A Crónica das Dúvidas

PorRosário da Luz,17 ago 2014 23:59

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Acordei esta madrugada para ir correr e deparei-me com dois sinais inequívocos de que o verão chegou à capital: chuva e um corte de energia. Já ontem – Domingo ao fim da tarde – fui dar um giro com a milha filha até ao parque da Cruz do Papa e encontrei-o na mais completa escuridão. Também ali havia sinais fartos da estação: crianças deliciadas por estarem na rua à noite; pais em busca de uma brisa marítima, na disposição de levar os putos a comer uma guloseima; e vendedeiras atarefadas com pipocas e algodão doce, enchendo a noite cálida com a melodia dos seus geradores. “Ka ten luz na parki”, suspirou resignadamente a minha miúda – criança da cidade, criada sub umbra da Electra. E assim começa a gestão deste verão.

No Estado da Nação há duas semanas, a Maioria anunciou vaidosa que lá se ia o tempo em que a Oposição iniciava todos os debates com a questão energética. Mas cá estamos nós de novo confrontados com a nossa incapacidade de gestão: Domingo á noite, período de férias, e as crianças vindas de todos os cantos da kapital para andar nos melhores baloiços da cidade tropeçam no sukuru enquanto os seus pais pagam uma taxa fraudulenta de iluminação pública.  Esta manhã tropecei dentro da minha casa quando acordei sem luz; rangi os dentes na perspetiva de mais um verão com roturas de água fresca, gelo e ventilação, e lamentei pela enésima vez a nossa incapacidade de gestão. Mas este verão a nossa lassidão organizacional comporta riscos consideravelmente maiores do que tropeçar no escuro à procura das sapatilhas.

Para que precisa o cidadão do Estado? Para coordenar as tarefas e gerir as ameaças que se apresentam à comunidade, quando esta é complexa em dimensão, estrutura, diversidade e ambição. Em troca de uma variedade de prorrogativas e privilégios – que lhes são variavelmente acordados pela população – o edifício do poder e os seus governantes assumem como atribuição primária a proteção física da comunidade; e desde os primórdios da formalização do poder que um dos deveres mais imediatos desta função protetora do Estado é a contenção de epidemias.

Apesar dos solavancos a que estão ocasionalmente sujeitos os donos do poder, estes conseguem normalmente sobreviver à guerra com uma certa classe, na pele de exilados em cortes e cidades estrangeiras. Com as suas reservas, as elites detêm os recursos necessários para escapar à perseguição e à miséria que acompanham o comum das crises; contudo, mesmo na vigência da medicina moderna, escapar a um vírus é muito menos linear. Desde a antiguidade mais remota até ao presente as epidemias são temidas por todos os extratos da sociedade; porque quando uma cidade se verga sob a peste, as classes privilegiadas fecham-se em cidadelas, fogem para o campo, resistem mais tempo, caem por último – mas caem.

As classes privilegiadas não estão habituadas à ausência de controle sobre os seus privilégios – condição que caracteriza quotidianamente a existência popular. Mas na epidemia, a ameaça do contágio misterioso e da maleita implacável nivela o privilégio e iguala de forma inusitada as perspetivas socialmente diferenciadas de sobrevivência a crises. E é por essa razão que podemos deduzir que, historicamente, desde os primórdios da formalização do poder, o esforço estatal de controle de epidemias foi muito mais enérgico e dedicado do que aquilo que se terá verificado nas outras áreas de responsabilidade governativa. A epidemia une propósitos.

A epidemia de Ébola que eclodiu em Fevereiro na nossa região geográfica já ultrapassou a dimensão de todos os surtos que lhe precederam e adquiriu estatuto de emergência internacional. Já vi e ouvi na comunicação social nacional que o perigo para Cabo Verde é real mas moderado; já ouvi que foram tomadas todas as medidas necessárias para nos preparar para lidar com qualquer das contingências inerentes à nossa proximidade com os focos da epidemia. Mas não estou nada descansada. Digo exatamente porquê.

O meu sentimento não resulta de qualquer suspeita da genuinidade do compromisso do poder executivo com a nossa segurança nesta matéria; ou da desconfiança da intenção das autoridades nacionais em controlar rigorosamente o risco para a população. Acredito francamente que o interesse dos decisores públicos em proteger os cidadãos é real e que, dentro dos limites das nossas competências organizacionais, serão tomadas todas as medidas necessárias para que Cabo Verde não venha a registar contágios. O problema são esses limites. O meu sentimento de insegurança resulta da minha percepção da nossa ineficiência contemporânea no domínio da gestão de procedimentos e objetivos; uma ineficiência estrutural, sobre a qual não temos controle consciente e que nos pode trair amargamente em momentos onde o rigor é um imperativo.

Ao longo de quarenta anos Cabo Verde tornou-se merecidamente numa referência regional no domínio da saúde pública. O Estado.cv aplicou-se afincadamente na mobilização de recursos para o sector e realizou investimentos honestos em procedimentos e medicamentos; ou seja, importou os modelos de gestão prontos a administrar que produziriam melhorias radicais na oferta de saúde em Cabo Verde, de forma previsível e linear. O resultado foi o nosso reconhecido sucesso no desaparecimento de um conjunto de doenças infecto-contagiosas, erradicadas do panorama Cabo-verdiano pela vacinação, pelo saneamento, pelo diagnóstico e pela contenção. Temos contudo que ter presente que, ao longo deste percurso, um dos suportes deste sucesso foi a relativa simplicidade dos cenários de gestão.

Quando o desafio é a mobilização de recursos, o ADN do decisor.cv e das suas instituições responde com distinção; quando as causas de uma ameaça de saúde pública são locais – e localmente controláveis com procedimentos lineares – estes são implementados pelo Estado de Cabo Verde com uma eficácia que lhe tem merecido menções honrosas na documentação internacional, nomeadamente no combate á epidemia de cólera em 1995 e à do dengue em 2010. Mas é preciso notar que, nestas duas instâncias, as taxas de mortalidade foram suficientemente baixas para não exacerbar o custo de eventuais falhas de gestão.

Tragicamente, no cenário atual, a taxa de mortalidade da doença é de tal forma dramática que imputa um custo humano elevadíssimo ao menor contacto com a infeção; os motores da sua propagação não são locais, ou localmente controláveis; e o cenário é agravado pelo facto de que a situação terá que ser gerida por nós conjuntamente com algumas das culturas organizacionais mais notoriamente ineficientes do planeta – as das regiões afetadas, num quadro onde a mobilidade regional complica radicalmente a previsão do risco para o território nacional. E quando, para além disso, há decisões politicamente delicadas a pesar – tal como a possibilidade de fechar as nossas fronteiras aéreas e marítimas às conexões originárias de áreas de risco – a complexidade da situação escala para uma outra plataforma.

Qual será o custo de uma falha de gestão? Qual será o importe de um procedimento de despistagem mal conduzido? De uma decisão mal avaliada? Será que a cultura organizacional Cabo-verdiana ainda é suficientemente sólida para determinar com clareza a gravidade da situação e responder à altura com rigor e visão? Será que os decisores Cabo-verdianos tomariam a decisão de fechar as nossas fronteiras com as regiões afetadas, uma decisão baseada no dever para com a segurança imediata da população, sem a costumeira deferência para as sensibilidades de quem quer que seja, na comunidade internacional ou na região?

Nada disso. Temos antes o discurso débil da Sra. Ministra da Saúde, que “pede a todos os cidadãos de Serra Leoa, Libéria, Guiné Conacri e Nigéria que vivem em Cabo verde e que tiverem necessidade de visitar seus familiares” que antes de viajarem contactem as delegacias de saúde do país para controlo e orientação. “Quem não tiver urgência para viajar, o melhor é evitar. Nós estamos pedindo, interpelando a colaboração de todos para prevenirmos”. Não podemos esquecer que a infeção propagou-se na Nigéria quando um alto funcionário da Libéria, na sua chegada ao país, mentiu deliberadamente ás autoridades sanitárias sobre as circunstâncias da sua exposição. De alguma forma, os “pedidos” de colaboração e as “interpelações” da Ministra parecem ficar aquém das exigências da situação. E acredito que as dúvidas dos Cabo-verdianos sobre a firmeza dos nossos decisores e sobre a capacidade de gestão dos nossos serviços sejam – tal como as minhas – crónicas.

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Autoria:Rosário da Luz,17 ago 2014 23:59

Editado porRendy Santos  em  14 ago 2014 15:31

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