«Como quem ouve uma melodia muito triste» foi a peça apresentada nos dias 2,3 e 4 de Dezembro no Palácio da Cultura Ildo Lobo, Praia.
E isso não é mera informação. É teatro. E teatro é acontecimento. Com todos os clichés, «teatro é vida». Ide sempre! (Des)construí-vos! Cultivai-vos!
E este mote-título da peça-dádiva brota do início de “Chiquinho”, romance caboverdeano do – claridoso - Baltasar Lopes: «Como quem ouve uma melodia muito triste, recordo a casinha em que nasci, no Caleijão. O destino fez-me conhecer casas bem maiores, casas onde parece que habita constantemente o tumulto, mas nenhuma eu trocaria pela nossa morada coberta de telha francesa e emboçada de cal por fora, que meu avô construiu com dinheiro ganho de-riba da água do mar».
E o espectáculo apresentado não é mera adaptação livre. É uma adaptação corajosa e poética, que faz jus à riqueza linguística, poética e temática do - nosso - “Chiquinho”. Da narrativa épicosentimental de Baltasar Lopes.
E o «Projecto Chiquinho» nos pega pelas mãos e nos faz viajar pelas três partes do livro: «Infância», «S. Vicente» e «As águas». Mais do que isso. Leva-nos a «fincar os pés na terra», a aninhar-nos nesse universo telúrico rico - as tais dez ilhas perdidas no meio do mar - ou simplesmente - Cabo Verde.
É amálgama de corpos espelhando o «embalo da criação», o «dinheiro ganho de-riba da água do mar», e a «cartinha de longe» - prenhe de letritas e mantenhas! Encenação marcada por uma visão minimalista e rica. Corpos que se transformam e representam as várias personagens. Vão parindo «Chiquinho», «Mamãe», «Mamãe Velha», velhos homens - sábios que lêem a vida e o destino. Árvores que geram gentes e gentes que representam árvores. Cachimbos. Alegria pela queda da chuva. Contraste. A falta da chuva. A paisagem árida. Carcomida. Os corpos que caem, um a um. A decadência do Porto Grande. A ânsia do vapor na baía. O «Grémio». O amor de Chiquinho e Nuninha. O destino de todos nós - o mar! A terra-longe!
E na adaptação feita, elementos vários se vão juntando à caldeira gostosa de “Chiquinho”: o humor de «três ingron de midje, um ingron de fejon», o sussurro melódico--lembrança de «terra bo sabê ké mestid um x tanto pa cada homem vivê sima gente», a mazurca (dança celebrada) e o sabor sibilado do crioulo de São Nicolau.
Foram três dias de apresentação. E pude chegar a tempo de agarrar a “última” chance - o derradeiro dia. E lamento por isso. E quem sabe retroceder no tempo, pois gostaria de provar - mais e novamente - os vários ingredientes desse inebriante “manjar”.
E veio - várias vezes - à minha mente isso: «os meus alunos precisam ver esta peça!”, «os meus amigos e familiares precisam vê-la também!». Quisera trazê-los todos. Celebrarmos e vivermos “Chiquinho”. Todo e qualquer cabo-verdiano merece ler “Chiquinho” - pelo menos uma vez na vida! Para se rever nele! E acrescento: todo e qualquer cabo-verdiano merece ver «Como quem ouve uma melodia muito triste»! Bem-haja - Sara Estrela pela visão contemporânea e por esta (re)visita! Bem-haja - jornal «Expresso das Ilhas»! Um forte e merecido aplauso a todas as «personagens» do Projeto «Chiquinho» (Associação Artística e Cultural MINDELACT, a Câmara Municipal da Ribeira Brava, os grupos teatrais de São Nicolau Pranta Pê, Beleza, Talentos do Vale e Nova Onda, Jeff Hussney/Raíz de Polon e Edson - desenho de luz/iluminação).
«Chiquinho» e «Como quem ouve uma melodia muito triste» - nas escolas, nas salas de espetáculo de Cabo Verde e do mundo - JÁ! É mister!
É como deliciar-se com caldo de peixe e cachupa, queijo de Santo Antão e doce da Praia, linguiça de Santa Catarina de Santiago e café do Fogo, batuque e morna, montanhas e segredos, mar e gentes… - misturas imensamente perfeitas! Sentir Cabo Verde. Algo que se estende para além do fechar das cortinas.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 786 de 21 de Dezembro de 2016.