Tráfico Eleitoral

PorRosário da Luz,31 ago 2014 0:00

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Nha julbera ka ten un sent, n’ta kebrod k’nem Djoza; La na kaza moral ta box, n’ta kebrod k’nem Djoza... Mesm’asin, la pa dia dez n’ta enraskod; Vida da difisil, ka ten matematika pa rezolve.” Esta composição do artista Mindelense Vlú descreve em linguagem Cabo-verdiana aquilo que o economista Sendhil Mullainathan e o psicólogo Eldar Shafir denominaram de “túnel de escassez”. A teoria subjacente a este conceito é que a pressão psicossocial sobre os indivíduos enredados em situações de carência material – em que os rendimentos não dão cobertura às obrigações financeiras – leva-os a desenvolver desvios comportamentais relativamente à percepção mainstream da racionalidade.

O cômputo de ganhos e perdas futuras é um aspecto essencial da nossa avaliação da racionalidade de uma decisão. Porém, segundo Mullainathan e Shafir, a carência material aprisiona o indivíduo num túnel psicológico e conceptual, onde a pressão dos compromissos imediatos impede-lhe ponderar os seus interesses a longo-prazo. “Jan kustuma bendi votu pa kinhentu skudu. Nos era kantu ki staba rumadu na skina; rapaz txiga, da-nu kel fala, nu bendi moku; kada um pa kinhetu skudu”. Esta foi uma afirmação feita publicamente por um jovem praiense, num evento organizado no seu bairro para discutir a relação da política com a sociedade. O objectivo da minha intervenção nesse evento era lançar conceitos e hipóteses de participação política, especificamente para a juventude, num bairro representativo da periferia da Praia. Perguntei ao meu interlocutor, “Bu vida midjora?” Claro que não.

É preciso notar que o meu interlocutor não era uma mãe com filhos em casa à espera de comida; ou uma chefe de família necessitada de cimento para ampliar a sua residência sobrelotada – ou seja, o tipo de situação que poderia ser justificada pela tal teoria da escassez, e na qual os valores em questão seriam, certamente, superiores a quinhentos escudos. No caso deste jovem – e, a meu ver, no caso generalizado da juventude.cv – encontramo-nos perante um fenómeno diverso: o da desvalorização de capital; neste caso, do capital institucional.cv, no seu avatar político-partidário.

Segundo John Maynard Keynes, “não existe forma mais subtil de subverter as bases da sociedade do que a corrupção da moeda”. A desvalorização abrupta da moeda distorce as normas assentes de comportamento económico e social: as pessoas deixam de poupar dinheiro – para o consumo planificado, para constituir família, educar os filhos ou garantir a segurança na velhice – porque o dinheiro perde a capacidade de armazenar valor. Os desvios comportamentais engendrados pela desvalorização da moeda apresentam analogias interessantes com os desvios que observamos num quadro de desvalorização de bens políticos e institucionais, nomeadamente do sufrágio eleitoral. 

A venda de um voto por quinhentos paus equivale a um rendimento de cem escudos por ano de legislatura; ou seja, cerca de oito escudos por mês de governação. Claro que, para o contratante, trata-se de um excelente negócio; mas para o nosso jovem cidadão quinhentos paus representam cinco cervejas, à razão de uma por ano. Mesmo assim, ele entendeu o custo de oportunidade da venda do seu voto nas legislativas de 2011 como nulo; porque na sua percepção este não encerrava qualquer valor real enquanto instrumento de participação política. Ou seja, não existe, para este eleitor, qualquer formação partidária.cv sobre cujo desempenho ele depositaria expectativas pessoais superiores a quinhentos escudos, faseados ao longo de cinco anos. Por outro lado, se existe um mercado paralelo onde o seu voto pode granjear uma contrapartida monetária, ainda que irrisória, é natural que seja negociado como recurso nessa praça.

Não é lícito pensar que o tráfico eleitoral.cv restringe-se à modalidade “dinheru na mon, kosta na txon” das transacções entre as organizações políticas e a juventude periférica (refiro-me especificamente á juventude periférica desorganizada; porque com a organizada, seja cívica ou criminalmente, os termos são outros). Tal como diversos outros sectores da sociedade, a juventude privilegiada também vende a sua abstenção política, cívica e intelectual ao Estado e às organizações partidárias por tuta-e-meia, nomeadamente a troco de oportunidades de emprego medíocre e de mobilidade na sociedade paroquial. E assim prosseguem as várias modalidades de tráfico eleitoral, apesar da insistência da classe política em afirmar com muita força a sua fervorosa devoção aos valores democráticos.

A democracia trouxe, de facto, ganhos incomensuráveis à qualidade existencial.cv; e segundo o Inquérito à Governança, Paz e Segurança, realizado pelo Instituto Cabo-verdiano de Estatística, o sistema de governo democrático é o quadro constitucional preferido pela vasta maioria dos Cabo-verdianos. Mas os Cabo-verdianos tendem a entender a democracia como um sistema que é positivo essencialmente por ser não-repressivo – sem especificá-lo muito para além disso. Porém, existem dinâmicas de tráfico que restringem drasticamente a funcionalidade dos outros sustentáculos do sistema democrático, nomeadamente a qualidade da representação política do cidadão e o valor intrínseco do voto individual.

Todo o sistema democrático produz instâncias de abuso do poder representativo e de ilegalidades no processo eleitoral; mas essas instâncias são constrangidas a permanecer num terreno marginal. Ou seja, os cidadãos podem ser ludibriados com demagogia, mas não podem ser comprados com dinheiro vivo; e mesmo ciente das insuficiências do sistema, qualquer cidadão de uma democracia madura bater-se-ia com unhas e dentes para preservar intacto o seu direito ao voto. O indivíduo americano pode não ter qualquer influência sobre a política externa do seu país; mas tem a confiança que o seu voto ainda pode decidir questões de fundo, como as suas perspectivas de emprego, a percentagem do salário que lhe será tributada e a qualidade do seu plano de saúde.

Em Cabo Verde – porque todos perderam essa confiança no poder potencialmente transformador do voto individual – os esquemas de tráfico eleitoral saíram da ilegalidade para se tornarem práticas normativas, o que resultou na desvalorização simbólica da participação política. E apesar de o cenário ter sido expectável, confesso que fiquei algo melindrada com a transversalidade do desencanto da juventude.cv com a política, e com o seu nível de desconfiança a respeito do carácter e das intenções dos atores políticos.

A título de exemplo, discutimos algumas alternativas de engajamento cívico, entre as quais o voto em branco, enquanto instrumento de deslegitimação política. Foi-me prontamente comunicado que “Si bu vota em branku, dja bu vota a forsa. Só parsi xansi, pessoal di mesa ta poi un cruz riba kel ki ta conves, wan!” Esta certeza parecia ser compartilhada por quase todos os presentes; foi assumida e discutida abertamente por um número de intervenientes e deve, portanto, ser do conhecimento público e de instituições como a Comissão Nacional de Eleições. Admitamos que esta percepção é falsa; a verdade é que a descrença na idoneidade dos activistas partidários e das instituições de fiscalização eleitoral é de tal ordem que os cidadãos acreditam o pior pelo simples facto de que o pior ilustra a opinião generalizada sobre o funcionamento das instituições públicas e das máquinas partidárias.

Cabo Verde – Capital, cidades, periferias e campos – atravessa no presente uma grave crise de governação económica; o desenrolar desta crise no quadro de uma conjuntura internacional desfavorável tem resultado na atrofia progressiva da economia e na fragilização dos equilíbrios sociais Cabo-verdianos. Por essa razão, entre o agravamento das dinâmicas de escassez material e o aceleramento das dinâmicas de desvalorização simbólica, é razoável contar com a proliferação dos mecanismos e dos agentes operadores do tráfico eleitoral

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Autoria:Rosário da Luz,31 ago 2014 0:00

Editado porRendy Santos  em  31 ago 2014 15:33

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