-se a cerrar fileiras em torno do Executivo, ainda que com uma retórica arcaica e totalmente inadequada. Num mundo onde toda a comunicação política es­força-se por eliminar a distân­cia simbólica entre o represen­tante e o eleitor – e num país onde o eleitorado jovem vai decidir as próximas eleições – a opção por um estilo discursivo tão fatigado parece ser contra­producente.

O Estado da Oposição. “Quando o MPD for Governo em 2016,” professou o líder da bancada, aparentemente se­guro da vitória do seu partido “o emprego será a prioridade das prioridades”. Tal como o PAICV em 2001, 2006 e outra vez em 2011, o MPD tornará o emprego – mormente o empre­go jovem – na “bússola orien­tadora” da sua governação. Tal como o PAICV ao longo de treze anos, o MPD pretende apostar no conhecimento, lutar contra a corrupção, promover o mé­rito, sanear o ambiente de ne­gócios e efetuar uma reforma estrutural do Estado.

No seu discurso de abertura, Fernando Elísio Freire passou rápida e genericamente pelos temas que deveriam constituir o cerne da sua comunicação: a estagnação, o desemprego, a fa­lência das empresas, a degrada­ção do ensino e a insegurança. Ou seja, o Estado da Nação foi sumariamente despachado pelo líder parlamentar, para que se pudesse cumprir o objetivo pri­mordial da comunicação da Mi­noria: ilustrar o Estado utópico no qual que se transformará a nação Cabo-verdiana quando o MPD for Governo em 2016. No final, a sua bancada pareceu satisfeita com a estratégia. Não tinha, contudo, quaisquer ra­zões para o ficar.

O que a bancado do MPD cometeu foi um abuso do seu mandato parlamentar – que é fiscalizar o Executivo e não anunciar-se como o futuro Go­verno de Cabo Verde antes de qualquer sufrágio eleitoral. Mas para além da questão ética, o anúncio da vitória nas eleições de 2016 em Julho de 2014 acar­reta riscos políticos considerá­veis. O MpD ainda se encontra numa posição eleitoral vulnerá­vel: é a Minoria que já perdeu três vezes. Uma Minoria que já perdeu três vezes não goza de muita credibilidade quando anuncia vitórias vindouras. O anúncio do MpD foi um convite à Situação e à opinião pública para expor o partido e os seus líderes ao ridículo.

A Maioria tem por hábito provocar a Oposição, acusan­do-a de nunca apresentar pro­postas construtivas e de assu­mir uma postura destrutiva; isto numa tentativa de esvaziar a sua função de fiscalização. Contudo, deveria ser eviden­te para o MpD que é essa a sua função primordial, e não a apresentação de programas de Governo de forma inapropria­da; e que a sua bancada deverá continuar a cumprir esta fun­ção, sem trair o seu mandato e independentemente das acusa­ções da Maioria.

No que respeita o Estado da Oposição, falta ainda re­ferir a UCID. A única questão real que se apresenta sobre a sua participação no debate é a justificação da existência deste partido. Qual será? Não atri­buo a inutilidade da bancada da UCID linearmente á sua exiguidade numérica; muito pelo contrário, sou entusias­ticamente a favor de minorias dinâmicas, capazes de crescer e eventualmente quebrar a bi­polaridade neurótica em que se sedimentou a política Cabo­-verdiana. Um terceiro bloco parlamentar – uma terceira força, minoritária mas numeri­camente suficiente para dar fim às maiorias absolutas em Cabo Verde – talvez produzisse mui­tas soluções. Mas essa força não será, certamente, a UCID.

 

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Autoria:Rosário da Luz,11 ago 2014 0:00

Editado porRendy Santos  em  11 ago 2014 10:47

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