“Fogo di Mar” - do coração à cor da acção

PorExpresso das Ilhas,8 ago 2016 6:00

2

(Trabalho discográfico - volume I - do músico Sérgio Figueira e G.A., em homenagem a Luís Rendall)

1- Só conhecendo profundamente as regras da construção é possível viajar, desconstruindo, sobre as criações artísticas e intelectuais, sem que para tal haja sido necessário desvirtuar a essência do original. O verdadeiro criador de caricaturas (Annibale Carracci na prima deste movimento) é aquele que desmaterializa até ao limite em que a percepção e a fruição do objecto/forma, ainda assim, captem a essência cristalina da identidade do mesmo (o contrário é a desconfiguração no caos da ingenuidade e ignorância, por vezes, atrevidas). Foi este ponto de realce que nos traz, como tónica, a belíssima obra discográfica de Sérgio Figueira - “Fogo di Mar”, uma homenagem merecida ao Luís Rendall - o mais expressivo compositor cabo-verdiano de solos para violão. Luís está para a composição desses solos, como B. Léza para a das líricas/mornas; este laborando (mais) nos géneros cabo-verdianos e aquele transpondo as fronteiras dos nacionais com mais frequência. Dois exímios, dois perfis de almas artístico-musicais cabo-verdianas, atentos aos ventos benéficos do exterior, de incontornáveis referências. “Não há fonte que não beba da fronte deste homem”, repescando este dizer lírico do Corsino Fortes, acrescento, com póstuma permissão, o plural: (…) destes homens.

2- A importância de conhecimentos sólidos e/ou académicos para a evolução e novos voos da música cabo-verdiana é inquestionável e, cada vez mais, necessária; entretanto, há o imortal “mas” no que toca à preservação da identidade levada às costas de um genuíno saber de transmissão oral/auditiva dos mestres de outrora “aos” de hoje; como disse o H. G. Gadamer a propósito da cultura, in Elogio da Teoria, «(…) tudo o que cresce em virtude de o partilharmos», ou seja, esse crescimento, que no tempo e no espaço se  cristaliza em “cultura” (a identidade, se quisermos), é todo ele importante e carece de preservação.

A estética das composições de Luís Rendall traz-nos a harmonia de um músico ímpar à procura de novos mundos melódicos para o contexto nacional, viajando por estilos e géneros universais, fox trot, valsa, chorinho, etc., forçando os limites da cultura e da identidade cabo-verdianas, para inscrever tais sonoridades e linhas melódicas no domínio da arte musical. A riqueza providencial plasmada num profundo sentido estético da composição de solos, tão crioulos quanto universais – de mornas/coladeiras a valsas/fox trot, “reivindica”, com justiça, a atenção e análise cuidada dos executantes, estudiosos sérios, musicólogos, enquadradas no seu contexto espacial e temporal desta cultura.  

3- Se por um lado se nos afigura de diminuta dificuldade a reprodução destes solos por um músico cabo-verdiano, ou estrangeiro, de formação clássica e/ou erudita, como é o caso do cabo-verdiano Sérgio Figueira, com a vantagem de alguns destes terem sido registados em partituras, pelo próprio autor - Rendall, por outro lado, tal já não é linear em se tratando da reprodução pura da alma do crioulo destas ilhas quando o assunto é o “acompanhamento” executado por estrangeiros ou nacionais alheios aos labirínticos caminhos culturais de um telúrico (a presença da componente vivencial) – pois, este, traz (imanente) não os “valores transcendentes de uma estética do essencial” (Bellino Sacadura) mais, sim, a expressão crua de uma (con)vivência no “in loco” espácio-cultural, diária e continuada, no terreno nativo da cultura,  de actos técnicos e empíricos, de saberes, por vezes, à prova, até, das academias. Melhor: se se quiser identificar, à distância de uma alma sensível e moldada pelo treino de um tradutor de culturas, um violão/guitarrista “genuinamente” cabo-verdiano, tal, deduzo, é possível apenas (ou sobretudo) pela peculiaridade da técnica “empírica” dos acompanhamentos executados por um cabo-verdiano (ou outro) portador da vivência apaixonada nas ilhas culturais do “Povo gentil” – como, carinhosamente, o Padre António Vieira se referia aos crioulos desta Terra.

4- Para a língua temos o “sotaque”, aqui temos o imenso saber genuíno, auditivo e oralmente transmitido dos guitarristas mais antigos aos menos, de geração para geração. Salvo opinião (mais) lúcida, é justamente no acompanhamento (dos solos, neste caso) que o cabo-verdiano se destaca, desprendendo inequivocamente de outras culturas, e, aqui, não se pretende fazer, entenda-se, comparativo juízo de valor, como é óbvio, mas, sim, tão-somente, realçar a necessidade de sistematizar, transformar em ensinável, todo esse potencial (o “jeitinho”) de acompanhamento dos ditos clássicos, desde os primórdios (falecidos) dessa geração até ao Pedro Magala, passando, naturalmente, por Bau, Voginha e Kim Alves (estes fazem a transição do “tradicional” para algo mais. “Dança das Ilhas” - um trabalho tecnicamente valioso) passando a tocha para a geração de Hernani Almeida (“afronamim”).

5- Disse um dos maiores executantes de violão, de sempre, desta terra, e eu assino, que o menino cabo-verdiano que inicie nas lides do violão a “tocar” reggae, samba, Jazz, ou outros, jamais reproduzirá um violão com “sotaque” crioulo destas Ilhas; ou seja, dificilmente volta à identidade – será mais Um neste imenso universo globalizado – apátrida (realço, mais uma vez, que não está em causa o valor técnico e/ou académico do músico e muito menos a importância e dimensão da sua arte para evolução espiritual da humanidade, mas, sim, apenas e somente, a sua não representatividade como tradutor de uma identidade cultural). A escolha é livre, aliás, condição essencial para que haja arte (a boa); o que não é permitido, até porque “os factos são teimosos”, é apresentar, fintando a verdade, o global ou alheio como local. A realidade de agora, nos prova, com dos nove, que de facto ele tem razão (dizia do executante…). Os jovens da nossa música, salvo uma dramática excepção, viajam pelos géneros musicais de outras paragens com relativa à-vontade, mas, quando o assunto é morna, coladeira e outros géneros (“genuínos?”) do património cabo-verdiano, o “sotaque” dos acompanhamentos (sobretudo destes) já não pertence a esta Terra, decididamente – já não é possível identificar o País; os tais cidadãos do mundo e a confusão de leituras enviesadas da globalização. Até aqui tudo bem; grave é a (in)consciência “matreira” (por vezes) e comercial, que o apresenta ou vende (“sotaque”)  como produto nacional, qual artesanato estrangeiro nas ruas da Cidade Velha e das Ilhas Turísticas do Sal e Boa Vista consumido com rótulo made in cv. A era das virtudes e dos desvirtuamentos.

6- É fundamental e, portanto, desejável que haja evolução e integração de novos jeitos e performances, influências e referências para a inserção, na cultura universal, do nosso património musical (não fosse o homem “um ser relacional”); no entanto, há que haver uma consciência clara dos pontos de contacto e dos desvirtuamentos da identidade, a cultura tem também seu “ADN” (recordar-se do caricaturista). Para tal, apenas o ensino sistematizado pode permitir a preservação lúcida da identidade, ou a inserção universal consciente dos riscos – aqui a feliz pedagogia de Vasco Martins é, já, incontornável e histórica. O “omnienglobante” (in Elogio da Teoria - Gadamer) não é, aqui e para o efeito, necessariamente sinónimo de qualidade, quando, pela ingenuidade, não se demarca as fronteiras culturais de um produto. A não ser que se tenha em intenção apenas e somente a reprodução de uma técnica supostamente evoluída, logo, aguardando que ela represente valor em si mesma, esbatido, portanto, no seu mundo global e globalizante – será uma via; mas, furtando à responsabilidade/compromisso cultural identitário.

7- Se me fosse permitido estabelecer um paralelismo entre duas das nossas vertentes culturais mais vibrantes - a musical (instrumental / violão) e a literária, diria o seguinte: sem mencionar o período ameno (registo impresso - Prelo) que vem do povoamento à segunda metade do século XIX, traria os “Nativistas” - Eugénio Tavares, Pedro Cardoso, José Lopes da Silva - versus - Luís Rendall, Tazinho e Taninho - posicionando no vértice superior dos dois triângulos equiláteros, Eugénio Tavares e Luís Rendall como expoentes marcantes e máximos no firmamento de múltiplas aprendizagens doravante.

Claridosos (Baltasar Lopes, Manuel Lopes e Jorge Barbosa) versus - Humbertona, Piuna e Armando Tito - para mais à frente as variações de um Tólass e Paulino Vieira, passando por Bau / Voginha até à hodierna geração de Hernani Almeida.

“Chiquinho” de Baltasar Lopes (“…romance de aprendizagem-formação em contexto cabo-verdiano”, no escrito de Bellino Sacadura in Estudos Sobre a Filosofia Da Educação) e “Seis One na Tarrafal / Grito de Dor” executados por Humbertona e Piuna marcam uma viragem para um modo muito peculiar de tratar as coisas da terra do ponto de vista literário (prosa) e musical (instrumento-violão).

Referenciando algumas obras discográficas/literárias diria: “Dôs” (de Vasco Martins/Voginha), “Dança das Ilhas” (Kim Alves) e “Afronami” (Hernani Almeida) versus “Brumário” (Arménio Vieira), “Coração de Lava” (José Luís Tavares) e o “Exemplo Coevo” (João Manuel Varela –João Vário) simbolizam, cristalinamente, a capacidade e a versatilidade inequívocas do cabo-verdiano para a inscrição definitiva das artes no contexto universal da qualidade através de uma linguagem erudita (mais visível numas que noutras) cultivada a partir de um subtil umbigo telúrico, associado às valias universais do autodidacta vs. académico – este, necessário, doravante, como de “pão para a boca”, para além da vocação e esmero individuais desses criadores de estéticas novas e comprometidos, antes de mais e sobretudo, com os valores supremos da boa arte. O esbatimento lúcido das fronteiras da arte culta.

Dedico o texto aos clássicos: Tólass e Paulino Vieira - duas referências, porém, distintas, de uma escola que doravante apontaria um caminho possível para a guitarra eléctrica cabo-verdiana.

(tudo o que aqui escrevo é discutível e, até, “refutável” por quem mais e melhor estudou. Apenas ouso opinar em “voz” alta, lançando, nestes termos, uma possibilidade viva de análise).  

 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 766 de 03 de Agosto de 2016.

Concorda? Discorda? Dê-nos a sua opinião. Comente ou partilhe este artigo.

Autoria:Expresso das Ilhas,8 ago 2016 6:00

Editado porRendy Santos  em  8 ago 2016 15:28

2

pub.
pub
pub.

Últimas no site

    Últimas na secção

      Populares na secção

        Populares no site

          pub.