O Ano do Cavalo

PorRosário da Luz,5 jan 2015 10:02

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O Cavalo é o signo mais yang do horóscopo chinês; é associado ao princípio masculino, ao Sol e ao fogo. Em finais de 2013, os almanaques astrológicos previam ansiosamente insegurança e tumultos para o ano do Cavalo que se aproximava – 31/01/2014 a 18/02/2015 no calendário lunar; pois se o Cavalo encerra em si o princípio da energia criativa, também encerra o perigo e a possibilidade de conflito. E de facto, o ano transato foi pontuado por um rol planetário de desastres: a escalada do conflito em Gaza; a crise da Crimeia; a afirmação do Estado Islâmico; a propagação da epidemia de Ébola; os raptos do Boko Haram; a guerra racial em Ferguson; as quedas dos aviões da Malásia; e os protestos contra o Mundial da FIFA.

Em Cabo Verde, 2014 termina dramaticamente com a erupção do vulcão do Fogo e com os danos sofridos pela população de Chã das Caldeiras. A vida humana foi integralmente preservada, mas as consequências económicas e emocionais das erupções foram trágicas. No processo, o coletivo.cv não questionou por um instante a gravidade do acontecimento; e a sociedade reagiu à catástrofe com a absorção característica das situações de grande sinistro. Em circunstâncias deste género, a iminência  do perigo e da perda é tão evidente que o coletivo é capaz de lhe apreender totalmente a gravidade, e de reagir de forma adequada.

As erupções vulcânicas e os maus anos agrícolas são eventos devastadores, mas é evidente para todos que não surgem por vontade ou culpa de nenhum mortal; sendo assim, a aceitação social da adversidade é pacífica e a mobilização coletiva é muito mais eficaz, porque não há dispersão de energia em choques de interpretação. Porém, as catástrofes nem sempre se anunciam pela força da natureza; as perdas materiais e espirituais que delas resultam nem sempre são imediatas; as ameaças à sustentabilidade do futuro nem sempre são inteligíveis; e a responsabilidade pela desgraça nem sempre é socialmente neutra.

Este ano, o vulcão do Fogo não só demonstrou a volatilidade do território geográfico que o circunda, como expôs a nossa total impreparação para a enfrentar. Consta que, semanas antes das primeiras erupções, as instituições técnicas e meteorológicas ligadas à área avisaram os decisores.cv da alta probabilidade de atividade vulcânica; mas a informação não foi devidamente considerada. Ou seja, alegadamente o conhecimento do perigo circulou por algum tempo antes de ser disseminado e, fundamentalmente, antes de ser utilizado na formulação do melhor plano para a evacuação dos residentes e para o transporte dos seus bens. 

Com a sua lava, o vulcão do Fogo demonstrou que a sofisticação tecnológica é essencial para prever catástrofes naturais, mas não é suficiente para as gerir. Os decisores públicos tiveram acesso aos avisos que a tecnologia permite; mas a par da competência científica, a minimização de desastres e contingências exige excelência organizacional. Não foi excelência o que se testemunhou em resposta à fúria do vulcão: primeiro, perdeu-se um barco a caminho do Fogo (!); e as notícias dos primeiros momentos de caos em Chã das Caldeiras reportavam condutores que pretendiam cobrar 15 000 ECV por fretes nas zonas de perigo – em consequência das oportunidades de negócio abertas pelas insuficiências dos mecanismos de socorro.

A previsão e gestão de catástrofes sociais funciona mediante uma fórmula análoga: a competência intelectual é o fundamento da identificação e previsão do perigo; mas não é suficiente para o gerir. A sociedade pode ter os seus pensadores/as, críticas/os e intelectuais; e podem encontrar-se todos em estado de profundo alarme, a bradar aos céus sobre a iminência de catastróficas erupções no tecido económico e social; mas se o coletivo não for capaz de identificar o perigo que corre e de avaliar as suas futuras perdas, continuará a suportar cegamente o sistema que o condena.

Infelizmente, nos últimos tempos, o coletivo.cv não se tem distinguido pela sua sofisticação intelectual em qualquer valência, pública ou privada; o que não significa que os perigos que ele não reconhece não estejam perigosamente iminentes. No âmbito dos infortúnios, o ano do Cavalo trouxe-nos a fúria da natureza – uma força que acabou por se revelar clemente perante a vida humana; não nos trouxe nada parecido com os conflitos do Levante; mas clarificou um conjunto se dinâmicas sociais e culturais que nos ameaçam muito seriamente. Nessa onda, gostaria de referir algumas das contingências potencialmente catastróficas que pairam sobre o nosso horizonte.

A fundação da sociedade.cv. acarretou a brutalidade da escravatura e da expropriação; mas o sofrimento histórico do povo Cabo-verdiano nunca incluiu a brutalidade da guerra. Aqui, nunca mãe nenhuma recebeu a notícia do bombardeamento da escola do seu filho; nunca vivemos sob as contingências das mães palestinianas em Gaza. Mas o facto é que o nosso presente carrega consigo um nível de violência há muito esquecido pelo coletivo. E a meu ver, o que há de alarmante no novo quadro não é apenas o agravamento da criminalidade; o que é deveras assustador é o seu caráter patológico, totalmente fora das nossas tradições culturais.

A conjuntura socioeconómica é de estagnação, mas é demonstrável que a relação entre a violência e a carência não é linear; assim como não é linear a relação entre a insegurança e a densificação urbana. Para nós, o principal perigo no momento reside na transfiguração da plataforma moral que rege a nossa a tolerância pela brutalidade; e a verdade é que, apesar das demonstrações generalizadas de repulsa perante os novos escalões de violência, a fibra moral da sociedade Cabo-verdiana parece estar a adaptar-se. Se esta propensão continuar, a urgência em gerir os surtos de  violência que se nos apresentam, por razões diversas, desaparecerá; e se a população continuar a acomodar-se passivamente à selvajaria – via o aumento do consumo de grades e alarmes – a derrocada da qualidade da nossa existência será catastrófica.

O ano do Cavalo não nos substituiu a democracia por um regime repressivo. Aliás, eu gostaria de atestar publicamente a minha satisfação com o respeito pelas liberdades civis que vigora na democracia.cv. Como colunista, discorro semanalmente sobre a disfuncionalidade do Executivo e sobre a inoperância do poder administrativo; contudo, a pior represália que já me foi dirigida foi a minha exclusão dos órgãos de comunicação do Estado. De resto, ninguém me ameaçou, agrediu ou encarcerou.

Mas se a liberdade política e o direito ao sufrágio não forem acompanhados pela sofisticação progressiva do eleitor, a democracia acarreta o risco de se transformar num jogo de gato e rato entre o poder e o cidadão despreparado. O esvaziamento intelectual e moral do voto reforça a demagogia, o nepotismo, a cleptocracia e a incompetência da governação; o resultado é a decadência do Estado e o agravamento da dependência do cidadão. Pessoalmente, admito que é bestial publicar artigos sem ser presa ou torturada – como aconteceria certamente se me atrevesse a fazê-lo sob a vigência do Estado Islâmico; mas a decadência do Estado.cv não deixa de constituir um passivo perigosíssimo sobre o meu futuro e o da minha filha.

No ano de 2014, ninguém obrigou as mulheres de Cabo Verde a usar burqas sobre as suas minissaias e biquínis. Em grandes extensões da África e do Oriente Islâmico, mulheres e meninas estão sujeitas á mutilação violenta dos seus corpos, da sua liberdade e do seu potencial. Mas enquanto isso, a minha filha cresce em pleno, com a possibilidade de testemunhar as mulheres do seu país competir pelas mais altas responsabilidades da República. Em Cabo Verde, o lugar da mulher no mainstream político e social está bem garantido, inclusive pela tradição; na nossa modernidade, quem está em risco de perder a sua tradicional relevância é a Cabo-verdiana das classes populares.

As dinâmicas das últimas décadas resultaram no desenraizamento comunitário da mulher Cabo-verdiana e na sua desvinculação das redes de suporte tradicionais. A questão que se põe não é apenas a da desvalorização genérica da mulher pobre; o problema fundamental é a sua desarticulação enquanto pilar do tecido social.cv. O equilíbrio das famílias Cabo-verdianas depende diretamente da fortaleza das suas mães; e qualquer investimento na infância, na educação e na inclusão social corre o risco de ser completamente anulado pela decadência simbólica da dignidade feminina e pela debilidade operacional da função materna.

Poderíamos continuar a listar o potencial catastrófico da sociedade Cabo-verdiana, com referências medonhas aos desenvolvimentos que se manifestam em todos os domínios de gestão da nação; podíamos falar muito mais da bancarrota da economia, do serviço público e do capital intelectual. Mas a verdade é que a moral desta história está toda contida num dos nossos mais sábios provérbios tradicionais: “Fronta e ka so lumi ku agu”. Muita luz para 2015.

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Autoria:Rosário da Luz,5 jan 2015 10:02

Editado porExpresso das Ilhas  em  31 dez 1969 23:00

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