Os Mandingas do Mindelo pela sua recente capacidade de mobilização de pessoas constituem um fenómeno que ultrapassa a compreensão em relação aos grupos de Carnaval.
Sou um fã incondicional de manifestações de cultura urbana moderna e descomplexada, como já várias vezes afirmei aqui neste espaço. Sou assim desde que comecei a articular o meu nome neste paraíso de cultura urbana que é a minha cidade. E por isso mesmo tenho seguido com entusiasmo a crescente adesão de pessoas aos desfiles dos grupos de cariz popular denominados “Mandingas” que, seguindo uma tradição antiga, saem todos os domingos à tarde descendo dos bairros limítrofes para o centro da cidade anunciando com um mês de antecedência a chegada do Carnaval, o maior evento cultural deste país, alinhando a cidade do Mindelo com a maior festa do planeta – não poderia ser de outra forma, porque “esta cidade nasceu com o Mundo”, no dizer de Humberto Cardoso.
Mas os milhares de pessoas que seguem os Mandingas pela cidade são um fenómeno recente. Porquê agora, no século XI?
No domingo passado resolvo ir assistir à partida dos Mandingas da Ribeira Bote, o grupo que movimenta mais gente. Chego ao coração do bairro cerca das 15h e pergunto pelos Mandingas. Indicam-me o local, no meio de ruelas estreitas da “Ilha de Madeira”.
Os Mandingas da R. Bote já estão na fase final da preparação. São dezenas com os corpos seminus cobertos de tinta preta e com as saias já vestidas. Estão a ultimar a pintura, a colocar adereços, ajudando-se mutuamente. Entro no “estaleiro” e poucos segundos depois dá-se o inevitável: um Mandinga adolescente encosta-se inadvertidamente em mim e fico com o lado esquerdo pintado de preto! O chã é de terra e os Mandingas pintam-se a céu aberto. Sinal dos tempos há vários Mandingas mulheres, algo impensável na minha juventude. São de todas as idades, de adolescentes a homens e mulheres de meia-idade, embora em média sejam jovens.
Cá fora já estão umas quantas dezenas de pessoas, animadas com música de Carnaval distribuída por potentes colunas de som. Os membros da batucada já aquecem acompanhando a música e o ambiente já é de frenesim. Os Mandingas vão saindo do estaleiro, mas há ainda muitos a pintarem-se. Ao microfone está um activista que vai publicitando a venda de camisolas: há de todos os tipos, mas todas de cor negra como convém. Os dizeres vão desde “100% Mandinga” até um actualizado “Je suis Mandinga”, que o pessoal não brinca no aproveitamento das vantagens da bendita globalização.
Chegam alguns turistas com as caras pintadas de negro, prontos para a festa.
Antes do arranque há pedagógicos apelos no microfone ao civismo, para evitar distúrbios e prejudicar a imagem do grupo. Fico contente e confirmo que não são os Mandingas os responsáveis pelos excessos dos seus seguidores, como já tinha chamado a atenção no ano passado nas duas crónicas que escrevi sobre o Carnaval.
Os chefes com cajados e lanças de madeira dão ordens para a tão ansiada partida. Alinhados à frente da batucada, os Mandingas iniciam a contagiante e típica dança tribal africana. O momento é arrepiante e a assistência cai na dança também, que os ritmos da mãe África são irresistíveis. O chão é de terra batida e no meio de uma poeirada lá partimos por entre estreitas ruelas e becos rodeados de casas cheias de gente nas varandas, portas e janelas. A maioria são “tias” com netos e bisnetos ao colo, todas sorrisos e a marcar o ritmo num afirmativo e aprovador movimento pendular das cabeças, como a querer dizer “se eu tivesse menos 40 anos iria convosco”. Os Mandingas da R. Bote partem do seu bairro debaixo da bênção das suas mães e avós, que isto da tradição é para manter – e os bebés do bairro aprendem a marcar o compasso no conforto do colo das suas avós e bisavós.
Estou intrigado: a turba já conta com centenas de pessoas, mas onde estão os milhares que costumo ver a regressar da varanda da minha casa?
A resposta chega de seguida. Ainda sem sairmos do bairro começam a chegar vários grupos de jovens vestidos de negro de todas as ruas perpendiculares. São autênticas hordas galopantes que chegam a correr vindos de todos os lados. Em segundos passamos de centenas para mais de um milhar.
A batucada faz um repique e a turba responde num clamor ensurdecedor. O ambiente atinge os píncaros de histeria global e a dança atinge o seu apogeu. Ainda surpreendido com a evolução da coisa, reparo que já não caminho, as minhas pernas dançam sem que eu lhes tenha dado nenhuma ordem. Durante alguns minutos trava-se uma batalha entre os meus genes africanos e a reprimida educação ocidental – o cérebro clama por compostura e as pernas respondem “que se lixe a imagem e o que os outros pensam”. Filho de um exímio bailarino e eu próprio um apaixonado praticante de todos os tipos de dança, acabo por sucumbir ao ritmo e passo a ser mais um no meio de uma multidão de gente de todas as idades, sexos, crenças religiosas e “classes sociais”. Todos unidos e contagiados por uma energia comum que resulta num frenesim indescritível.
Prosseguimos em direcção ao centro da cidade. As ruas vão-se tornando mais largas e a turba vai crescendo proporcionalmente com gente continuamente a chegar. Desisti de estimar quantos milhares já somos. Todas as ruas estão ladeadas de uma multidão que espera a chegada do grupo e se vai juntando a ele.
Perto do Liceu Velho uma amiga grita-me com típico humor mindelense: “estás com uma cara muito branca para estar nos Mandingas!”. E eu que tinha passado a manhã na praia da Lajinha a tentar apanhar alguma cor debaixo do abrasador sol que temos tido.
Chegamos ao centro da cidade, na majestosa e larga avenida Baltazar Lopes da Silva. Como esta cidade foi bem concebida, aproveitando a generosidade da mãe Natureza! Situada numa das baías mais bonitas do mundo, os nossos antepassados portugueses (e ingleses) construíram uma bonita cidade e legaram-nos um património construído inestimável.
Para vir dos bairros limítrofes para a “Morada” (centro ou down town) a população só tem que descer. A cidade convida as suas gentes todos os dias, e por isso os crioulos cabo-verdianos livres vindos de todas as ilhas aqui construíram a sua cidade mais democrática. E por isso é que é nesta cidade cosmopolita que um fenómeno como os Mandingas nasce, arrastando tudo e todos.
O cortejo de vários milhares acaba de conquistar a sua cidade. Um conhecido comerciante já septuagenário, afilhado da minha avó, apressa-se a fechar a porta da sua casa no preciso momento em que eu estou a passar uns metros à frente do grupo para fazer fotografias e filmar. Olha para mim com um ar incrédulo e cumprimenta-me. Não me disse nada, mas o olhar foi elucidativo: “também tu?!”.
Percebo o questionamento. As estimativas feitas inclusive pela polícia, são de 7 a 8 mil pessoas em cada desfile dominical dos Mandingas da R. Bote. Com tanta gente junta, na sua esmagadora maioria jovens, alguns excessos têm acontecido. Como é natural, há delinquentes que se aproveitam destas ocasiões. Mas não é assim em todos os Carnavais deste mundo?
Mas não exageremos! Morreu alguém como acontece todos os anos no Brasil? Houve montras de lojas assaltadas? Os desfiles passam por ruas onde estão estacionados carros e nada acontece… Eu estive a fotografar e a filmar com o meu telemóvel sem nenhum problema.
O fenómeno é recente e entendo que as próprias autoridades ainda estejam a aprender a lidar com ele.
Questiona-se o consumo de álcool durante os desfiles. Estavam à espera de quê, que se consumisse sumo de manga?! O agronegócio ainda não dá para tanto!
Há quem se sinta importunado com os impropérios que alguns vão gritando e cantando. Estavam à espera de sonetos românticos?! Vamos impedir os nossos filhos de praticar desporto por causa dos insultos às mães dos jogadores e dos árbitros nos recintos desportivos?
O fenómeno dos desfiles de Mandingas é tão intenso que realmente ou se gosta, ou se detesta. Eu estou entre os primeiros. Há notícias de imitação do fenómeno noutras ilhas e inclusive em Roterdão na Holanda, a cidade que recebeu milhares de marinheiros cabo-verdianos foragidos nos barcos que escalavam o Porto Grande do Mindelo. É a internacionalização. Encontro um holandês que conheço há muitos anos. Passou a viver em Dakar e traz consigo uma namorada senegalesa que nunca tinha vindo a Cabo Verde. Estão ambos abismados, ela ainda mais. Lá vou explicando que Mandingas são povos da Guiné-Bissau, que faz fronteira com o país dela…
Saindo da Avenida Baltazar Lopes chegamos à praça José Lopes, dois monstros sagrados da nossa cultura, dois dos democráticos pais da nossa nacionalidade. Não conheci José Lopes, mas convivi de perto com o seu sobrinho Baltazar. Tenho a certeza que Baltazar olharia para esta manifestação popular dos Mandingas com olhos tolerantes, ele que tanto apreciava tudo o que tinha a ver com o seu povo.
Do alto da praça José Lopes aprecio mais uma vez o desfile. Mais de 50 mandingas vêm na frente, dançando ao compasso da batucada, esforçando-se ao mesmo tempo para afastar a multidão que os comprime apesar da largura da avenida. Recordo a minha infância, quando havia um punhado de Mandingas que assustavam as pessoas com as suas espadas de ferro. Agora é o contrário, arrastam milhares de pessoas que querem ficar o mais perto possível deles. Por essa razão passaram a usar só lanças de madeira, para evitar acidentes. No meio da dança, consegue-se distinguir os chefes, que se movimentam com majestosa indiferença em relação à multidão.
Reconheço um deles, Dúdú, que conheci uns dias antes. Um rapaz claro de olhos claros e cabelo ao estilo rasta (dreadlocks) que lhe caem pelas costas. Com a cara toda pintada de preto os olhos ainda parecem mais claros, num desconcertante contraste com a pintura. Parece um chefe tribal africano. Poderá ser descendente de algum? Ninguém pode confirmar nem desmentir. Mas poderá também ser descendente de um chefe tribal europeu – antes de terem reis, os povos europeus viviam em tribos com chefes tribais. Como a maioria dos crioulos cabo-verdianos, os Mandingas possuem antepassados africanos e europeus. E estamos em tempo de Carnaval, pelo que fantasiar é o mote…
Continuaremos na próxima crónica a analisar este fenómeno, cuja explosão recente até agora ninguém conseguiu explicar.