Musique Economique

PorRosário da Luz,25 ago 2014 0:00

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Mumbai, há um par de anos: fui a uma conferência com um colega e a organização alojou-nos no hotel mais emblemático da cidade, mesmo em frente ao Gateway to India. Para o nosso primeiro almoço, a recepção indicou-nos um restaurante próximo do hotel, que disse ser very trendy. Inspirado nos delicatessen da baixa Nova-iorquina, o estabelecimento não era bem um deli, mas um nouveau-deli. Por um lado, era de facto retro-USA – todo em madeira, com traves nuas e empregados de mesa enrolados nos grandes aventais das cafetarias judias-americanas; mas o cardápio referia queijos franceses, conservas mediterrânicas e reinterpretações locais da charcutaria kosher, ingredientes totalmente fora dessas tradições. Estávamos perante um serviço sofisticado e eminentemente moderno: uma síntese de referências globais, com origem em lugares e tempos diversos, calculada para proporcionar uma experiência de consumo memorável á elite de uma das cidades mais vibrantes da atualidade. Não havia katxupa no menu, e muito menos xerém ou conservas de São Nicolau; mas qual era a música que animava este esmerado conjunto estético e narrativo? Tito Paris. Nada mais natural.

Meses antes, num shopping situado na base das torres gémeas de Kuala Lumpur, entrei acidentalmente numa livraria que revelou ser um estabelecimento fenomenal. Troupes de semi adolescentes bilingues e trilingues assistiam uma clientela global com a variadíssima escolha disponível na loja. Apesar das prateleiras repletas de edições internacionais, em diversas línguas e a preços incrivelmente competitivos, não encontrei nenhuma obra Cabo-verdiana. Mas em contrapartida qual era o som que se ouvia na pequena cafetaria desta fantástica livraria? Tito Paris. A estrela Cabo-verdiana deve ser uma referência particularmente forte no sul asiático.

Muito antes, em meados da década de noventa, baixei no departamento de cosméticos da Bloomingdale’s de Nova York, um enorme espaço espelhado e perfumado que ocupa o piso térreo da loja. Este átrio constitui a primeira impressão do célebre estabelecimento sobre as multidões que o visitam diariamente. Escusado será dizer que não se encontravam á venda quaisquer artigos made in Cape Verde, muito menos alguma marca de beleza Cabo-verdiana. Mas qual é a música que acompanhava a sofisticada clientela nas suas escolhas entre Chanel, Lâncome e Yves Saint Laurent? Cesária Évora. Foi a primeira vez que fui confrontada com este nível de internacionalização da música Cabo-verdiana e caí para trás. 

No último debate sobre o Estado da Nação, quando a Ministra das Finanças afirmou sentidamente que Cabo Verde “precisa de Exportações como do pão para a boca”, o Ministro da Cultura deveria ter pedido a palavra para esclarecer aos eleitores que, até ao momento, as nossas exportações mais sólidas não foram latas de atum, mas sim Cesária Évora, Tito Paris, Ildo Lobo e Tcheka. O Ministro da Cultura teria feito bem em lembrar aos Cabo-verdianos que a internacionalização da música nacional estabeleceu-se há meio século e que, desde então, o seu mercado não parou de crescer. Que outro produto ou marca Cabo-verdiana poderá vangloriar-se da mesma qualidade de procura no exterior? Nem o turismo; e certamente não o atum ou o café referidos pela Sra. Ministra das Finanças. Infelizmente, o Sr. Ministro da Cultura estava sentado numa mesa sem microfone, e portanto sem as devidas prorrogativas de especificação do seu cluster.

O Cluster das Economias Criativas é, por defeito de formação e vocação, o meu cluster favorito. É um dos sete  projetados pela governação.cv como eixo transformador da economia nacional; e apesar da minha repetida profissão de dúvidas em matéria de clusters, acredito que temos muito mais perfil cultural para singrar nas chamadas economias da sabura do que para competir internacionalmente em sectores como o das TIC. Mas nem só de talento vive o cluster; a arte musical Cabo-verdiana pode viver do génio dos seus operadores e da riqueza da sua tradição; mas um sector da economia – seja ele baseado na competência informática ou no pasa sabi – exige visão e planificação estratégica de quem tem poder decisório sobre processos e recursos. O que é que constituiria uma economia criativa para Cabo Verde? Quais são as nossas reais oportunidades de criar emprego e negócios nos sectores da arte e da sabura? 

O Verão afigura-se uma excelente oportunidade para questionarmos a validade dos diskursus e o conteúdo das estratégias públicas que visam a criação de economias lúdicas. Para além do trio nobre de festivais municipais.cv – Gamboa, Baía das Gatas e Santa Maria – temos hoje Cabo Verde propostas em formatos inovadores, como o Kriol Jazz, que já realizou com considerável sucesso a sua sexta edição, e acontecimentos como o Atlantic Music Expo. Temos também, em franca expansão, uma miríade de festivaizecos promovidos por poderes locais, á razão de um por ribeira habitada. Poderá esta febre de eventos ser chamada de economia criativa? Poderemos designá-la de kluster?

Uma economia de eventos implica necessariamente que, num mercado como Cabo Verde, estes estejam voltados para a exportação; ou seja, para a importação de uma audiência capaz de movimentar significativamente o mercado local de bens e serviços. Para isso, o evento tem que determinar a sua oferta direta e indireta, assim como o caráter da sua audiência; tem que investir na atratividade internacional dos seus números; e tem que ser capaz de se promover eficazmente no mercado global.

Se atentarmos aos festivais musicais realizados fundamentalmente pelos municípios em Cabo Verde, veremos que a audiência visada é essencialmente doméstica. Ao promover este tipo de eventos, as administrações locais ganham pontos com os eleitores por satisfazer a procura interna de sabura e por incentivar demagogicamente atividades informais “geradoras de rendimento”: montam-se barracas, vende-se cerveja, grelham-se galinhas e consome-se muito, muito grogue de balaio – enfim, passa-se sab. Mas qual é o objeto destes investimentos? Quais são as perspetivas do poder central de forjar a partir deste caos um estratégia nacional de promoção de eventos culturais? Na melhor das hipóteses, o trio musical Gamboa-Baía-Santa Maria mais o Carnaval fazem alguns cálculos com visitantes de outras ilhas e com a Diáspora. Mas sem qualquer articulação, e ninguém conta com o essencial: audiências significativas, vindas regularmente do exterior, expressamente para consumir um rol eventos de alto nível, mais os seus serviços auxiliares. E nesse caso, não podemos realmente falar de economias. 

Certa vez, em Salvador da Bahia, visitei uma escola que foi montada por um artista de relevo no seu bairro natal e que encontra-se inserida num projeto nacional de economias criativas. Para além do enfoque em programas de formação musical, a instituição formava séquitos de teenagers de periferia destinados a integrar equipas de produção de espetáculos como operadores em diversas valências. A produção de espetáculos permanece uma frente de altíssima intensidade de mão de obra; num mercado com a dimensão do Brasil e com a sua tradição maciça de eventos, as oportunidades de trabalho que se abrem a esses miúdos – rigorosamente certificados e altamente vocacionados – são deveras promissoras. Mas por economia criativa, nenhum decisor Cabo-verdiano entenderia algo de tão prosaico como as sinergias entre as políticas de formação, a política da cultura, o mundo de espetáculos e o mercado laboral. Mesmo com todo o nosso perfil cultural.

Outra frente de negócio para a qual Cabo Verde poderia ser excepcionalmente vocacionado são os estúdios de gravação. As novas tecnologias democratizaram radicalmente a produção musical; mas os artistas de renome continuam a recorrer a estúdios internacionais de alto nível profissional, em locais onde a cultura musical também tende a ser de alto nível. Para além da infraestrutura técnica e tecnológica, inúmeros projetos procuram inputs artísticos e estilísticos locais como forma de enriquecer e diversificar o seu produto. É nessa lógica que vemos destinos como Havana, Kingston e Dakar emergir como destinos de gravação para grandes artistas internacionais; e é nessa lógica que poderiam emergir novos destinos como o Mindelo.

Mas o facto é que o Estado de Cabo Verde ignora sistematicamente o seu papel fulcral na formatação da kultura para consumo e exportação; à exceção, é claro, do AME. O Atlantic Music Expo é um evento talhado à medida das sensibilidades do nosso Governo: discursivamente elevado, exteriormente financiado, institucionalmente manipulável e que dispensa evocar qualquer relação com o trabalho cultural feito antes ou por outrem. A título de exemplo, na primeira edição do evento, a Coordenadora Geral afirmou que o seu objetivo era inscrever mais um ativo na Agenda de Transformação e participar, de forma dinâmica, inovada e criativa, no esforço coletivo rumo a um Desenvolvimento Avançado”. Tive a sensação que tinha errado de oceano: que estava realmente num evento chamado o Pacific Music Expo, realizado entre a China e a Coreia do Norte, numa região onde os Estados têm abertura para cultivar com naturalidade esse tipo de relação discursiva com a cultura.

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Autoria:Rosário da Luz,25 ago 2014 0:00

Editado porExpresso das Ilhas  em  31 dez 1969 23:00

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