Na rota dos escravos, da crioulidade, da cabo-verdianidade e da verdade (III)

PorJosé Almada Dias,22 dez 2015 6:00

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Em várias das entrevistas realizadas no passado mês de Outubro aquando da reunião estatutária na Cidade Velha dos membros que integram o Comité Científico do Projecto “A Rota do Escravo – Resistência, Liberdade e Herança”, foi repetido que existe alguma amnésia sobre o tráfico de escravos africanos e que haverá gente interessada em que essa amnésia se perpetue.

Vamos então tentar dar o nosso humilde contributo para que algumas amnésias sobre este assunto sejam esclarecidas. Digo amnésias, porque são várias. Vamos tentar listá-las, algumas das quais já tínhamos abordado em crónicas anteriores:

A existência de trabalho escravo entre os vários povos africanos desde sempre (muito anterior à chegada dos árabes e posteriormente dos europeus);

O tráfico de escravos africanos para fora do continente feito pelos árabes durante nove séculos e que tirou da mãe África cerca de 17 milhões de almas segundo o historiador africano Elika M’Bokolo (os europeus tiraram 12,5 milhões durante 350 anos);

O decisivo papel dos senhores africanos no tráfico de escravos para a Europa e para as Américas, papel que nunca é mencionado.

De todas estas amnésias sobre este acontecimento trágico, todas elas muito graves, a que me parece mais chocante é a última, que é o tema desta crónica.

A escravatura em África entre os vários povos africanos sempre existiu em larga escala. Pessoas eram escravizadas através das guerras, de razias, do julgamento por crimes ou heresias e até há autores que referem a escravização voluntária para escapar à fome.

Um dado importante é que a escravatura em África era mais dirigida para trabalhos domésticos e para emprego na agricultura (apesar de em algumas sociedades se terem empregado escravos no exército), o que fazia com que as mulheres fossem as preferidas. Nesse sentido, há autores que defendem que a actividade de compra de escravos pelos europeus, que preferiam homens destinados aos duros trabalhos nas minas e nas plantações de cana-de-açúcar nas Américas, veio inclusive aliviar os senhores africanos desse tipo de escravos. Por essa razão também há quem sustente que a própria escravatura já existente em África teria sido uma das bases do comércio transatlântico de escravos.

De um lado uma procura crescente, do outro, uma oferta ilimitada.

Dois grandes momentos levaram a que o tráfico de escravos da África para as Américas se intensificasse e estão ambos ligados ao Brasil:

A denominada revolução americana do açúcar que aconteceu no século XVI quando no Brasil se inventaram as grandes plantações de cana-de-açúcar. Isso fez com que esse país se tornasse no herdeiro de São Tomé e Príncipe na produção e exportação para a Europa desse bem precioso, o açúcar, que nessa altura era muito procurado, sobretudo para fins medicinais. O Brasil herdou esse status de São Tomé, que por sua vez tinha herdado da ilha da Madeira, que por sua vez tinha sucedido às Canárias e às ilhas mediterrâneas (alguns autores referem que houve uma tentativa de transformar Santiago, aqui em Cabo Verde, numa nova Madeira, tentativa essa que falhou devido à falta de água);

No século seguinte, mais precisamente em 1698, descobre-se ouro em Minas Gerais e seguidamente em vários outros locais do Brasil, originando-se uma verdadeira corrida ao ouro nesse país ainda em formação.

Ambos os acontecimentos provocaram uma enorme corrida a mão-de-obra escrava, sobretudo de africanos, muito mais resistentes e produtivos do que os escravos índios. Como prova disso, no ano de 1572 os valores relativos eram os seguintes: 25 dólares para um escravo africano, 9 dólares para um escravo índio.

Uma macabra curiosidade: a esperança média de vida de um escravo africano nas plantações de cana-de-açúcar era de apenas 10 anos, devido à dureza do trabalho, o que motivava uma demanda permanente. A reprodução de escravos nessa altura não era encorajada, porque isso significaria tirar uma mãe escrava do trabalho durante cerca de 3 anos, para além do tempo que demorava a que uma criança crescesse. Por essa razão, ficava mais barato importar interruptamente escravos adultos do Congo e de Angola!

Mas quem dominou esse grande volume do tráfico de escravos com destino às Américas foram os próprios soberanos africanos. Os estudos mostram que apenas no início, na zona da Senegâmbia (hoje Mauritânia), os europeus aventuraram-se no rapto directo de escravos. A partir daí, foram necessárias negociações com os soberanos africanos que capturavam os escravos e os vendiam aos europeus na costa ou no curso dos principais rios. Curiosamente, um dos primeiros povos a colaborar com os portugueses no tráfico de escravos foram os Jalofos da zona do Senegal, algo que, como referi na crónica anterior, não é mencionado aos turistas na ilha de Gorée. Os Jalofos trocavam escravos por cavalos e armas, o que lhes permitia depois capturar mais escravos.

Vejamos mais alguns exemplos elucidativos.

O poderoso reino de Daomé (actual Benim) floresceu devido ao tráfico de escravos. O filho do fundador, o rei Tegbesu vendia cerca de 9.000 escravos/ano, principalmente aos portugueses e franceses e estima-se que só desse negócio teria um rendimento anual de cerca de 250.000 libras, muito superior aos comerciantes mais ricos de cidades europeias como Nantes e Liverpool. Nessa altura, os proprietários mais ricos de Inglaterra teriam rendimentos anuais que não excediam 40.000/50.000 libras.

Várias foram as cidades que floresceram em África à conta do tráfico de escravos. Inicialmente na época medieval o tráfico de escravos organizado pelos árabes fez nascer e crescer várias cidades na região do Níger, uma das quais a famosa Tombuctu.

Com o tráfico transatlântico essa prosperidade espalhou-se por vários portos e regiões africanas: na Costa do Ouro em Ashanti e Accra, na Costa dos Escravos, em Daomé e Lagos, no Senegal, no Congo, em Luanda e até em Moçambique.

Um outro exemplo é a ascensão do reino Ashanti após compra de armas aos ingleses e holandeses. O povo Ashanti, antes produtores de ouro, passaram progressivamente a vendedores de escravos aos holandeses, ao ponto que, a partir de 1705, a Costa do Ouro passou a ter como maior negócio não ouro, mas escravos.

Como concluem vários autores, eram os próprios africanos que determinavam quem deveria seguir para o Novo Mundo nos barcos europeus.

Quem também participou nesse processo foram os chamados “lançados”, mestiços filhos de portugueses e africanas, muitos deles originários dessas nossas ilhas de Cabo Verde. Esses lançados dominavam o tráfico de escravos nos rios das costas da Guiné, onde construíram um forte no rio Cacheu, até ao rio Gâmbia, onde dominavam várias cidades.

Não deixa de ser irónico (ou talvez não), que esses “empresários” cabo-verdianos, eles próprios fruto do tráfico de escravos, tenham feito a sua primeira internacionalização precisamente no negócio do qual resultou a sua própria existência e a do seu país.

Outros mestiços de ascendência britânica e holandesa, frutos de casamentos entre comerciantes e mulheres africanas também se especializaram como intermediários do negócio de escravos no Golfo da Guiné. Idem aspas, para mulatos descendentes de franceses em Gorée, no Senegal.

Nas Américas também muita gente enriquecia com o tráfico transatlântico. O Brasil transformou-se no maior mercado mundial de escravos, tendo recebido quase metade dos escravos que cruzaram o Atlântico. Bahia e Pernambuco foram importantes portos ao ponto que, em 1618, essa região ser referenciada como “Nova Guiné”. Posteriormente os escravos viriam cada vez mais da zona de Angola, tendo Luanda exportado nos anos seguintes (entre 1597 e 1637) cerca de 84% dos escravos que chegavam ao Brasil.

O Rio de Janeiro passou a ter o maior mercado de escravos das Américas, o que fez com que os comerciantes brasileiros se aventurassem eles mesmos no negócio, deixando de depender de Lisboa. Um exemplo de sucesso é Francisco Felix de Sousa (Chacha), que nos anos de 1840 dominou o tráfico de escravos provenientes de Daomé. Os brasileiros levavam tabaco, muito apreciado no Benim e uma bebida tipo brandy feita de cana, a gerebita, extremamente popular em Angola. Em troca recebiam escravos.

O tráfico de escravos no Brasil continuou mesmo após a independência em 1822. Os portos brasileiros chegaram inclusive a reexportar escravos para as Caraíbas.

Até 1700 foram embarcados cerca de 2,2 milhões de escravos em África. Mas foi a partir do início do século XVIII que os escravos se tornaram a principal exportação do continente. Só durante o século XVIII e a primeira metade do XIX foram transportados quatro quintos dos 12,5 milhões de escravos que se estima terem sido transportados para as Américas.

Nessa altura, os esclavagistas ainda eram somente os europeus? Como vimos ao longo desta crónica, havia muita gente a lucrar com o negócio: os vendedores africanos (incluindo os cabo-verdianos, em Santiago, e os lançados no continente), os compradores europeus e os comerciantes e proprietários americanos (leia-se brasileiros, caribenhos, latino-americanos, norte-americanos, etc.). Uma verdadeira indústria global!

Contudo, aprendemos até hoje a culpar apenas os europeus!...

Um outro exemplo paradigmático: a América do Norte recebeu menos de 4% dos escravos da rota transatlântica, mas sou capaz de apostar que a maior parte das pessoas deste planeta, inclusive os descendentes desses escravos, não tem essa noção.

Hollywood terá desempenhado o seu papel neste equívoco, pois a maioria dos filmes que nos chegam são sobre a escravatura nos, por essa razão, famosos estados sulistas dos Estados Unidos da América.

Parece ser sempre mais apetitoso bater no pessoal do mundo ocidental, do mundo desenvolvido, ou como queiramos chamá-los.

Ou será porque sabemos que é de lá que nos pode vir algum dinheiro, alguma compensação?

Na próxima crónica abordaremos a questão da reparação (leia-se compensação), muito referida nas entrevistas dos vários experts que estiveram em Outubro passado na Cidade Velha.

Com toda a envolvência que vimos existir de um lado e outro no negócio do tráfico de escravos, iremos analisar em detalhe essa questão da reparação, sobretudo de quem deve reparar quem.

 

PS: Desejo um Feliz Natal a todos os que tiveram a paciência de ler esta crónica até ao fim, aos demais leitores assíduos deste cronista amigo que vos deseja muitas Felicidades hoje e sempre, mas particularmente nesta quadra que a nossa origem cristã nos habituou a celebrar em família e com amor. Ao sentarmo-nos nas nossas fartas mesas, dediquemos uns segundos do nosso pensamento aos milhões de escravos existentes neste nosso mundo actual, particularmente às crianças escravas africanas que ainda hoje colhem o cacau de que é feito o chocolate.

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Autoria:José Almada Dias,22 dez 2015 6:00

Editado porExpresso das Ilhas  em  31 dez 1969 23:00

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