Este Domingo, o PAICV pronunciou-se sobre quem vai liderar a preparação do partido para a próxima legislatura. Janira Hopffer Almada, Ministra do Emprego e da Formação Profissional, venceu os candidatos Felisberto Vieira e Cristina Fontes Lima logo na primeira volta por uma maioria absoluta, consagrando-se presidente do partido e candidata a Primeiro-ministro nas legislativas de 2016. Tanto dentro como fora do PAICV, os Cabo-verdianos estão cientes de que este não foi um embate comum; para além de decidir a próxima candidatura do partido à chefia do Governo da República, as eleições definiram uma questão muito mais ampla e determinante: nomeadamente, a nova moldura do acesso ao poder no partido da situação.
Há muito que não assistíamos a um cenário de múltiplas candidaturas em eleições partidárias. Os últimos aconteceram em 2004 para o MpD e no ano 2000 para o PAICV; desde então, a renovação de lideranças em ambos partidos tem-se pautado exclusivamente por candidaturas únicas. Apesar disso, é significativo que esta disputa não tenha sido capaz de galvanizar os militantes do PAICV, pois mais de metade dos quase 30 000 inscritos não foi às urnas. Apurados os resultados, Janira Almada obteve 51,24% dos votos expressos; Felisberto Vieira – líder parlamentar e vice-presidente do partido – 40,34%; e Cristina Fontes Lima – Ministra da Saúde e também vice-presidente do partido – 8,45%. O que nos revela este desfecho?
Um dos primeiros suportes visuais disseminados pela campanha de Cristina Fontes foi uma fotografia de grupo onde a candidata aparecia ladeada pelas Ministras das Infraestruturas, das Finanças, da Administração Interna, pela atual Ministra do Turismo e por celebridades do partido como Filomena Martins e José Brito. Cristina Fontes teve ainda o apoio expresso do Ministro do Ensino Superior e do Ministro das Relações Exteriores, seu mandatário. E apesar de o Primeiro-ministro ter anunciado que não explicitaria a sua opção, era vox popoli que Fontes contava com o seu apoio tácito. Qual foi o rendimento de todo este capital político? Uma derrota brutal nas urnas. Porquê?
A meu ver, a causa deste grau inesperado de insucesso foi um mix do anacronismo da estrutura de campanha e das insuficiências políticas pessoais da candidata. Em qualquer universo, um dos fatores determinantes do sucesso político é o carisma pessoal. Independentemente de moções, plataformas ou interesses particulares, a capacidade da candidata de comunicar autoconfiança e segurança na vitória é uma componente crucial do seu desempenho. Mas à exceção de alguns registos fotográficos bem apanhados, Cristina Fontes nunca logrou emanar a segurança necessária para fazer o seu público acreditar realmente na vitória da sua candidatura.
Outro fator determinante do sucesso eleitoral é um domínio sólido do aparelho partidário. Os deputados do PAICV podem demonstrar servilismo ao Governo na casa parlamentar; mas as eleições presidenciais de 2011 foram uma prova concludente de que a estrutura partidária tem autonomia e competência para contrariar efetivamente os desígnios expressos do PM e do Executivo. E neste embate, assim como o Governo em peso apoiou Cristina Fontes, assim a estrutura convencional do PAICV alinhou-se com Felisberto Vieira. A candidatura de Vieira soube alojar-se estrategicamente em antigas fissuras faccionárias mas, fundamentalmente, recorreu com perícia à aceitação visceral que “Filú” goza no seio da organização. Apesar das demais carências da candidatura, o seu domínio do aparelho partidário – particularmente face ao handicap das suas adversárias nesta valência – explica em grande parte a forte expressão eleitoral que Vieira logrou mobilizar, isolando a candidatura de Cristina Fontes Lima como aquela que realmente não soube dominar as ferramentas da nova conjuntura.
Um dos elementos mais marcantes desta “nova conjuntura” – fator responsável pela transfiguração drástica das campanhas internas dos partidos políticos.cv – é a recente introdução estatutária de eleições por sufrágio direto dos militantes. Quando a escolha do presidente era realizada pelo voto dos delegados sectoriais, o embate era realmente uma questão interna à estrutura, tratada através do organigrama hierárquico dos barões do partido. Naturalmente, o tipo de política que é hoje necessária para angariar o militante de base tem requisitos muito diferentes da que era antes utilizada para negociar com a aristocracia partidária.
Neste contexto, os requisitos técnicos, materiais e conceptuais sobre as campanhas internas são outros. Já não se trata de aliar barões mandatados para negociar pelo seu feudo; agora é necessário convencer o peão de que ele poderá tirar proveitos diretos da escolha desta ou daquela candidata. É evidente que isto não elimina o poder dos barões sobre a estrutura de campanha; mas relativiza radicalmente a sua influência sobre os resultados. Em consequência, as campanhas internas perderam o seu desenho tradicional e assemelham-se agora – pela sua forte dependência em comunicação técnica e meios materiais – a embates interpartidários.
A única candidatura que soube perceber e adaptar-se completamente a este fenómeno foi a de Janira Almada. Apesar de partilhar com Cristina Fontes um enorme handicap no que respeita competências pessoais de comunicação, Janira Almada investiu na construção da sua imagem com maior profissionalismo do que os demais. Sem o apoio dos seus colegas de Executivo e largamente rejeitada pelos barões do partido, Almada lançou-se à conquista das bases e das franjas da Situação, com recurso intensivo a serviços técnicos profissionalizados, média, redes pessoais, redes sociais e redes assistenciais – não apenas com o objetivo de angariar os militantes, mas também de estender a aceitação da sua imagem a toda a sociedade. O resultado é que logrou recortar uma sólida plataforma de suporte, à revelia do poder executivo e do aparelho partidário, respetivamente posicionados com Fontes e Vieira. Quais foram então os apoiantes de Janira Almada? E como chegaram á maioria?
Janira Almada integrou o Governo sob a proteção manifesta do Primeiro-ministro. Desde o primeiro momento, surgiram rumores especulativos sobre a possibilidade de José Maria Neves pretender prepará-la para a sua sucessão no partido. Contudo, parece-me significativo que o Primeiro-ministro nunca acordou à Ministra do Emprego uma posição na orgânica do Governo que coincidisse com esses desígnios; e também parece-me revelador que em Janeiro de 2014, José Luís Neves, filho do Primeiro-ministro, tenha encontrado espaço suficiente para promover um ataque corrosivo contra a competência e o carácter da Ministra (sua antiga boss) sem que o pai se incomodasse visivelmente.
Mas o facto é que foi cedida a Almada a tutela sobre as principais redes de assistência e transferência do Estado; e foi-lhe assim garantida a possibilidade de se constituir, juntamente com os seus operativos, em provedora direta da sobrevivência de idosos, carenciados, deficientes, indigentes e candidatos a bolsas de formação profissional. A mestria de Janira Almada na exploração política das redes assistencialistas do Estado – acoplada aos investimentos privados dos seus familiares no mesmo sector – garantiu-lhe um canal de acesso privilegiado à alma profundamente comercial do militante contemporâneo; e muito provavelmente irá garantir-lhe também a adesão de um eleitorado nacional desempregado, dependente e ideologicamente nulo.
Qualquer que seja o desfecho de 2016, os resultados de Domingo inauguraram uma conjuntura sem precedentes na história da democracia Cabo-verdiana: onde o chefe do Governo deixou de ser o líder do partido, num processo que expôs a extrema impopularidade do seu elenco governamental; onde a número dois do Executivo, e vice-presidente do partido, não mobilizou mais do que 8,45% dos militantes – e portanto já não tem como justificar a sua precedência, nem no Governo nem no partido; e uma nova presidência, ganha à revelia da alta aristocracia da organização, e que vai certamente, nos próximos meses, exigir os ajustes devidos á expressividade da sua vitória.
É difícil não interpretar estes resultados como um declínio expressivo do capital político do PM dentro da sua organização; e é impossível não especular sobre os conflitos que surgirão entre os interesses e as lealdades delineadas este Domingo no seio do partido, e que determinarão em grande medida o processo de reagrupamento do poder. Neste ponto, resta-me apenas esclarecer a referência titular deste texto. O Anel de Sauron é um dos vinte Anéis do Poder descritos nas obras de J.R.R. Tolkien. A sua forja foi promovida por Sauron, o senhor do reino de Mordor, que para isso necessitava da assistência dos elfos de Eregion. Contudo, dezanove anéis acabaram por ser forjados autonomamente por Celebrimbor, o líder dos elfos ferreiros; três foram dados aos Reis-Elfos, sete aos Anões e nove à raça dos homens. Sauron então forjou secretamente um Grande Anel, capaz de dominar os outros; e com ele lançou-se à conquista dos povos da Terra-média.