Na semana passada a proposta de Lei Orçamental para o ano de 2015 foi submetida à Assembleia Nacional pelo Executivo. A finalidade do debate parlamentar que se realizou esta semana deveria ter sido a análise da referida proposta, de acordo com o programa apresentado pelo Governo para a legislatura e com a conjuntura economicamente depressiva pela qual atravessa o país. Mas quem está atento à atividade parlamentar pode averiguar que, independentemente do carácter dos eventos – interpelações ao Governo sobre políticas sectoriais, o debate anual sobre o Estado da Nação, ou a discussão do Orçamento do Estado – a matéria nominalmente em apreço no Parlamento da República é apenas marginalmente tratada pelos sujeitos parlamentares; o verdadeiro propósito do nosso Governo e dos nossos representantes eleitos é, consistentemente, a promoção nua e crua das suas corporações – não a dos seus constituintes.
Posto isto, qualquer cidadão que esteja interessado em compreender as opções do Governo para 2015 terá que analisar o documento por si próprio. Quanto a este artigo, não lhe será de grande utilidade, pois o seu objeto também não é o estudo da proposta de lei orçamental; o seu propósito é antes a análise do evento parlamentar. Apesar de não nos informar acerca da bondade das despesas e do investimento público para 2015, o debate sobre a proposta orçamental prestou esclarecimentos em domínios igualmente relevantes: nomeadamente, a filosofia política e as opções tácticas das nossas organizações partidárias neste delicado período pré-eleitoral. Nesse sentido, o foco destes apontamentos é o teor das narrativas apresentadas no debate – e as intenções dos sujeitos parlamentares que as articularam.
Segundo o Executivo, o OE 2015 é um orçamento de “transformação”; é mais um passo na “estratégia bem definida” de transformar Cabo Verde num “centro internacional de prestação de serviços, no horizonte de 2030”. O Primeiro-ministro fez um balanço cintilante das políticas e do desempenho do seu Executivo nos últimos treze anos; prestou as devidas homenagens retóricas à sua gestão macroeconómica; e aos suportes ao sector empresarial, á empresarialização da agricultura e á criação de competências que estão inscritos na sua proposta orçamental; mas as narrativas que o Governo e a Maioria se esforçaram verdadeiramente por passar aos eleitores – no horizonte de 2016 – referem-se à continuidade do programa de infraestruturação e à expansão da rede de proteção social.
Barragens, portos, aeroportos, casas para todos e mais barragens; apesar das duras críticas ao seu programa de infraestruturação e do questionamento generalizado das suas opções de endividamento, o Governo insiste tenazmente na construção em série de infraestruturas que terão, supostamente, a finalidade de revolucionar a nossa existência económica. As barragens em construção pelo país afora poderão não ter o condão de transformar a economia no horizonte de 2030; mas, no quadro atual de estagnação, é sobejamente óbvio para a Situação que o investimento público é a base sobre a qual assentam os equilíbrios sociais que lhe garantem a continuidade no poder. É igualmente evidente para a Maioria que a construção de estradas, barragens e habitação social pode ser questionada pela Oposição e por uma elite intelectual; mas é sancionada pelo grosso da população, que sobrevive precisamente deste género de transferência de recursos económicos – mas que não tem os recursos culturais para avaliar custos estratégicos e financeiros das políticas populistas que lhe são propostas. E o resultado é que a Oposição já nem ousa contestar frontalmente o investimento público em betão, com medo de ser castigada no plano eleitoral pelos que se creem beneficiados.
Para os segmentos da população que não poderão beneficiar diretamente do programa de infraestruturas e do racionamento de emprego público, a Situação tem a mensagem da “inclusão”. Uma das estratégias de diferenciação ideológica do PAICV é a caracterização do MpD como inimigo da igualdade social. A década de 1990 é descrita como um período de enriquecimento dos amigos do poder, que acentuou a desigualdade na sociedade Cabo-verdiana, origem de inúmeros dos seus problemas contemporâneos. As narrativas do PAICV realçam o comprometimento da Situação com a “justiça” e a “inclusão” social, e prometem às massas populares a integração gradual nas diversas redes de proteção do Estado.
“Trabalho!” repetia incansavelmente a Oposição ao longo do debate; “Os Cabo-verdianos querem trabalho para terem rendimentos!” A verdade é que os Cabo-verdianos nunca tiveram grandes oportunidades de desenvolver as referências acertadas para o conceito de “trabalho”; durante cinco séculos, a nossa experiência laboral foi dramaticamente condicionada pela insuficiência de recursos hídricos; e, nos últimos quarenta anos, só logramos criar emprego no sector da reciclagem de recursos públicos. Os Cabo-verdianos querem rendimentos, é certo; mas para nós, a conexão entre o trabalho produtivo e a fruição de rendimento foi sempre muito vaga; e se pudermos assegurar a sobrevivência (e algum lazer) com um emprego apadrinhado, ou pela via da transferência de recursos do Estado (pensões, habitações, subsídios e cestas básicas), estamos dispostos a sustentar o sistema sem quaisquer outras exigências sobre o mercado laboral.
Infelizmente para a Oposição – e uma verdadeira tragédia para os Cabo-verdianos – a Situação tem um entendimento claríssimo desta relação cultural da população com o trabalho; e está ciente que a natureza dessa relação garante-lhe um espaço positivo de manobra política, mesmo perante o fracasso objetivo da sua governação económica. Portanto, independentemente das imprecações da Oposição, o Governo limita-se a uma defesa estritamente pró-forma da sua incapacidade de gerar emprego; fala da crise internacional, do desemprego qualificado, mas a verdadeira tónica do seu discurso está na garantia à população da continuidade orçamental dos esquemas de redistribuição – sob a nomenclatura de “transformação”, “formação de competências” e “inclusão”.
Um dos temas que mais tem absorvido os cidadãos e a opinião pública Cabo-verdiana é a questão da segurança. A Oposição acusa o Governo de agravar continuamente a situação, negando às instituições sectoriais os meios para combater eficazmente a criminalidade e a violência; a Situação defende-se afirmando que o Governo já fez o que lhe competia e que agora cabe a o cidadão “cuidar-se”. O conceito de “cuidar-se”, traduzido pelo Primeiro-ministro, assemelha-se perigosamente à adoção voluntária de um sistema de recolher obrigatório, que priva o malfeitor da nossa presença na via pública – e portanto da tentação de nos roubar ou violentar. Conviria lembrar ao Governo que esta solução é costumeiramente adotada em situações de completo colapso da autoridade estatal; mas ninguém o fez. E foi assim que, em plena discussão do Orçamento do Estado, o chefe do Executivo permitiu-se repetir perante a Plenária a lista completa de recomendações de segurança com que foi brindado quando chegou ao Brasil como estudante; e foi nessa base que apelou aos governados que privatizem a gestão da sua própria segurança.
Face ao estado alarmante da segurança pública e perante este argumento desrespeitoso – não só da segurança, como da inteligência dos cidadãos – a Oposição encontrava-se solidamente posicionada para se insurgir contra a explanação do Executivo e exigir a orçamentação de uma estratégia eficaz e articulada de luta contra a criminalidade. Mas revelou-se incapaz de desconstruir eficazmente seja a desastrosa evolução do quadro nacional de segurança ao longo dos últimos treze anos, seja a responsabilidade direta do Executivo na matéria.
A certa altura do debate, o deputado Júlio Correia argumentou que questionar as políticas do Governo é questionar o bom senso do povo que sufragou por três vezes o seu programa; questionar o Executivo é acusar o povo de ignorância. Teria sido necessária mais coragem política do que aquela que se encontrava disponível na Oposição para afirmar que o povo nem sempre está consciente, em real time, das opções e das organizações que melhor servem os seus interesses; teria sido necessário mais engenho para recordar aos eleitores que, ao longo da história da humanidade, as maiorias populares já suportaram inúmeros tiranos e elegeram incontáveis maus gestores. Uma relação abusiva do Estado para com o cidadão não assenta exclusivamente na força; pode assentar muito mais discreta e eficazmente na dependência económica dos indivíduos e na ausência de referências políticas e culturais que afligem as jovens democracias.