Temp d’Kanikinha

PorRosário da Luz,6 out 2014 0:00

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No ato de abertura do Mindelact, no pátio do Centro Cultural do Mindelo, Augusto Neves, o Presidente da Câmara municipal de São Vicente, afirmou ser evidente que a cidade do Porto Grande é a “Capital Cultural de Cabo Verde”. Delírio geral! Aplausos, gritos e assobios excitados de toda a audiência. A maioria dos que se encontravam presentes testemunha diariamente o marasmo económico e a depreciação cultural que se vive em São Vicente; mas ouviu e aclamou a loa sem se questionar. Questionemo-nos: Tebas, Atenas, Roma, Florença, Amsterdão, Paris, Londres, Berlim – o que significará realmente ser uma Capital Cultural?

 

Na Praia a cultura é confundida com o folclore; os seus elogios – profusos nos diskursus dos nossos dirigentes e de suas satélites – centram-se no culto da tradison e na repetida encenação dos valores estilísticos do batuku, da tabanka e do funaná, oiaiaiá. Em contrapartida, as tradições sanvicentinas no domínio da arte contemporânea são centenárias e permeiam o entendimento popular da cultura, que é articulado com base em formas modernas como a pintura, o teatro, a literatura e o jazz kriol. O resultado é que no Mindelo a cultura não é confundida com tambores, mas com as artes; só que reduzir a cultura às artes é tão grave quanto reduzi-la ao folclore.

 

Uma capital cultural não se define pela pinta das suas soirées artísticas. Na década de 1920, a cidade de Berlim encenava espetáculos com imensa pinta, mas não era isto que comandava a sua posição entre a intelligentsia global. A pujança das artes era apenas um aspeto do dinamismo cultural da cidade que, alicerçada nas suas tradições intelectuais, aglomerou um contingente impressionante de artistas, humanistas e cientistas de vanguarda, reunidos em instituições cívicas, académicas e empresariais de vanguarda e completamente engajados com os problemas materiais e filosóficos que se apresentavam não só à Alemanha da época, como á humanidade.

 

Na primeira metade do século XX – numa conjuntura crucial para o nosso percurso identitário – o Mindelo apresentou as características de uma capital cultural; se não do mundo Ocidental, certamente do território civilizacional.cv. O que distinguia o Mindelo dessa época não era um simples gosto burguês pelos prazeres da urbanidade; ou mesmo a competência social para reproduzir modelos estéticos a partir de cânones importados; o distintivo cultural basilar do Mindelo de então era a sua capacidade de produzir soluções estilísticas, teóricas e ideológicas originais, que possibilitaram uma conceptualização autóctone da existência Cabo-verdiana.

 

Nesse período, o grande obstáculo á experimentação cultural no Mindelo era o autoritarismo do estado colonial – que em retrospetiva se revelou mais tolerante da liberdade intelectual Mindelense do que o Estado soberano.cv que o sucedeu.

No Estado soberano, a estrutura orgânica da cidade foi assaltada por uma mescla de fatores económicos e sociais que comprometeram irreversivelmente a sua produtividade cultural; o carácter do trabalho intelectual Mindelense manteve os seus altos padrões de execução formal, mas passou a ser essencialmente reprodutivo: são elaborados novos produtos, muitas vezes de grande qualidade, mas não são – como outrora – produzidas inovações sistémicas no entendimento da realidade nacional.

 

A erosão da economia privada do Mindelo no pós Independência explica em grande parte essa deterioração. Nas sociedades modernas, o principal suporte da produtividade cultural reside numa burguesia próspera e independente, residente no espaço urbano e assente essencialmente sobre o capital privado. No Mindelo, consumada a longa decadência dos serviços portuários e comerciais, a quota da burocracia estatal na economia da urbe cresceu desproporcionalmente depois de 1975; a elite burguesa foi substituída por uma elite administrativa, leal a um estado repressivo, cujo centro económico e simbólico foi fixado na Capital de forma culturalmente antagónica. De burguesa, a cidade do Mindelo manteve apenas um certo requinte, mas não os elementos fundamentais: a economia privada e a consequente ideologia. Estribada no acervo intelectual do seu passado, o Mindelo continua a exibir competências singulares nas artes, nomeadamente na música, pintura e teatro; mas há muito que não é capaz, como foi anteriormente, de formular novas abordagens aos problemas materiais e filosóficos que se apresentam aos Cabo-verdianos de hoje.

 

Nas primeiras décadas de 1900, Gertrude Stein, F. Scott Fitzgerald, Ernest Hemingway e mais centenas de escritores americanos reuniram-se em Paris porque era para ali que os escritores se dirigiam para escrever. Pablo Picasso, Giorgio de Chirico e Joan Miró também lá se encontravam porque era para ali que os mais ousados pintores se dirigiam para pintar. Uma capital cultural é um locus que atrai as mais altas competências intelectuais – da região ou do globo, dependendo do seu poder gravitacional – com uma oferta excecional de equipamentos e redes culturais capazes de potenciar os talentos individuais.

 

Na primeira metade do século XX, o Mindelo tinha o único liceu do território; oferecia as melhores oportunidades de emprego; e tinha no seu porto uma ligação privilegiada com o exterior. Nessa época, os maiores talentos nacionais aí afluíam, vindos de São Nicolau, Santo Antão, Santiago, Fogo e Brava, atraídos pelos equipamentos e pelas redes da cidade – pelo seu ambiente potenciador de talentos individuais. A partir de 1975, a centralização radical do investimento público na Praia teve um conjunto de consequências funestas para a relevância cultural do Mindelo; entre estas, a inversão da dinâmica de atração de talentos da cidade. Após a Independência, a sua reserva intelectual virou-se no sentido contrário e atrofiou-se na sequência do brain drain que se verificou na direção da Capital.

 

Paralelamente, verificamos um desenvolvimento endógeno na cultura sanvicentina que não se coaduna com a postura de um centro de produção cultural: o derrotismo. Perdida a sua capacidade de regeneração, o criador Mindelense tornou-se defensivo, apático,  e perdeu a autoconfiança; vive hoje de referências ás glórias perdidas do seu período áureo, mas sem a capacidade de mobilizar os recursos ou as vontades para restabelecer a sua relevância.

 

Ainda assim, o edil da cidade acha por bem alimentar a ficção; quando poderia optar por outro tipo de ação. As capitais culturais estabelecem-se muitas vezes na sequência de uma cadeia de desenvolvimentos aleatórios; mas desde a mais remota antiguidade que a vontade das forças vivas da comunidade constituem um poderoso motor de inovação cultural. Duques, reis, Papas e Doges financiavam a cultura na pré-modernidade; na pós-modernidade, esta é financiada essencialmente pelos criadores, pelo mercado privado e pelos recursos públicos. Enquanto gestora de recursos públicos, qual é a vontade da CMSV na promoção da cultura no Mindelo?

 

A Câmara Municipal de São Vicente financia o festival da Baía das Gatas, dá uma sólida contribuição aos grupos do Carnaval e apoia regularmente o Mindelact; mas para além destes suportes financeiros, repartidos entre as artes, qual é a sua programática cultural? Infelizmente, podemos concluir que quem insiste na projeção fictícia do Mindelo atual como capital cultural não tem programática; tal como quem o aplaude.

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Autoria:Rosário da Luz,6 out 2014 0:00

Editado porExpresso das Ilhas  em  31 dez 1969 23:00

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