Crioulos não independentes, liberdade, vistos e patriotismos utópicos (II

PorJosé Almada Dias,13 jun 2017 6:00

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Na crónica anterior, acompanhámos a viagem de uma delegação desportiva nacional de 14 atletas sub-16 e 6 dirigentes que foram representar Cabo Verde nos Jogos das Ilhas de 2017 na Martinica, uma iniciativa louvável que implicou um grande esforço financeiro para o nosso pobre país. Em comparação, a delegação dos nossos irmãos macaronésios dos Açores era composta por 76 atletas e 19 elementos entre técnicos e dirigentes. Enquanto os Açores participaram em 8 modalidades desportivas, nós ficámos por 3...

Estiveram na Martinica 552 jovens de 11 regiões arquipelágicas, o que dá uma média de 50 atletas por delegação. Cabo Verde, a única delegação oriunda de um arquipélago independente, ficou claramente abaixo da média. Apesar disso, os nossos valorosos atletas lá trouxeram umas medalhas, o que encheu a nação verdiana de orgulho.

De facto, é pena os nossos atletas não terem, nem de longe nem de perto, as condições que os seus colegas ilhéus possuem, seja condições materiais, seja a possibilidade de viajarem desde cedo para competir. Talento não nos falta, mas...

Antes da nossa independência, os açorianos emigravam para Cabo Verde à procura de vida melhor. Dizem os livros de História que muitos cabo-verdianos são descendentes de açorianos (eu sou um deles). Hoje, fruto de opções diferentes, é notória a enorme diferença de standard e qualidade de vida entre as populações dos dois arquipélagos irmãos, que, durante a maior parte da sua existência, pertenceram a um mesmo mundo, partilhando a mesma língua e basicamente os mesmos costumes e hábitos culturais.

Qual é o cabo-verdiano que não se sente em casa nos Açores? Qual o açoriano que não vem a Cabo Verde e não regressa a casa com saudades e vontade de voltar?

Os nossos jovens atletas sentiram-se em casa na Martinica, o que não é de estranhar – tirando o facto de o crioulo de lá ser de base lexical francesa, e a língua metropolitana ser o francês, a génese das sociedades é a mesma, e até foram recebidos com batucadas de Carnaval.

Vieram felizes por terem convivido de perto com jovens que vivem noutras ilhas e puderam aprender que, afinal, existe muita gente neste mundo que vive em ilhas tal como nós. Aprenderam também que essas ilhas, apesar de não serem independentes, também possuem uma bandeira e um hino, algo que até qualquer clube desportivo possui.

Nós preferimos ser independentes, e orgulhosamente pobres – ainda com 1/3 da população na pobreza. Mas temos uma bandeira e um hino, aliás, nesse particular, até somos ricos, já vamos em duas bandeiras e dois hinos no pós-independência; durante a minha existência, aprendi a cantar 3 hinos e tomei como minhas 3 bandeiras, o que não deixa de ser uma forma de riqueza.

O pior é o passaporte que a maioria dos nossos atletas tinha, quando comparado com o passaporte que os outros jovens das outras ilhas possuem.

No espaço de um mês, os tenistas que foram à Martinica tiveram a estranha experiência de terem de viajar em dias separados. Foram até Portugal para um estágio de preparação e depois regressaram e tornaram a partir para a Martinica. Em ambos os casos, uns tinham passaporte português e viajaram no dia indicado, chegando a tempo ao destino, mas a maioria teve de passar pela desagradável experiência de dias de espera por um visto, viajando tardiamente, apesar da envolvência das autoridades nacionais ao mais alto nível.

Aprenderam na prática que, quando chega a hora de viajar, há cabo-verdianos de primeira, que viajam quando querem, e há outros de segunda, que têm de penar para sair destas ilhas.

Enquanto isso, nas redes sociais, havia discussões inflamadas de patriotismo sobre o que é ser cabo-verdiano e o que é ter um passaporte cabo-verdiano – havia opiniões para todos os gostos, desde o patriotismo mais exacerbado até quem considerasse que o nosso passaporte é uma prisão.

Como sempre nestas coisas, os mais patriotas são usualmente os que não sofrem estes problemas na pele, viajando tranquilamente com os seus respectivos passaportes europeus, apesar de tão nacionalistas. Também há os passaportes de serviço, muito usados pelos nacionalistas.

Dizia-me alguém que os estrategas da independência de Cabo Verde e os seus descendentes viajaram sempre sob o conforto de passaportes diplomáticos, salas VIP, motoristas e outras benesses, quando não possuem um passaporte europeu, concluindo que “assim é fácil”...

É duro dizer tudo isso, mas é a mais pura das verdades.

Sei bem o que são as agruras de viajar com o nosso passaporte. Durante 5 anos, viajei numa base mensal para Inglaterra e, apesar de ter um visto que me permitia entrar as vezes que quisesse, tinha sempre direito a tratamento especial: tinha de ir para uma fila de “others” onde quase sempre era o único passageiro do meu avião; depois, enquanto o resto da malta que eu tinha conhecido no voo passava e me acenava, lá tinha eu de preencher um boletim e colocar o dedo num aparelho para me lerem as impressões digitais – não raras vezes tinha de colocar vários dedos, pois nem sempre a coisa funcionava bem e, nas épocas mais quentes, a transpiração nos dedos fazia com que tivesse de repetir a experiência n vezes.

Aterrar no aeroporto de Faro, vindo de Inglaterra, foi durante anos um martírio que eu e os meus filhos pequenos conhecemos bem. Toda a gente passava e lá ficávamos nós, pois o sistema não estava preparado para alienígenas que não fossem de um país europeu. Não há dúvidas de que não era expectável cabo-verdianos a chegarem ao Algarve vindos de Inglaterra. Enquanto todos os passageiros se despachavam, lá ficávamos mais de uma hora, parecendo criminosos à espera de serem libertados.

Isso no Algarve, terra onde estudei, terra de onde, segundo reza a História, vieram muitos dos nossos ascendentes. E eu tinha de explicar aos meus filhos todas as vezes o porquê de todos os passageiros passarem e nós ficarmos ali especados aguardando a bendita autorização para entrar em terras lusas. E perguntava-me a mim mesmo: que raio, se somos descendentes directos de algarvios, se já fizemos parte desta nação, porque escolhemos ser tratados desta forma?!

Graças ao nosso passaporte, a minha filha, que coleccionava troféus no ballet e noutros estilos de dança em Inglaterra, e a quem todos os professores ingleses vaticinavam um futuro brilhante na dança, teve de regressar a Cabo Verde. No ano passado, terminado o 12º ano, ficou em terra, perdendo um ano escolar, porque este país que gosta de falar de cultura não tem uma política de formação na área da dança, e o passaporte dela não lhe permitiu ter o visto necessário para ir estudar numa escola de dança na Holanda que se interessou pelo seu curriculum. Para trás, ficou o sonho de ser uma prima bailarina de ballet, porque a idade não perdoa...

Como explicar aos meus filhos que a independência política de Cabo Verde valeu a pena? À medida que vão crescendo, vou perdendo argumentos, sobretudo agora que o mais novo foi à Martinica e teve de sofrer para ter um visto, tendo feito parte do grupo que ficou para trás nas duas viagens, num suspense até ao último momento, sem saber se viajavam ou não.

E ele pôde constatar ao vivo e a cores o standard de vida e as possibilidades que os jovens das outras ilhas não independentes têm. Desde logo, os adversários que enfrentou, que desde tenra idade viajam para competir nas respectivas metrópoles, seja Itália, Portugal ou França. Ele e os seus colegas, coitados, lá tiveram a sua experiência internacional...

Foi pena à última hora eu não ter podido ir na viagem à Martinica, por razões (lá está...) orçamentais. Ficou adiado mais uma vez o sonho de adolescente de conhecer a Martinica (que vem desde que aprendi a dançar ao ritmo dos Kassav), aliado à já adulta curiosidade etnográfica, e conviver com esse povo tão parecido connosco.

Mas a minha maior frustração é não ter podido perguntar de viva voz aos martinicanos e outros ilhéus se se sentem diminuídos na sua identidade por as suas ilhas não terem acedido à independência política. Se lhes causa algum transtorno viverem numas ilhas próximas da América, serem crioulos mestiços com uma cultura miscigenada europeia e africana, e continuarem a ter um presidente francês ou uma rainha inglesa ou holandesa que vivem a milhares de quilómetros.

Não lhes perguntaria pelo passaporte europeu, porque não valeria a pena... nós somos independentes e todos os anos, pelo 5 de Julho de 1975, gritamos de braços levantados “Viva a Liberdade”; eles não tiveram essa oportunidade, mas são livres de viajar pelo mundo, não vivem na pobreza e os seus filhos têm acesso facilitado e garantido às melhores universidades europeias. Triste liberdade a nossa...

Continua a ser difícil ser-se cabo-verdiano. Já não morremos à fome, e ainda bem, mas a nossa existência continua periclitante, incerta e cheia de dificuldades. As novas gerações, nascidas neste mundo globalizado, onde as distâncias não existem, irão cada vez mais perguntar-nos porque carga de água os outros jovens como eles podem viajar livremente por esse mundo fora e eles não. Pior ainda, porque razão, quando chegam a outros países, há jovens cabo-verdianos de primeira e outros de segunda.

E irão questionar o porquê de gerações anteriores terem tomado decisões que os condenaram a viver num país pobre e a serem pobres quando comparados com outros jovens de outras ilhas com sociedades tão parecidas com as nossas.

O que responder-lhes?

Eu vivi com entusiasmo a independência de Cabo Verde, apesar de, na altura, ter apenas 9 anos. Foi algo que marcou a minha geração para toda a vida. Mas não tenhamos dúvidas de que esse entusiasmo não enche as medidas dos nossos descendentes, filhos deste mundo global em que as referências são outras.

Regozijo-me que o nosso Matchú tenha passado a fazer parte desse pequeno lote que, na hora de viajar, se eleva ao estatuto de cabo-verdianos de primeira. Salvou-se in extremis o orgulho nacional de uma grande humilhação, que seria também um rude golpe para o nosso cada vez mais exacerbado nacionalismo.

Infelizmente, a esmagadora maioria dos cidadãos nacionais continuarão a ser cabo-verdianos de segunda e a passar pelo calvário que é ter um passaporte que não lhes permite gozar nem da facilidade de terem um aeroporto internacional na ilha onde residem.

É bom que Cabo Verde consiga rapidamente atingir outros patamares de desenvolvimento, pois, caso contrário, as novas gerações não nos irão perdoar as opções que tomámos e que lhes condicionam a existência.

Por que lá diz o velho ditado, em casa onde não há pão...  

 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 810 de 07 de Junho de 2017.

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Autoria:José Almada Dias,13 jun 2017 6:00

Editado porExpresso das Ilhas  em  31 dez 1969 23:00

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