José Luiz Tavares? Esse «pobre cesário negro que doura a voz/ com a tinta das antigas arcádias», como ele se auto-descreve, no primeiro poema deste Lisbon Blues? É um dos melhores poetas cabo-verdianos de sempre, sendo uma referência no actual trânsito poético luso-cabo-verdiano, como de resto demonstra este seu livro de homenagem à cidade em que vive (- e será que se repara devidamente que sobrevém dos naturais desse arquipélago a mais estimulante poesia que hoje se produz nos países africanos de língua portuguesa, a um nível só comparável ao que ocorreu em Moçambique nos anos setenta? -).
Quando José Luiz Tavares estreou com Paraíso Apagado por um Relâmpago escrevi então no Expresso: «é o mais autoritário primeiro livro que li em anos». O adjectivo pretendia clarificar o modo peremptório como a sua qualidade se impunha. Apesar de ser difícil precisar a trajectória dos cometas, de incerto comportamento face ao brilho momentâneo que os espelhos lhes devolvem, felizmente que cinco ou seis livros depois a promessa tornou-se desígnio; hoje é unânime o reconhecimento de José Luiz Tavares e pouco mais há a acrescentar: a cultura portuguesa fica a dever-lhe este mano a mano do poeta com a cidade em que debutou em livro — urbe que os seus versos afeiçoam com a limpeza de um urbanista.
Em José Luiz Tavares a poesia é mais um meio de conhecimento que um passivo meio de representação e por isso não há nele hipótese de vermos a vida de um lado e a literatura de outro. É o que trama José Luiz Tavares, no sentido em que se tornou nítido ele estar condenado a ser um transfronteiriço, numa miscegenização em perpétuo devir. Embora José Luiz não esqueça as suas raízes, e negue tudo o que separa, desenha nos seus versos um mapa extraterritorial, e por isso escreve: «Mas faz da tua vida uma arte da recusa:/ da pátria, em que célere te amortalham, /tu que só nos versos os sinais que salvam/ vislumbraste» (154).
E é essa a sua tremenda generosidade: por um lado abraça a sua identidade, ao ponto de forçar e expandir os limites morfo-sintácticos da sua língua mãe, tendo nesse intento traduzido para crioulo os sonetos de Camões, de modo a dotá-lo de uma nova plasticidade literária; por outro nunca perde uma dimensão universal que não confunde identidade com acantonamento.
O que o expõe a grandes desafios. Quando José Luiz desembarcou para estudar em Lisboa, com o lume programático e provocante que é o seu, já sonhava “devolver” à lusíada língua algum brilho, uma «intacta geometria» tonificada pela aragem e um vinco de sangue, de modo a emboscar os sortilégios. Claro que em tudo isto se padece; se calhar, porque, como diz Le Clezio, um dia descobriremos que nunca houve literatura mas unicamente medicina. Medicina: o autor escreve para salvar-se. Catarse. Mas, contemos um segredo, a catarse, que é uma enérgica libertação dos nossos males, não vale tanto pelo volume da energia libertada como pelo modo como a transfiguramos noutra coisa que neutraliza a dor inicial. Só esta translação, a que muda a dor em dom, importa.
O José Luiz Tavares escolheu apropriar-se de modo plectórico das tradições da língua portuguesa e, numa ternura eivada de casticismo, mistura sabiamente o coloquial e a ironia com o vernáculo erudito, tudo isto servido em jeito de conversa amena e pontuada de picardia e malandrice, como no poema Terreiro do Paço:
«A vida, mano, não ta ensinam os pombos/ caudatários tornando a este redil dúbio./ Eu apuro o amarfanhado sotaque/ para o público louvor evocativo,/ mas uma madame levou-me a língua/ anelada ao seu boteriano cu redondo.» (18) Vemos nesta estrofe o que lhe é característico; o abnegado gesto de calcetar o velho com o novo, o rigor com a espontaneidade, a par do gosto de fazer com que vida e a escrita convirjam — e a vida, sabe-se, gosta de desconstruir os mitos.
Esta Lisboa contida em José Luiz Tavares é uma partilha de endereços, entre os poetas que ama e os lugares comunitários dos seus trajectos, e o verdadeiro resgate de Lisbon Blues assenta na sua consciência crioula, mestiça, ao jeito de uma bebinca. Expliquemo-nos. Temos a camada da Lisboa empírica, a da locomoção e vivência do poeta: as noites, engates, itinerários, passeios, eléctricos, turistagens, desejos, expectativas e rasgões deceptivos no plano existencial, o recorte da vida; depois apresenta-se nova camada, onde é confrontada a memória da Lisboa dos poetas que o poeta lê e ama — Cesário Verde, Vitorino Nemésio, Alexandre O’Neill, Armando Silva Carvalho, o inevitável Pessoa, etc., a sua tradição literária -; a estas sobrepõe-se uma terceira camada eivada da memória transpessoal dos lugares: do rio, omnipresente, aos monumentos, às ínfimas e bolorentas tascas, ou aos cafés, miradouros, jardins e praças, traçada a sua importância topológica no cruzamento de comunidades díspares.
Isto leva a que, ao arrepio da maior parte da poesia hoje dominante — que usa e abusa de um só tempo verbal, coincidente com o do poema, e se concentra num episódico quadro temporal — José Luiz Tavares (como antes dele, Jorge de Sena e João Miguel Fernandes Jorge) faça da História (literária, social, da linguagem) um harmónio e convoque a «longa duração» na tessitura dos seus poemas, sem receio de para isso por vezes recorrer tantas vezes à dissonante elipse como processo:
«Deste-me telegráficas razões/ para o desamor./ O noturno arco-íris/ outra vez presa do teu riso — por muito menos abandonei filhos/ e mulher, e automóvel/ à saída do emprego./ Rossio à noite tem ciosos habitantes,/ pretos das áfricas de sorriso na algibeira,/ eu diria que gente (embora a saldo/ para qualquer leve inconveniente)/ que naves já não negreiras desembarcam/ por sob um céu que públicos contendores/ disputaram o matiz -// eu diria que fúcsia, por vezes sépia,/ como nesse fundo de caravaggio/ em que pretos de ginga e volteio/ aguardam o vago sebastião/apreçando a jorna em indecifrável algaravia.» (Noturno do Rossio, p. 45).
Depois, o seu caudal discursivo é ainda mestiço (uma intertextualidade em moto contínuo, que semeia as reversibilidades) pela associação automática, a simultaneidade de tempos históricos, as sequências de imagens intensamente visuais entrelaçadas em implícitas citações literárias; sendo a materialidade da língua, em si mesmo, um feixe ou uma multiplicidade de registos e modos de uso que disputam pertinências e convenções e articulam o erudito e o calão, ou, lubricamente, curto-circuitam o dizer em voga com um delicioso paté de anacronias verbais (- «sabotagem linguística» pela qual o autor lembra a fatuidade epocal de todo o dizer).
Noutras épocas, dir-se-ia que estes poemas se comportavam como palimpsestos, agora será mais exacto pegar num vocábulo que o autor usa várias vezes: são fractais, variantes na serialização que a literatura é, figuras auto-reflexivas e costuradas num discurso que sabe colocar todas as máscaras e dilui-las ou fundi-las com uma facilidade, uma técnica, ou um fôlego invejáveis.
E para explicitar o domínio com que o José Luiz Tavares molda a língua e os inconscientes que esta forja vou dar dois exemplos. O primeiro é uma quadra onde ele escreve (22):
«Nos pátios caligráficos, ruivos amores/ reinvento (hermeneuta sou dos segredos/ que soterra o tempo) e virentes acenos/ à pura noiva imaginada.»
Não sublinhei os erres por capricho mas para que reparassem que o desfecho a que a quadra conduz (a noiva imaginada) é o único segmento frásico em que não existe o erre. Uma noiva imaginária é inapelavelmente aquosa. Ao fim de tantos erres, que pontuam a quadra como os obstáculos numa corrida de velocidade, é emocionalmente que acolhemos a desejada (ou evaginada) como aquela está perpetuamente lubrificada. É de uma enorme inteligência este desenlace e o seu artifício engancha-nos sem darmos conta.
O segundo exemplo incide sobre o gozo lúdico com que José Luiz Tavares faz da língua ou dos seus referentes literários uma verdadeira arte combinatória. Encontramo-lo no segundo poema do ciclo Derivas (e tome-se atenção ao título). O poema inicia com uma recriação de um verso de Alexandre O’Neill, «de ombro na ombreira»: «De ombro à ventania/ gingavas na tarde estuarina,/pobre cego que nenhum sobressalto/ levará a dizer eureka.», e na quarta estrofe do mesmo poema lê-se: «Já nos visita o incessante inverno/ pelo ar inchado de palmeiras,/ e leves risos de viris negros, / recados porventura dalém-mar/ soprados sobre um rossio/ onde floresce a arte do impropério.(p.63)». Repita-se a leitura do último verso: «Onde floresce a livre arte do impropério». O feliz trocadilho, que, socorrendo-se do anagrama, traduz a praça do império no seu próprio desmentido é uma verdadeira “sacanice”, pois faz da taciturnidade do poder colonial um lugar armadilhado pelo escárnio das suas vítimas. Este apuro lúdico é uma das armas mais eficazes neste livro-homenagem a Lisboa, numa edição superlativa pelo seu apuro gráfico e as ilustrações de Pierre Pratt.
E devolva-se a voz ao poeta com um excerto de Derivas: «6.// Sentámo-nos no paredão com musgo/ verde. Caralho, gritou o arrais/ ao céu do outono. Terreiro do paço/ em frente ao rio. Gaivotas planando/ por cercas e monturos.// Nada urgia sob a palidez do céu./ Podia agarrar-te nas mãos e desfiar-te/ o rosário das lembranças./ O homem das castanhas sorri-te/ na distância alfombrada de caruma./ A noite ergueu-se por volutas/ dos findos telhados da cidade.// Nos ares, tresmalhado, um pássaro/ reverdece. O rio salmodiando/ na mansidão da clausura. Olmos,/ ombros onde cresce a lentidão./ Recolhem-se agora os últimos/ toldos, gorjetas mal dispostas/ sobre as mesas baixas.// Vão contigo, em dissonante voo,/ palavras que não detém o frio,/ a anunciada ruína do inverno.»
António Cabrita (Almada, Portugal, 1959), escritor, estudou cinema, foi jornalista durante vinte e cinco anos, dezanove no Expresso, onde escrevia sobre cinema e livros.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 774 de 28 de Setembro de 2016.