Plataforma Mon na Txon

PorRosário da Luz,29 dez 2014 0:00

Chegou a quadra a natalícia, um dos momentos mais sublimes do mercado global. Para celebrar o nascimento de Cristo, gastamos rios de dinheiro no que é desnecessário, endividamo-nos para financiar o que é frívolo e aceleramos a utilização irresponsável de energia, combustíveis e materiais poluentes. Para promover a irmandade entre os homens, quem mais pode dá bonitos presentes a quem já tem, e empilha os seus farrapos velhos para ofertar aos desvalidos; as famílias congregam-se em torno de ceias sumptuosas, mas só lá recebem quem já vem farto; e há entre nós babilónios que estão mais preocupados com a sua festa de Réveillon do que em viver com retidão ao longo do ano que vem.

A concupiscência e a imprevidência são-nos transversais enquanto raça e são, de facto, espiritualmente lamentáveis. Mas o facto é que a saúde das economias modernas requer a manutenção de elevados níveis de consumo; e as variáveis que influenciam mais positivamente a procura de bens e serviços são o orgulho, a inveja, a avareza e a gula – todas com o seu pico no Natal. Ou seja, infelizmente, o desempenho económico do trimestre depende da celebração de Natais intensamente pecaminosos; e a nossa tera kirida também teve que aprender a celebrar a temporada de forma mais modernamente comercial. 

Longe vai o tempo em que as Galerias Serbam na Praia e a Casa do Leão no Mindelo perfaziam as fantasias de consumo dos putos.cv – dos citadinos privilegiados é claro, porque os preços do stock limitadíssimo de livros e brinquedos eram sumariamente proibitivos para o per capita da época. Pelas Festas, a maioria da criançada não tinha nem bonecas nem camiões e considerava-se muitíssimo satisfeita com uma roupa nova, e a possibilidade de comer guloseimas no caminho das missas. E assim continuamos até a década de 1990, época que deu início à transfiguração do mercado.cv.

Por todo o país, a relação apertada que o povo mantinha com o consumo até cerca de vinte anos atrás foi integralmente modificada: primeiro, pelo estabelecimento chinês, que inaugurou a modernidade cultural em Cabo Verde quando inundou o mercado local de quinquilharias a baixo custo; depois, pela expansão da rabidância internacional – antes tímida e reduzida atividade, mas que agora é responsável por um volume respeitável de emprego e trocas comerciais. Há ainda uma terceira grande vaga de massificação do consumo nacional: o chamado Yá, agora disponível por todo o arquipélago, nas caóticas superfícies da plataforma mon na txon.

são os artigos de vestuário e bric-à-brac que chegam a Cabo Verde via bidon di Merka, e que eram tradicionalmente enviados por parentes como contribuição para as economias familiares. Para e quadra festiva, o stock habitual é reforçado com brinquedos, bibelots e toiletes destinadas a chocar a vizinhança nos bailes de Fim do Ano. O estabelecimento Yá dispõe os seus produtos no chão, em molhos e montículos, com as empresárias languidamente acomodadas no topo, dormitando nos períodos mortos entre os torresmos, as rifas e os mexericos. Anteriormente na Kapital, esta movida comercial tinha sede entre Sucupira e Ponta Belém, com apenas uma ou outra exploração nos bairros de periferia; mas agora os molhos e bidons característicos do franchise alastram-se agressivamente pelos passeios, praças e rotundas e de toda a cidade, levantando a questão fundamental do nível.cv de evolução comercial.

De todas as peças de vestuário que já possuí, uma das que  mais amei foi uma jaqueta de couro com franjas à cowboy, comprada na década de 1990, em Boston, no Strutters da Newbury Street. Este santuário de “previously owned clothing” era uma das minhas lojas favoritas, e foi um dos fundamentos do meu estilo de universitária semi-gótica. O meu apartamento de estudante foi montado na mesma linha, sobre uma base de utilidades de segunda mão, que incluía um conjunto de talheres de prata – peças órfãs de nobres faqueiros, compradas a um dólar cada num antiquário da Charles Street; e uma instalação (concebida por mim) de seis candeeiros elétricos da década de 1970, também comprados a um dólar cada, perfeitamente funcionais e lindos de morrer.

Sempre fui uma consumidora aficionada de peças que acumularam estilo e história ao longo de vidas anteriores. Em Cabo Verde, a oferta de trapos em primeira mão é sinistramente exígua em qualidade e diversidade; mas com algumas referências e muita determinação, é possível descobrir fileiras insuspeitadas de luxo e originalidade nos molhos e bidons das nossas boutiques mon na txon. Pessoalmente, sou cliente assídua das divisões Yá Woman, Yá Kids e Yá Home; portanto, longe de mim advogar a erradicação da única praça comercial que me dá prazer. Mas a propagação desregrada de superfícies Yá pela cidade impõe determinadas reflexões sobre a desorganização económica e territorial patente na Kapital.

O Yá.cv não é a Strutters. Nascidas a partir dos armazéns geridos por instituições de caridade como o Salvation Army,  as lojas de used chic começaram na década de 1990 a explorar a intensa romantização pop do passado, que se tornou característica da sociedade Americana. A Strutters era o topo da sua gama no meu tempo de estudante: a sua gerência desenhou um ambiente perfeito para comunicar a originalidade das peças e envolver o cliente nas suas fantasias do passado; e logrou localizar-se na zona comercial mais badalada de Boston, o que significa que tinha margem financeira para tal. Mas longe de evoluir para experiencias mais sofisticadas – como aquela que surgiu na Rua de S. João, no Mindelo – o Yá da Praia manteve-se no chão, literal e figurativamente. 

Quem é cliente já teve a oportunidade de observar os níveis de produtividade das promotoras da plataforma: imóveis sobre os seus fardos de cinquentinha, dedicam-se inteiramente à revenda de artigos de baixíssimo valor acrescentado, sem qualquer cobertura de saúde ou previdência social. É difícil acreditar que este é o modelo de autoemprego que se quer para a mãe de família.cv, pois é evidente que ele não suporta a qualidade de vida que se defende para ela e para seus filhos. Infelizmente, a expansão do Yá  põe a nu tanto ausência de alternativas laborais, como a nossa trágica vocação cultural para este tipo de letargia económica.

Quanto à ocupação do território urbano pela plataforma Yá, esse processo põe a nu o grau de ingerência atingido pela cidade da Praia. Um dos locii mais representativos da desorganização continuada da coisa urbana na Kapital é a praça de táxis da Achada de Santo António. Este terreno descalcetado e imundo alberga um bar surreal, que é operado legalmente no local, com uma grande garrafa de coca cola insuflável a sustentar os fios da sua inacreditável ligação elétrica; mesmo ao lado, a Câmara Municipal opera um parque infantil, onde as crianças da zona brincam no meio do lixo, dos excrementos e do risco de electrocução. E ao longo toda a extensão das minúsculas vias de acesso que ligam a praça ao passeio, duas ou três operadoras Yá montam tranquilamente os seus cobertores, com brinquedos poeirentos e velhos  brindes Merry Christmas a anunciarem a celebração em estilo Cabo-verdiano da temporada comercial.

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Autoria:Rosário da Luz,29 dez 2014 0:00

Editado porRendy Santos  em  5 jan 2015 10:23

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