São Nicolau e o futuro. Será desta?

PorJosé Almada Dias,15 ago 2017 6:03

Cheguei à ilha de São Nicolau na viagem re-inaugural do navio Praia d’Aguada, no passado dia 31 de Julho.

Uma agradável viagem de 4h num confortável navio que teve de ser quase reconstruído, após anos de maus-tratos às mãos de alguns privados.

O navio foi recebido em festa no porto do Tarrafal, com tamboreiros a anunciarem a sua chegada. A razão de tanto festejo é o permanente isolamento a que a ilha foi votada nos últimos anos. Viajar de e para S. Nicolau tornou-se um problema para os seus habitantes e para quem queira visitar a ilha.

Após 42 anos de independência, o país continua sem conseguir resolver um dos problemas fundamentais para o seu desenvolvimento, que é a ligação inter-ilhas, algo crucial para qualquer arquipélago. É caso para perguntar: como é possível tanta incompetência colectiva da nação cabo-verdiana? Mais uma herança pesada para resolver algum dia...

De pé, no convés, no meio de tantos ilustres convidados, onde pontuavam o presidente da Assembleia Nacional, o ministro da Economia e Emprego, o director-geral dos Transportes e Turismo, o bispo do Mindelo, entre muitas outras entidades, arrisquei a comentar que os tambores que estavam a ser tocados eram de origem europeia, mais propriamente celta, e não de origem africana, como muita gente por aí imagina.

Prontamente, o eminente investigador João Lopes Filho corroborou, dizendo que ensina aos seus alunos que em toda a África não existem tambores desse tipo. Aos poucos, vou tendo aliados de peso na desconstrução da narrativa africanista que tomou conta deste país no pós-independência e que pretende ver raízes africanas em tudo.

A razão de eu estar entre tantos distintos convidados nesta viagem inaugural foi por ter sido convidado para ser orador na mesa-redonda, denominada “Desenvolvimento do Turismo na ilha de São Nicolau”, promovida pelo Ministério da Economia e Emprego (MEE), mais propriamente pela Direcção-Geral do Turismo e Transportes (DGTT).

A mesa-redonda realizou-se num dos edifícios do Seminário na formosa vila da Ribeira Brava. Após os discursos da praxe, coube a Gualberto do Rosário Almada ser o primeiro orador, apresentando o tema “Desenvolvimento do Turismo Sustentável em S. Nicolau, a curto, médio e longo prazo”. A escolha não poderia ter sido melhor. Este notável filho de S. Nicolau, considerado o pai da economia nacional, demonstrou com argumentos e números como a ilha pode descolar do marasmo a que foi condenada. Numa alocução clara e convincente, como é seu timbre, pôs a tónica no financiamento à economia, com foco em vários instrumentos financeiros, considerando prioritária a constituição da Sociedade de Desenvolvimento de S. Nicolau, uma sociedade parabancária que poderá emitir instrumentos financeiros inovadores, captando investimento e prestando garantias aos empreendedores. Ao ouvir a explanação, toda ela devidamente acompanhada de orçamentos, não pude deixar de pensar no enorme prejuízo que Cabo Verde teve ao “perder” um governante e economista visionário deste calibre...

Uma referência importante: Gualberto do Rosário disse que era a quinta vez que fazia aquela apresentação nestes últimos anos, o que deixou a maioria dos presentes (incluindo eu) boquiabertos; de facto, a nação precisa de deixar-se de discursos e passar à acção, algo que tem sido repisado pelos cidadãos nas várias mesas-redondas realizadas nas diversas ilhas.

De seguida, o professor José Maria Semedo falou com propriedade da perspectiva de um turismo integrado para a ilha e das suas potencialidades; fez um paralelismo interessante com a forma como as ilhas Canárias fazem marketing com foco nas suas paisagens áridas (enquanto nós só estamos preocupados em mostrar os poucos vales verdejantes que temos), e referiu-se à vila da Ribeira Brava como tendo um dos melhores enquadramentos urbanísticos e paisagísticos do país, senão o melhor. De facto, quando se aprecia o vale da Ribeira Brava do miradouro do Cachaço, seja de dia seja de noite, é um deleite para a vista humana.

A manhã foi fechada com uma apresentação sobre a experiência de turismo rural do Parque Natural de Monte Gordo, pela sua jovem directora, Lindaci Oliveira, que de forma competente falou do turismo que se vai desenvolvendo numa das Maravilhas de Cabo Verde.

Coube-me abrir a sessão da tarde, após um farto almoço no edifício da Irmandade, ali mesmo ao lado. O meu tema era “Turismo Náutico”, uma alternativa refrescante ao intenso calor que se fazia sentir. Comecei por agradecer à DGTT o convite e por me permitir pisar o chão, que considero sagrado, do Seminário da Ribeira Brava. Sagrado por duas ordens de razão:

pelo inestimável contributo que esta instituição deu no passado a esta nação e pelo contributo que ainda pode dar no presente e no futuro;

pela carga emocional que foi vir à instituição onde os meus avós maternos e muitos outros parentes meus se formaram.

De facto, só na véspera soube que o evento se iria realizar no Seminário e não no antigo cinema, onde estava inicialmente previsto para acontecer.

Visitei o Seminário poucas vezes, mas sempre me inspirou um enorme respeito entrar naquele edifício onde tanta gente ilustre estudou e se formou, respeito semelhante ao que tenho sentido ao visitar os grandes monumentos históricos da Humanidade por esse mundo fora.

Desta vez, entrar nele com a responsabilidade de estar a partilhar com tantos admiráveis oradores a minha visão para o futuro desta martirizada ilha, causou-me uma ansiedade pouco habitual.

Nascido e criado na vizinha ilha de São Vicente, nunca tinha sentido tanto o peso que as minhas muitas costelas são-nicolauenses afinal possuem.

Mas a avaliar pelas reacções da plateia durante o debate que se seguiu, e outras posteriores durante o jantar, parece que me saí bem e não terei deixado mal os meus muitos antepassados que lá foram distintos alunos.

Após a minha intervenção, o meu colega de escola José Cabral, gestor de formação e investigador por paixão e convicção, discorreu de forma apaixonada mas fundamentada sobre o tema “São Nicolau, uma Ilha-Museu”, um tema que me é particularmente caro, pois divido com este meu companheiro a paixão pela História, embora ele se tenha tornado um investigador com uma profundidade que a minha atribulada e multifacetada vida de empresário/docente ainda não me permite. José Cabral acabou com chave de ouro, falando da experiência da criação do Museu da Pesca no Tarrafal, projecto que ele tem liderado e que já é uma referência nacional, demonstrando que criar museus não é um bicho-de-sete-cabeças quando há vontade, paixão e determinação no que se faz. Um museu com uma forte ligação ao Museu da Pesca da Baleia da cidade de New Bedford nos EUA.

Para finalizar em grande, João Lopes Filho, homem com inúmeras licenciaturas e pós-graduações, com 29 publicações ao longo dos últimos 40 anos, o que o torna o investigador que mais publica neste país, desenvolveu o tema “Turismo histórico-cultural em São Nicolau”. Referiu que tem prontos 5 roteiros turísticos para a sua ilha natal, mas que dadas as limitações de tempo, iria incidir apenas sobre um deles, fazendo uma viagem histórica pela rica vila da Ribeira Brava, contando com mestria a história dos seus monumentos, casas e ruas.

Acabei por ficar em São Nicolau mais dias do que tinha previsto, gozando uns dias de férias para conhecer melhor esta ilha onde cheguei a viver na minha pré-adolescência. Quis mudar a passagem de avião, mas acabei por ter de regressar a São Vicente de barco, vivendo na pele o drama que as gentes dessa esquecida ilha vivem no dia-a-dia. Os voos hoje são todos via cidade da Praia, o que torna quase impossível viajar nesta época para as ilhas de São Vicente ou do Sal, com as quais S. Nicolau tem mais relações, sejam familiares, comerciais ou outras; para lá de emigrantes que desesperam para irem para o Sal apanhar as suas ligações para o exterior. Pelos vistos, os responsáveis da nova companhia aérea ainda precisam de afinar as suas operações de voo.

Fui conhecer o Carbeirinho, uma das Maravilhas de Cabo Verde, e não resisti a dar um mergulho no mar ali mesmo, uma façanha de que, ao que parece, pouca gente se pode gabar.

Deliciei-me com a gastronomia local numa feira anual que se faz no bonito vale da Fajã, promovido pela activa directora do Parque de Monte Gordo. Foi bonito ver grupos folclóricos a dançarem mazurca, contradança e valsa; são essas danças de salão europeias trazidas pelos nossos antepassados europeus que os são-nicolauenses consideram ser o seu folclore cultural: mazurca originária da Polónia, contradança de origem inglesa e francesa, e valsas austríacas. A nação verdiana tem aqui um excelente produto turístico – ensinar os europeus, aqui, no calor dos trópicos, a dançarem danças de salão que já não sabem dançar e que até já estão extintas.

Também fui conhecer a famosa barragem da Banca Furada, um investimento de cerca de 700 mil contos que resultou em nada, por não se ter escutado as gentes da região, que sabem, há centenas de anos, que o terreno naquele local não retém água. Algumas perguntas óbvias: não foram feitos estudos antes de investir tanto dinheiro? Quem foram os responsáveis? Não vai haver uma Comissão Parlamentar de Inquérito?

Fala-se agora na hipótese de impermeabilizar toda a albufeira com betão, construindo um enorme tanque, que se calhar irá custar outras centenas de milhares de contos! Valha-nos Deus! E, no fim, quanto irá custar uma batata produzida com a água dessa barragem?

Durante a mesa-redonda, foi dito que esses 700 mil contos teriam trazido enormes benefícios à ilha se tivessem sido aplicados na sua economia real. Eu assino por baixo, até porque várias vezes tenho aqui denunciado a política demagógica do betão e alcatrão aplicada para fins eleitoralistas.

Regressei de São Nicolau com a sensação de que realmente o desenvolvimento de Cabo Verde tem sido feito de forma errada, deixando para trás sem necessidade ilhas e populações. Poderia ser completamente diferente.

São Nicolau perde população todos os anos, quando possui um enorme potencial. Aliás, apenas 4 ilhas não têm perdido população, o que atesta a incompetência da governação anterior, uma pesada herança que o actual executivo tem de reverter, num momento em que a paciência das gentes das ilhas já se esgotou.

Na próxima crónica, daremos o nosso modesto contributo para uma outra ilha de São Nicolau no futuro.

 

Texto originalmente publicado na edição impressa do EXPRESSO DAS ILHAS nº 819 de 9 de Agosto de 2017. 

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Autoria:José Almada Dias,15 ago 2017 6:03

Editado porRendy Santos  em  31 ago 2017 16:12

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