Maga Ecológika

PorRosário da Luz,8 set 2014 0:00

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Todo o odor é mais intenso quando é mediado pelo calor: um bolo no forno, um frango na grelha, o lixo no Verão.cv. Na Kapital, a potência odorífera das lixeiras e das águas paradas dispara em Agosto e ameaça aniquilar os sentidos dos cidadãos. Para além disso, o Verão costuma trazer consigo ameaças sérias á saúde pública, tipificadas pela epidemia de dengue que grassou o país em 2010 e exacerbadas por um sistema de saneamento cronicamente deficitário. Em 2010, o controle do dengue dependeu diretamente de um esforço extraordinário de saneamento, num país onde os imperativos de salubridade ambiental são costumeiramente ignorados tanto pela Administração como pela população.

Neste Verão 2014, para além dos desafios habituais, temos a ameaça tenebrosa da epidemia de Ébola que grassa a região, cuja propagação também está intimamente ligada a práticas de higiene e saneamento; e para tornar esta estação verdadeiramente especial, temos a ameaça pendente da Associação Nacional dos Municípios de Cabo Verde (ANMCV) de levar a cabo uma greve de recolha de lixo, caso o Governo não transfira para os cofres das autarquias os montantes que alegadamente lhes são devidos pelo Fundo do Ambiente. Que tal tentarmos descodificar este diálogo institucional no quadro dos reais interesses dos Poderes  Central e Local em Cabo Verde?  Que tal tentarmos decifrar os diskursus públicos de acordo com o que conhecemos dos interesses particulares dos nossos decisores?

Entre nós, a política ambiental tem gozado de uma atenção discursiva entusiástica por parte do Governo e dos Municípios. Infelizmente, este arrebatamento do sector público não resulta de qualquer compromisso ideológico com o nosso património natural; resulta sim – aliás como o grosso das nossas políticas – do carácter das relações entre o Estado.cv e o mercado contemporâneo de ajuda ao desenvolvimento. Os avultados financiamentos que são postos à disposição de projetos ambientais pela UE, ONU & Cia. refletem as ansiedades dos doadores internacionais nesta matéria – e não necessariamente as nossas necessidades. O resultado é que agradecemos que nos financiem redes de áreas protegidas, parques naturais e planos de proteção para tartarugas em extinção, mas permitimos que o habitat humano.cv enverede por uma espiral de degradação.

A continuidade da má gestão ambiental que tem sido padrão em Cabo Verde tem duas implicações potencialmente calamitosas: a primeira é a destruição do nosso património natural, cuja preservação é, por motivos óbvios, uma condição sine qua non para a felicidade das gerações presentes e futuras; a segunda é o comprometimento do nosso futuro económico. As economias mais fortes da Europa, América e Ásia atingiram os seus elevados níveis de crescimento através de processos intensivos de industrialização e urbanização; colocados perante imperativos de ordem económica, as suas populações e decisores não tiveram qualquer pudor em sacrificar sumariamente as considerações de ordem ambiental. Mas contrariamente ás economias industriais, Cabo Verde tem articulado as suas perspetivas de crescimento em torno de um turismo de alta qualidade, cuja viabilidade depende diretamente da nossa qualidade ambiental; ou seja, mesmo a racionalidade mais estritamente comercial impõe-nos a preservação do ambiente como um objetivo económico primário.

Em 2010 o Estado de Cabo Verde criou a Taxa Ecológica, que incidia sobre “embalagens não biodegradáveis de metal, vidro ou matéria plástica sintética ou artificial”; eram constituídos sujeitos passivos desta taxa os importadores e os produtores nacionais. A retórica do Governo indicava que a nossa sustentabilidade ambiental – através do financiamento da gestão de resíduos sólidos – era o objetivo primordial da iniciativa. Contudo, o desenho lamentável deste instrumento legal deixou claro que o seu objetivo único era a geração de receitas fiscais.

Naturalmente, o resultado foi nefasto. A Lei de 2010 impunha aos operadores nacionais encargos astronómicos sobre a importação de embalagens, que chegavam a representar dez vezes os valores que eram suportados pelos produtores da União Europeia, um dos mercados mais exigentes neste campo. Enquanto os importadores comerciais podiam simplesmente trespassar para o consumidor os seus encargos com a taxa, os produtores nacionais tinham muito menos margem para imputar um novo custo aos seus artigos. Qualquer acréscimo do preço dos produtos locais representa um golpe para a sua competitividade no mercado; ou seja, a medida ameaçava dizimar a frágil indústria nacional. Em 2012, perante as reivindicações dos operadores industriais, o regime tributário da Taxa Ecológica foi revisto e os encargos sobre a indústria local foram substancialmente reduzidos, para níveis mais próximos da prática internacional. Contudo, a lei continuou a ignorar o cerne da nossa problemática de gestão ambiental.

Por exemplo. O comércio chinês estabeleceu-se em Cabo Verde a partir da década de 1990, beneficiário de um conjunto de facilidades administrativas e fiscais. O baixo custo das importações chinesas garantiu o seu rápido domínio do nosso sector comercial e constituiu um bem de facto para o consumidor Cabo-verdiano. Mas a que importe económico e ambiental? Em 2014, grandemente por obra do comércio chinês, quase todos os Cabo-verdianos podem calçar-se; mas um par de chinelos de loja chinesa custa trezentos escudos, dura três meses e leva trezentos anos para desaparecer da natureza. No contexto de um Estado arquipelágico de 4033km2 que ambiciona a promoção de um turismo de luxo, o custo ambiental desses chinelos – que são renovados a cada três meses por centenas de milhares de Cabo-verdianos – é portentoso e tem que ser contabilizado.

Mas a verdade é que o impacto da Taxa Ecológica sobre a gestão ambiental nunca foi uma preocupação para o Governo, ou sequer para a Oposição; e apesar do saneamento constituir a atribuição fundamental do Poder Local, os Municípios apenas se manifestaram neste processo para contestar a revisão do modelo de afetação de receitas pela lei de 2012 – e o consequente condicionamento do seu acesso às moedinhas do Tesouro do Estado. A lei de 2010 consignava 60% das receitas da Taxa Ecológica aos Municípios e os restantes 40% ao Fundo do Ambiente. A revisão de 2012 colocou a totalidade das receitas num Fundo único, sob o controle direto da Direção Geral do Ambiente: no quadro atual, 75% dos recursos destinam-se ao financiamento de projetos de sustentabilidade ambiental (a que poderão concorrer quaisquer empresas e instituições, e não apenas as autarquias), 15% destinam-se à promoção de atividades informativas e 10% às despesas de administração do próprio Fundo.

A Direção Geral do Ambiente justificou esta mudança com a seguinte afirmação: “ao longo de anos se constatou que a utilização das verbas não obedecia a critérios claramente definidos e ninguém sabia praticamente o que se fazia com os montantes recebidos”. Imagino que este quadro esteja muito próximo da verdade; assim como imagino que os 40% das receitas que foram retidas pelo Estado entre 2010 e 2012 não tenham sido canalizados para políticas ambientais. O mais provável é que tanto o Governo como os Municípios tenham encarado as receitas simplesmente como guito, e não como recursos especificamente consignados á gestão ambiental. Mas o powa está ao lado do Poder Central; e este aproveitou a revisão de 2012 para satisfazer a sua índole centralizadora e colocar o acesso dos Municípios aos recursos do Fundo sob seu total controle. E é sobre este ponto que assenta a contingência grotesca de uma “greve geral da coleta de lixo” por parte das administrações camarárias, “até que a situação seja resolvida

Independentemente das manhas de centralização do Governo,  Manuel de Pina – o Presidente da Associação Nacional dos Municípios de Cabo Verde, ANMCV – está terrivelmente baralhado sobre diversos pontos. Primeiro, a lei vigente é clara quanto aos mecanismos de transferência de fundos para os Municípios; e portanto o Governo não pode ter novas dívidas referentes a percentagens fixas, quando desde 2012 os financiamentos são concedidos mediante o valor dos projetos apresentados. Segundo, a ANMCV pode questionar legitimamente a racionalidade do desenho da lei, a racionalidade da  centralização dos recursos e a lógica de seleção de projetos; mas não pode estribar ameaças á saúde e segurança dos cidadãos sobre reivindicações mal fundamentadas. A ANMCV não se pode permitir jogar tão levianamente com o a questão do saneamento, principalmente num Verão como este.

Se a ameaça de greve tivesse partido da Edilidade da Ribeira Grande de Santiago por iniciativa singular, caberia aos Cabo-verdianos dos outros 21 Municípios do país lamentar a sorte dos seus irmãos sujeitos á irresponsabilidade de uma tal administração camarária. Mas a ameaça partiu do Presidente da ANMCV; e pode manchar qualquer dos Municípios associados, a não ser que estes se distanciem inequivocamente da posição patologika avançada pelo magus da sua Associação.

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Autoria:Rosário da Luz,8 set 2014 0:00

Editado porExpresso das Ilhas  em  31 dez 1969 23:00

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