29 de Julho, 2014: “Ganhamos a batalha da energia!” considerou efusivamente o Chefe do Executivo durante o lançamento de mais um projeto estruturante para o reforço da capacidade energética da ilha de Santiago, a extensão da Central Elétrica de Palmarejo, na cidade da Praia. O Primeiro-Ministro considerou que graças aos investimentos que foram feitos nos últimos anos conseguiu-se a estabilização da situação energética do país e o fim dos bloqueios dos anos 90 e primeira década de 2000. “Não só estamos a estabilizar o sector como estamos a antecipar o futuro, o que demonstra a nossa capacidade de planeamento e a nossa capacidade de realização no domínio da energia e da água em Cabo Verde!”
O que terá mudado nas últimas seis semanas? Será que uma catástrofe natural devastou as nossas sofisticadas infraestruturas de produção energética – e não topamos? Será que sofremos uma invasão bárbara? E cadê a penetração das energias renováveis? A Electra não se sentiu compelida a especificar a origem do problema perante os consumidores; afirmou apenas que “avarias nas principais centrais eléctricas” são responsáveis pelo quadro, o que tem obrigado a empresa a “proceder a cortes programados nos períodos de ponta. A empresa espera resolver a situação o mais rápido possível, já que as peças para reparar as avarias já se encontram em Cabo Verde.”
Troquemos este papo em miúdos: temos uma estrutura nacional de produção energética que admite a rotura simultânea das suas quatro principais centrais elétricas; temos um sistema de substituição de peças no qual os itens em falta são requisitados ao exterior após o eclodir da emergência, e enviados ao requerente via caravela; e temos uma Concessionária que atribui uma crise de fornecimento desta envergadura a um suposto programa de manutenção técnica, que sujeita as zonas mais populosas do país a cortes gerais de 24 horas, durante semanas a fio e em pleno verão. A batalha não podia estar ganha em finais de Julho se apenas duas semanas depois toda a estrutura entrou em colapso; e a conclusão lógica dessa evidência é que a afirmação “efusiva” do PM acerca do “planeamento e capacidade de realização” do seu Executivo situava-se no domínio exclusivo da realidade virtual.
Na sua sede de vantagem eleitoral, o Governo aproveitou a relativa estabilidade do fornecimento de energia nos últimos meses (ainda que aos preços mais elevados do planeta) e o lançamento de uma vistosa infraestrutura para reforçar a sua imagem enquanto agente transformador – apesar da enorme probabilidade de ser estrondosamente refutado pelo desenrolar dos factos. Com ou sem os professados investimentos na transformação do sector, a degradação organizacional da Electra era tão evidente para todos que não é crível que o Governo tenha afirmado a sua vitória sobre a energia com boa fé, muito menos fundamentada.
Mas na afronta da proximidade de 2016, a comunicação política é forçada a transcender a mera demagogia: a regra agora é undi da ki panha; e o Governo assume conscientemente os riscos de se perjurar com perigosas ficções. Ainda bem: este último bloqueio do sector energético expõe de forma dramática – e para grande benefício dos Cabo-verdianos – o total desfasamento entre o diskursu.gov.cv e a realidade objetiva atestada pelos cidadãos; nada melhor do que este caos para ilustrar o fosso existente entre as narrativas utópicas do Governo e o desempenho desastroso da governação.
Que futuro poderemos esperar deste paradigma de serviço público? Firme na defesa da sua Agenda, o Executivo tem exaltado autisticamente a sua “capacidade de planeamento e de realização” em todas as valências da governação. Mas é inevitável que outras roturas análogas à energética sejam expostas em outros sectores mal geridos da sociedade; e as crises que advirão – da economia, da educação, da segurança, da justiça e do ambiente – poderão manifestar-se de forma não apenas dramática, mas trágica.
Em 2001, o novo Executivo de José Maria Neves prometeu reduzir a taxa de desemprego para um dígito; mas nem antes do estoirar da crise internacional – perante a qual o Governo começou por nos declarar blindados – pôde aproximar-se do mero semblante de quem iria cumprir a meta. Neste contexto, a par do sistema de redistribuição social, o ingresso no ensino universitário tem funcionado como uma válvula indispensável para o controle da pressão sobre o mercado de trabalho. A universidade adia a procura do primeiro emprego com a promessa de um emprego melhor; e cada licenciatura representa quatro ou cinco, que permitem ao Poder comprar tempo para gerir esse cidadão. Em cinco anos muita coisa pode rolar, inclusive, quem sabe, uma explosão de magnanimidade internacional, sonho de todo o governante Cabo-verdiano.
Na tomada de posse da Comissão Nacional de Acesso ao Ensino Superior (CNAES), o Ministro do Ensino Superior, Ciência e Inovação garantiu-nos que «o sistema educativo está bem” – da mesma forma que o PM nos garantiu que a batalha da energia estava ganha. “O ensino superior está a melhorar e revelou ganhos consideráveis,” afirmou o Ministro no passado dia 9, em completa contradição com a realidade observável. Tê-lo-á afirmado de boa-fé?
Após anos de massificação desregulada do ensino universitário, e após evidências bastas de que o sistema não garante a empregabilidade dos seus graduados, o Governo vê-se finalmente obrigado a dedicar algum esforço á encenação da qualidade. Mas só a encenação; porque nenhuma consideração à qualidade do ensino deverá interferir com a sua função essencial. Apesar do mandato ostensivo da CNAES, o objetivo da sua criação não será a regulação do acesso, ou muito menos o upgrade do sistema universitário. A sua principal preocupação – pelo menos de acordo com todos os discurso proferidos na ocasião – serão os chamados “cursos de superação”, que visam assistir alunos que saíram do secundário com baixa competência académica na prossecução do seu ingresso universitário. A principal atribuição da CNAES será assegurar a continuidade da válvula.
Dificilmente se poderia conceber uma política eleitoral mais arriscada: a criação de uma juventude frustrada, com altas expectativas de emprego mas sem qualquer competitividade profissional; e sem um mercado de trabalho que a absorva, mesmo abaixo das suas expectativas. Para além disso, cada licenciado desempregado traz consigo uma família endividada, confrontada com o falhanço do seu investimento e igualmente frustrada. Quando esta estrutura explodir, é fatal que o drama seja muito mais intenso do que uns cortes de luz á toa; porque o que estará em causa não será a funcionalidade de eletrodomésticos mas a de seres humanos.
O mais recente embaraço sofrido pelo Executivo.cv deve-se ao acordo de pescas assinado com a União Europeia no passado dia 01. A primeira questão levantada pela opinião pública foi a alegada exiguidade da contrapartida financeira: pela licença para pescar nas nossas águas, Cabo Verde receberá anualmente 550 000 Euros da UE – comparados com os nove milhões que a Guiné Bissau receberá pelo seu acordo, e os trinta milhões de Marrocos. Qual a razão de discrepância?
Segundo o Primeiro Ministro, não há lugar para comparações porque os nossos recursos haliêuticos não são comparáveis aos dos territórios continentais. Certo; então porque mantivemos durante décadas a ficção do elevado valor dos nossos recursos marinhos? Porque foram projetados sobre os eleitores tantos cenários fantásticos – de sustentáveis pescarias internacionais, gordas pescas artesanais e dinâmicos hubs industriais? E se os recursos pesqueiros que oferecemos à UE são de facto tão medíocres, então porquê afirmar que “foi o acordo possível, e não o acordo que nós desejaríamos”? Não será então um acordo realista, baseado no nosso fraco potencial de captura? E quais foram as “cedências” referidas pelo Governo, em prol do “bom relacionamento económico com a UE”?
Mas para mim, o maior de todos os porquês é o seguinte: se o Cluster do Mar é o mais poderoso dos nossos clusters, não seria expectável que a sua liderança – a única já estruturada de entre os clusters – fosse envolvida estratégica e operacionalmente na negociação de um acordo desta importância? Porquê o cluster marítimo não foi tido nem achado? Na minha opinião, porque tal como a transformação do sector energético e a da educação, a exploração de uma economia do mar não tem qualquer substância para os nossos decisores económicos. O que importa é garantir o pacote de 55 milhões, os trocos do acordo de convergência e outros que tais; e se para fazer sorrir a UE for necessário “ceder” a hipótese de explorar racional e realisticamente os nossos recursos marinhos, então seja. Independentemente do perigo de a estrutura explodir. Undi da ki panha.