As Ilhas Afortunadas

PorRosário da Luz,26 out 2014 0:00

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De acordo com o United Nations Office on Drugs and Crime, há 20 anos que os estados centro-americanos de Honduras e El Salvador disputam a taxa de homicídio mais elevada do planeta. Em 1995, El Salvador atingiu uma taxa de 139 homicídios por 100 000 habitantes; em 2012, tinha-a reduzido para 41.2/105, enquanto em Honduras esta mantinha-se num astronómico 90.4/105. Em ambos os países, o disparo da violência criminal foi atribuída a um conjunto específico e interligado de fatores: a deportação maciça dos EUA de delinquentes de origem local – membros de gangues organizadas que reconstruíram o modus operandi da sua atividade nos States; a consequente escalada da atividade de gangues juvenis nos dois territórios; e a participação de ambos os países nas redes de tráfico internacional de narcóticos. Ring a bell?

Segundo os dados da UNODC, a região da África austral – África do Sul, Lesotho, Swazilândia – empola a média continental, com taxas de homicídio que se situam acima dos 30 por 105 habitantes – três a quatro vezes aquelas que se verificam em outras regiões africanas. Mas mesmo a taxa de 38/105 do Lesotho situa-se abaixo da Jamaica – um dos mais sólidos destinos do turismo americano e britânico – cuja taxa de homicídio é de 39.3 por 105 habitantes. Outros destinos turísticos da região Caraíba – como as Bahamas e Puerto Rico – também exibem taxas perto dos 30/105; e a US Virgin Islands – um território administrado pelos Estados Unidos e a sua eterna colónia de férias – apresenta uns bombásticos 52.6 homicídios por 105 habitantes, o dobro do percentual verificado na República Democrática do Congo.

Segundo os mesmos dados, a taxa de homicídio em Cabo Verde no ano de 2012 foi de 10.3 por 105 habitantes, um pouco abaixo da média africana de 12.5. O documentário Francês “Un Air de Paradis”, de Charles Baget et Patrick Dedole, emitido na semana passada pela France Ô, traça um interessante quadro comparativo entre Cabo Verde e a Nigéria a respeito desta matéria: “Dois países que vivem a ritmos muito diferentes; países que tudo opõe mas com duas realidades em comum – a pobreza e a violência.”

A verdade é que a taxa de homicídio na Nigéria – 20/105 em 2012 – situa-se muito acima da média africana, e é o dobro da Cabo-verdiana; portanto não se pode falar de realidades análogas, e a relação estabelecida pelo documentário é falaciosa. Mas o que não podemos negar são as fortes reações que a peça provocou nas audiências Cabo-verdianas – residentes e na Diáspora – e que dividiram o nosso público em duas facções: os ofendidus,  chocados com a representação demoníaca de nos terra d’morabeza (LOL), convencidos de uma conspiração para destruir o nosso turismo e determinados a restabelecer na integridade a honra da pátria amada; e os radikais, que consideram o documentário uma representação profunda e híper-realista do universo.cv, algo que os poderes estabelecidos e a população alienada quer negar a todo o custo. Onde se situará a percepção correta dos níveis de violência e miséria que subsistem realmente na sociedade Cabo-verdiana?

A contenção de “Un Air de Paradis” é de que Cabo Verde é uma sociedade completamente dominada pela atividade dos gangues, cuja violência situa-se nos mais altos níveis do continente africano. Será válida? Até que ponto é sustentável a sua tese de que Cabo Verde é um narco-estado? Até que ponto é comprovável que o grosso da população.cv vive na mais abjeta miséria, sem ter mesmo a água de beber? A narrativa oficial é de que Cabo Verde é um exemplo africano de paz e boa governação, um baluarte da luta internacional contra o narcotráfico e, claro está, um universo em plena transformação económica.  Contudo, apesar do evidente grude interno deste discurso, parece não estar nas mãos do Estado a projeção internacional de uma imagem positiva para o país. Mas o que é infinitamente mais grave é que parece não estar nas mãos do Estado a gestão eficaz dos problemas que afligem de facto a sociedade Cabo-verdiana – e que resultam em que a nossa taxa de homicídio, ainda que muito inferior á da Nigéria, seja o dobro das que se verificam nos países de rendimento médio que queremos imitar.

Gostaria de salientar que aqui refiro-me apenas aos dados sobre o homicídio, e não sobre outras formas de crime – estupro, agressão, furto, extorsão e corrupção – que também originam níveis intensos de violência social. Mas este indicador parece-me particularmente relevante para o nosso contexto nacional, pois o escalar do homicídio está associado à tipologia particular da violência que vivemos contemporaneamente em Cabo Verde: urbana, progressivamente organizada, decorrente da atividade de gangues e intimamente ligada ao tráfico de narcóticos.

Posto isto, o que é que nos dizem os dados da UNODC – e como se comparam ao documentário da France Ô? Primeiro, dizem-nos que a correlação entre o subdesenvolvimento económico e a violência não é linear. Um exemplo ilustrativo é taxa de homicídio na Noruega, que é o triplo das da Suécia e Dinamarca. Oslo já foi referida como a capital do crime da Escandinávia; à primeira vista não se percebe muito bem porquê, visto que a Noruega não é propriamente um enclave subdesenvolvido na região. A alta taxa comparativa de criminalidade na Noruega é fascinante pelo que revela de aleatório na ocorrência de violência numa determinada conjuntura.

34% da população prisional de Oslo é de origem estrangeira, o que indica que a maioria dos delitos não é cometida por nacionais. O aspeto singular é que uma grande proporção dos crimes contra a propriedade cometidos por estrangeiros não o são por minorias étnicas oriundas de economias pobres, mas por infratores europeus – seduzidos pela acessibilidade da capital, pela relativa indulgência da polícia e dos tribunais e, particularmente, pelo conhecido conforto das prisões norueguesas. Ou seja, o nível de criminalidade na Noruega é originado por uma mescla de circunstâncias geopolíticas e administrativas, e não pela insuficiência económica ou institucional.

Para além disso, os dados da UNODC sugerem que os pensadores e os decisores.cv não dão quaisquer provas de querer perceber ou gerir os factores que motivam verdadeiramente a violência na nossa sociedade. Os nossos diskursus, tanto acusativos como justificativos, giram em torno da estagnação económica, do desemprego, das más políticas sectoriais e da irresponsabilidade familiar; isto quando tudo leva a crer que um conjunto específico de fatores interligados – o desvio das rotas de cocaína sul-americana dos Caraíbas para a África, a utilização das importadoras informais.cv para o transporte de narcóticos, a repatriação intensiva de competências criminais provenientes dos EUA, a dinamização subsequente dos gangues locais e a globalização dos padrões de consumo – esteve na origem dos surtos de criminalidade verificados a partir da década de 1990. Naturalmente, qualquer política de segurança pública que pretenda o mínimo de sucesso terá que abordar visionariamente esse histórico, mas não é esse o caso.

Infelizmente, os dados da UNODC também indicam que o controle da criminalidade não se resume a uma questão de governação. As Seychelles – uma referência africana em matéria de gestão – apresentam uma taxa de 9.5 homicídios por 105 habitantes; ou seja, apenas ligeiramente mais baixa que a Cabo-verdiana, e mais alta que a dos Camarões, Somália, Guiné Conacri, Guiné Bissau e Libéria, algumas das maiores referências internacionais em má governação. Em geral, os estados Caraíbas – e, em menor escala, os crioulos Africanos, como Cabo Verde e Seychelles –  apresentam taxas de homicídio muito acima daquilo que se verifica na Europa, Ásia, América do Norte e grande parte da África. Os dados sugerem que existe uma vertente geopolítica e cultural forte na determinação dos níveis e da tipologia de violência nas sociedades crioulas, independentemente da sua maturidade económica e institucional. Um olhar pelo resto do globo confirma que as variações regionais noutras paragens são igualmente limitadas, independentemente das variações políticas e institucionais.

No que respeita diretamente o documentário em apreço, uma das questões mais sérias que se coloca perante a projeção internacional de uma imagem negativa do país é a atratividade.cv enquanto destino turístico e de investimento. Apesar das suas taxas exorbitantes de homicídio, os destinos turísticos dos Caraíbas e da América Central continuam privilegiados pela clientela Americana e Europeia. Mas o tipo de turismo que logra desenvolver-se em más condições de segurança pública é um modelo all inclusive de condomínio fechado, que enriquece as corporações multinacionais e nunca a população local. Esse turismo cria emprego apenas nos escalões mais baixos da cadeia de valor e na prostituição. Certamente não é este o sector que queremos para o futuro; mas é o único que nos arriscamos a ter, se não gerirmos com mais seriedade a violência crescente no país, bem como a sua construção mediática além fronteiras. 

Na minha opinião, “Un Air de Paradis” é uma composição melodramática e sensacionalista da realidade.cv, mascarada de rigor documental. Não a considero sensacionalista porque inventa uma violência inexistente; mas sim porque substitui a parte pelo todo e utiliza o elemento da criminalidade para caracterizar a totalidade do universo.cv. A peça recorre a imagens de arquivo altamente manipuladas – câmara lenta, som, narração, etc. – para recriar ficcionalmente aquilo que reporta tratar-se de uma documentação da realidade. Isto significa que, como informação fiável, o seu valor é limitado; mas as diversas reações ao filme constituem uma fileira preciosa de informação, porque ilustram cabalmente um conjunto das nossas fragilidades conceptuais: a fragilidade da imagem.cv no exterior e a nossa incapacidade de produzir contraditórios; a fragilidade do nosso ego nacional; e, fundamentalmente, a fragilidade da nossa capacidade social de análise. O público.cv achou que a peça era insulto, difamação, vitupério; ou inversamente, confundiu o áudio-vídeo com a realidade e achou super profundo o tratamento da criminalidade; ou seja, a audiência Cabo-verdiana fez tudo menos aquilo que devia – demonstrar a segurança que todo cidadão deve ter sobre o seu entendimento da sua própria realidade.

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Autoria:Rosário da Luz,26 out 2014 0:00

Editado porRendy Santos  em  24 out 2014 17:20

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