A subordinação do serviço público ao interesse corporativo tem caracterizado de forma transversal a política Cabo-verdiana. Posto isto, os cidadãos não se terão surpreendido quando no debate de passada quinta-feira ficou estabelecido, mais uma vez, que nenhum dos sujeitos parlamentares tem como prioridade o exercício do seu mandato constitucional. Por ocasião do Estado da Nação, esse mandato consistiria numa caracterização útil e fiel da realidade socioeconómica no momento presente, para informação e proveito dos seus constituintes. Previsivelmente, ficou demonstrado ao longo do debate que a preocupação dominante para o Governo, para a Maioria e para a Oposição é com o Estado das suas Candidaturas; e com as perspetivas das suas corporações de ganhar as próximas legislativas.
Se o objeto do debate não foi, para nenhuma das partes, discutir o Estado da Nação, seria um erro brutal da nossa parte assimilar as intervenções dos atores como perspetivas honestas – ainda que ideologicamente díspares – sobre a realidade Cabo-verdiana. O evento que teve lugar na Plenária da Assembleia Nacional no passado dia 31 foi um comício, no qual os sujeitos parlamentares despiram-se dos seus mandatos de representação para se lançar abertamente numa campanha de interesse partidário. Sendo assim, é enquanto comício eleitoral que deveremos analisar as dinâmicas políticas e narrativas que o marcaram.
O Estado do Governo. O Primeiro-ministro deu início à discussão com um relato detalhado do Estado da Nação em 2001. José Maria Neves exortou os Cabo-verdianos a recordar o país disfuncional que lhe foi legado há treze anos atrás;
exortou-nos a recordar o descalabro que terá resultado dos dois mandatos do MpD e que aparentemente ainda não pode ser saneado pela sua governação; exortou-nos a relembrar o exuberante desempenho económico do seu Governo antes da tragédia global instalada pela crise; e louvou a gestão visionária que este mesmo Governo fez da conjuntura, visão sem a qual o país estaria realmente “bloqueado e à beira da catástrofe”.
Até aqui, parece que estamos perante uma reedição do EN2013. Mas a realidade é que a conjuntura degradou: o status quo económico e social agravou-se e o facto já se tornou evidente para a população; consequentemente, exige do Governo um maior esforço de justificação. É nesse sentido que vemos surgir novas temáticas narrativas, tais como a “encruzilhada em que se encontra o país”. O Governo confessa que existem, de facto, “desafios ainda por resolver”: “os homens e as mulheres destas ilhas sabem que nestes poucos anos já demos passos de gigante, apesar das enormes dificuldades decorrentes das vulnerabilidades e constrangimentos diversos e de um contexto internacional altamente desfavorável...poderíamos ter conseguido mais? Certamente que sim, se tudo dependesse de nós”. Ou seja, apesar da admissão de “novos desafios”, a justificação das dificuldades do país não passa de uma campanha que continua centrada na infalibilidade do Governo: a sua contenção é que nenhuma outro governo poderia ter feito melhor porque isso simplesmente não é possível.
Também vemos surgir métodos inventivos de qualificação desses “novos desafios que nos confrontam”. Segundo o Primeiro-ministro, os “desafios” como a baixa qualidade da educação e o desemprego qualificado resultam paradoxalmente da boa governação; são a consequência direta do sucesso deste Governo, que construiu cinquenta liceus, instituiu o ensino superior no país e democratizou a sociedade em tempo recorde. Porém, não nos foram explicitadas as decisões que levaram o Governo a construir liceus sem formar professores, a instituir o ensino universitário sem qualidade ou regulação e a democratizar a sociedade pela via do mais baixo denominador comum. Mas foi-nos comunicada a necessidade absoluta de continuar a confiar na visão do PAICV para ultrapassar estas dificuldades, independentemente da “aparente” estagnação e da “percepção” de insegurança dos cidadãos.
É difícil explicar que esta estratégia de dissimulação continue a arregimentar a opinião pública a favor da Maioria; infelizmente, isso torna-se possível apenas pela baixa expectativa que os eleitores Cabo-verdianos têm sobre a visão económica dos seus governantes. A história Cabo-verdiana foi pontuada muito excecionalmente por períodos fugazes de prosperidade – sempre encarados como anomalias pela memória coletiva. Durante cinco séculos a nossa normalidade consistiu em fomes cíclicas entremeadas de estagnação e o único alívio conhecido foi o assistencialismo.
O resultado hoje é que não há crescimento, não há emprego, mas os governos nunca são verdadeiramente julgados pelo seu desempenho no domínio da economia real – porque os eleitores simplesmente não têm as referências culturais necessárias para o fazer. A concepção Cabo-verdiana do exercício do poder é eminentemente paternalista: entre nós, o agente do poder não é aquele que faz, é aquele que dá. Os líderes não são julgados pela sua criatividade; são julgados pela sua capacidade de garantir subsistência ao povo e mobilidade às suas clientelas. E neste domínio, o poder incumbente detém uma vantagem forte, simplesmente porque dispõe dos recursos do Estado.
Ainda assim, por imperativo de imagem, a linha discursiva do Governo continua a privilegiar a inovação económica, apontando a Agenda de Transformação como via para transfigurar Cabo Verde em centro internacional de prestação de serviços. Mas é só olhar para a hierarquia dos assentos do Governo na Sala de Sessões da AN para perceber os verdadeiros contornos da filosofia económica do PAICV. Todos os responsáveis pelos sectores estratégicos da economia – a Ministra do Emprego, o Ministro do Turismo, a Ministra da Agricultura, a Ministra da Educação, o Ministro do Ensino Superior e o Ministro da Cultura, cada um com o seu cluster – estavam sentados na mesa dos governantes juniores, segundo a sua colocação na orgânica do Governo; não tiveram acesso a microfone para o menor esclarecimento, e muito menos para intervenção. A determinação da orgânica do Governo é da competência exclusiva do Conselho de Ministros; aparentemente foi este órgão, liderado por José Maria Neves, que decidiu a desautorização relativa dos responsáveis por todos os sectores estratégicos da economia real. À exceção das Infraestruturas, claro está; Sara Lopes estava sentada na mesa dos seniores.
O Estado da Maioria. O papel da bancada da Maioria neste debate foi estritamente o suporte. Felisberto Vieira – que também é candidato á presidência do partido – centrou as suas intervenções no elogio da governação e da visão conjunta da Situação, sem empreender qualquer tentativa de se destacar a título pessoal. É até estranho que o líder da bancada não tenha utilizado melhor a oportunidade para trabalhar a sua candidatura; mas limitou-se a cerrar fileiras em torno do Executivo, ainda que com uma retórica arcaica e totalmente inadequada. Num mundo onde toda a comunicação política esforça-se por eliminar a distância simbólica entre o representante e o eleitor – e num país onde o eleitorado jovem vai decidir as próximas eleições – a opção por um estilo discursivo tão fatigado parece ser contraproducente.
O Estado da Oposição. “Quando o MPD for Governo em 2016,” professou o líder da bancada, aparentemente seguro da vitória do seu partido “o emprego será a prioridade das prioridades”. Tal como o PAICV em 2001, 2006 e outra vez em 2011, o MPD tornará o emprego – mormente o emprego jovem – na “bússola orientadora” da sua governação. Tal como o PAICV ao longo de treze anos, o MPD pretende apostar no conhecimento, lutar contra a corrupção, promover o mérito, sanear o ambiente de negócios e efetuar uma reforma estrutural do Estado.
No seu discurso de abertura, Fernando Elísio Freire passou rápida e genericamente pelos temas que deveriam constituir o cerne da sua comunicação: a estagnação, o desemprego, a falência das empresas, a degradação do ensino e a insegurança. Ou seja, o Estado da Nação foi sumariamente despachado pelo líder parlamentar, para que se pudesse cumprir o objetivo primordial da comunicação da Minoria: ilustrar o Estado utópico no qual que se transformará a nação Cabo-verdiana quando o MPD for Governo em 2016. No final, a sua bancada pareceu satisfeita com a estratégia. Não tinha, contudo, quaisquer razões para o ficar.
O que a bancado do MPD cometeu foi um abuso do seu mandato parlamentar – que é fiscalizar o Executivo e não anunciar-se como o futuro Governo de Cabo Verde antes de qualquer sufrágio eleitoral. Mas para além da questão ética, o anúncio da vitória nas eleições de 2016 em Julho de 2014 acarreta riscos políticos consideráveis. O MpD ainda se encontra numa posição eleitoral vulnerável: é a Minoria que já perdeu três vezes. Uma Minoria que já perdeu três vezes não goza de muita credibilidade quando anuncia vitórias vindouras. O anúncio do MpD foi um convite à Situação e à opinião pública para expor o partido e os seus líderes ao ridículo.
A Maioria tem por hábito provocar a Oposição, acusando-a de nunca apresentar propostas construtivas e de assumir uma postura destrutiva; isto numa tentativa de esvaziar a sua função de fiscalização. Contudo, deveria ser evidente para o MpD que é essa a sua função primordial, e não a apresentação de programas de Governo de forma inapropriada; e que a sua bancada deverá continuar a cumprir esta função, sem trair o seu mandato e independentemente das acusações da Maioria.
No que respeita o Estado da Oposição, falta ainda referir a UCID. A única questão real que se apresenta sobre a sua participação no debate é a justificação da existência deste partido. Qual será? Não atribuo a inutilidade da bancada da UCID linearmente á sua exiguidade numérica; muito pelo contrário, sou entusiasticamente a favor de minorias dinâmicas, capazes de crescer e eventualmente quebrar a bipolaridade neurótica em que se sedimentou a política Cabo-verdiana. Um terceiro bloco parlamentar – uma terceira força, minoritária mas numericamente suficiente para dar fim às maiorias absolutas em Cabo Verde – talvez produzisse muitas soluções. Mas essa força não será, certamente, a UCID.