Na rota dos escravos, da crioulidade, da cabo-verdianidade e da verdade (II)

PorJosé Almada Dias,8 dez 2015 6:00

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Revendo as entrevistas que se sucederam na Rádio Televisão de Cabo Verde, encontro algumas frases fortes em relação ao papel do nosso país no tráfico de escravos. Vamos tentar analisar essas frases.

 

Cabo Verde: o primeiro entreposto de escravos no mundo na escravatura moderna.

A frase anterior foi proferida perante as câmaras por um historiador nacional. Não sei o que significa “escravatura moderna”. Sei que a escravatura é um flagelo que afecta a Humanidade desde as suas origens e que, infelizmente, está longe de ter acabado, tema sobre o qual nos debruçaremos mais à frente. Vimos na crónica passada que os árabes traficaram escravos africanos para fora do continente desde o século IX, ou seja, vários séculos antes da descoberta de Cabo Verde pelos portugueses.

Sendo assim, não se pode dizer que o nosso país foi o primeiro entreposto de escravos em África e muito menos no mundo.

 

Cabo Verde é o marco zero do tráfico do Atlântico” e “A Cidade Velha é o ground zero do tráfico de escravos transatlântico.

Umas vezes, diz-se tráfico atlântico, outras, transatlântico. O que significa transatlântico? Será apenas quando se processa a travessia do oceano Atlântico no sentido Este-Oeste, de África para as Américas?

Vamos recuperar um parágrafo que escrevi há dois anos na crónica “Crioulos Europeus I – a chegada dos negros à Europa”:

“A partir de 1460, com o regresso à Guiné da caravela do português Diogo Gomes (armada pelo rei Afonso V), juntamente com as caravelas do português Gonçalo Ferreira e do mercador genovês Uso di Mare, inicia-se então o tráfico organizado de mão-de-obra escrava obtida através de acordos directos com os régulos da África Negra, ao nível praticamente de Estado para Estado”.

Ou seja, o tráfico de escravos negros em embarcações europeias não foi inicialmente de África para as Américas, mas sim de África para a Europa, e não passava por Cabo Verde. Este tráfico, pouco falado, era feito a partir dos entrepostos de Arguim e da costa do Senegal e destinava-se sobretudo aos portos de Lisboa, em Portugal, e Sevilha, em Espanha, que já nessa altura tinham importantes mercados de escravos, na sua maioria vindos de África.

Recuperemos mais alguns parágrafos da crónica referida anteriormente:

“Segundo estimativas baseadas em registos históricos, de 1441 a 1505 entraram em Portugal entre 140 000 a 151 000 escravos africanos.”

“A população de Lisboa entre os séculos XV e XIX chegou a ser constituída por 10 a 20% de negros e seus descendentes. O mesmo para Évora, Alentejo, Algarve e parte do litoral do Norte de Portugal. Números semelhantes nas cidades espanholas de Sevilha e Málaga.”

“Os primeiros escravos negros chegaram a Portugal cinquenta anos antes de Colombo ter avistado a América, de Vasco da Gama ter chegado à Índia, de Pedro Álvares Cabral ter “achado” o Brasil e antes ainda da descoberta de Cabo Verde.”

É preciso dizer que já em 1444-45, os portugueses edificaram na ilha de Arguim, na costa da Senegâmbia (hoje Mauritânia), uma fortaleza para daí se dedicarem ao comércio de escravos africanos e outras mercadorias. Ora, Cabo Verde foi descoberto em 1460.

Sendo assim, também Cabo Verde não foi o primeiro entreposto de escravos africanos no Atlântico nem em África, e a Cidade Velha não pode ser o marco zero do tráfico atlântico desses escravos.

Vamos agora analisar o tráfico de escravos denominado de transatlântico, ou seja, para as Américas.

Comecemos com um outro facto histórico importante: o primeiro contingente de escravos negros enviado para o Novo Mundo não partiu de África. A 22 de Janeiro de 1510, o rei Fernando, o Católico, decretou em Valladolid que 50 escravos africanos partissem para trabalhar nas minas da ilha de Hispaniola (hoje dividida em dois países, República Dominicana e Haiti). Já a 14 de Fevereiro desse ano, de Madrid, o rei ordenou a partida de mais 200 escravos para serem vendidos em São Domingo, actual capital da República Dominicana.

Mas, curiosamente, estes primeiros contingentes de escravos africanos que foram enviados para as Américas não foram os primeiros a atravessar o Atlântico. Os primeiros escravos que cruzaram este nosso oceano foram “índios” capturados por Cristóvão Colombo nas ilhas caribenhas, e que foram enviados para Espanha para serem vendidos no mercado de escravos de Sevilha. Nessa altura, o plano de Colombo seria enviar 4000 escravos por ano para Espanha, ou seja, o tráfico transatlântico foi inicialmente planeado para ser no sentido oposto!

Porque terá falhado esse primeiro circuito de tráfico de escravos transatlântico?

Em primeiro lugar, os índios não resistiam ao frio de Espanha e morriam às centenas. Mas ainda mais importante, os índios revelaram-se pouco resistentes e pouco dados ao trabalho escravo.

Do outro lado, no Novo Mundo, os escravos índios utilizados pelos colonos europeus eram pouco produtivos e morriam em grande quantidade devido ao excesso de trabalho e às doenças trazidas pelos europeus. Por essa razão, esses mesmos colonos europeus terão solicitado autorização para trazer escravos negros, mais resistentes ao trabalho e às doenças, já nessa altura com provas dadas nas plantações de cana-de-açúcar da ilha da Madeira e em vários trabalhos pesados em Espanha e Portugal continental.

Um facto curioso: um documento de 1511 enviado ao rei de Espanha reportava que um escravo negro trabalhava o equivalente a 4 índios caribenhos!

E assim começou um dos períodos mais negros da história da Humanidade, que, todavia, se não tivesse acontecido, não estaria eu aqui a escrever estas crónicas, nem Cabo Verde e o Novo Mundo seriam o que são hoje.

Resumindo, os primeiros escravos africanos enviados para o Novo Mundo partiram de Espanha, alguns até já nascidos em Sevilha, que nessa altura já detinha um enorme contingente de escravos africanos. Há, inclusive, um decreto português de 1512 que proibia o envio de escravos de Cabo Verde para outro destino que não fosse Lisboa.

Sendo assim, a Cidade Velha também não foi o marco zero do tráfico de escravos para as Américas.

 

Cidade Velha foi o primeiro entreposto oceânico de escravos.

Esta frase tem o condão de ter um preciosismo em relação às precedentes – introduz a palavra oceânico, uma inteligente forma de tentar contornar a aparente falta de rigor das anteriores. Quando a ouvi pela primeira vez, exclamei: “Ah, temos aqui uma solução que poderá funcionar bem no marketing turístico da nossa primeira cidade.”

O oceânico dá um ar de algo no meio do oceano, separado fisicamente da mãe África. Mas depois lembrei-me: “E a ilha de Arguim na Senegâmbia? E a ilha de Gorée no Senegal?”

A própria importância da Cidade Velha enquanto entreposto de escravos tem de ser devidamente estudada. Os estudos mostram que essa importância terá sido relativamente efémera, como se pode compreender. A maioria do tráfico de escravos de África para as Américas foi feita a partir do golfo da Guiné e da região de Angola. Ora, as embarcações que partiam dessas regiões para o Brasil e restante América Latina e Caraíbas não passavam por Cabo Verde, uma impossibilidade ditada pelos ventos e correntes.

É preciso lembrar que, dos cerca de 12,5 milhões de escravos negros que se estima terem sido enviados de África para o Novo Mundo (em 35 mil viagens durante 350 anos), 95% destinavam-se à América Latina e Caraíbas, e menos de 5% à América do Norte. Só o Brasil recebeu cerca de 4-5 milhões!

Repare-se na figura seguinte, retirada do livro Atlas of the Transatlantic Slave Trade, publicado em Outubro de 2010 (Universidade de Yale) e que reúne, pela primeira vez, 200 mapas sobre o comércio transatlântico de escravos.

 

Como se pode constatar, a esmagadora maioria desse tráfico nunca passou por Cabo Verde.

De modo que me deixaram preocupado algumas frases vindas a público no passado mês de Outubro e que volto a reproduzir:

“Governo reivindica lugar central de Cabo Verde na rota mundial do tráfico de escravos.”

“Cabo Verde quer reconstruir a rota mundial do tráfico de escravos e fazer com que os cidadãos estejam conscientes da sua contribuição e herança para a formação da sociedade e da história mundial.”

“A rota dos escravos é fundamental para a construção do futuro de Cabo Verde”.

Devo confessar que estas declarações não me parecem augurar nada de bom e não contribuíram para que eu dormisse bem depois de as ler.

Tive a oportunidade de, como turista, visitar a ilha de Gorée no Senegal. É uma visita importante para quem gosta de História, mas é algo pesado a todos os níveis. Ao ver a pequena porta por onde eram forçados a embarcar milhares de escravos, não deixei de me questionar se muitos dos meus antepassados não terão passado por ela.

Mas acabei por não gostar da atmosfera que se vive em Gorée. Ficou-me a amarga sensação de ter presenciado uma verdadeira indústria criada à volta de um acontecimento tão trágico. Pareceu-me existir alguma falta de pudor na forma como tudo concorre para impressionar os turistas, particularmente os europeus, talvez como forma de os fazer sentir-se culpados por um crime perpetuado pelos seus antepassados e do qual eles também têm de se redimir (e pagar). Nem uma palavra sobre os senegaleses que capturavam violentamente outros conterrâneos africanos e os arrastavam até à costa para os vender aos europeus. Compreende-se...

Espero não vir a ver o mesmo na Cidade Velha, no meu país, que é um país crioulo e mestiço resultante da mistura de povos e que deve ser um exemplo para o mundo, como várias vezes já frisei.

Na próxima crónica, iremos debruçar-nos sobre o papel dos africanos nesse que foi declarado um Crime contra a Humanidade. Quando existe um crime, convém que todos os criminosos, sem excepção, sejam identificados, para que não se cometa a injustiça de acusar apenas uns, enquanto outros ficam somente no papel de vítimas...

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Autoria:José Almada Dias,8 dez 2015 6:00

Editado porRendy Santos  em  4 dez 2015 14:47

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