São Vicente e a Economia Marítima: o regresso a um passado sem futuro ou a construção de uma ilha próspera?

PorJosé Almada Dias,21 nov 2017 6:22

Nas duas crónicas anteriores defendemos uma visão do desenvolvimento das ilhas do Norte de Cabo Verde, como uma região que deverá apostar num turismo de alto valor acrescentado, consubstanciado no conceito de Riviera Crioula, com a cidade do Mindelo e a ilha de São Vicente como epicentro dessa estratégia de marketing para atrair as classes altas dos mercados emissores, inspirando-se em certa medida no desenvolvimento de cidades como o Mónaco, Cannes ou Saint-Tropez que constituem os centros urbanos que se destacam por exemplo na Riviera Francesa, na zona da Côte d’Azur.

Como seria de esperar estes conceitos e a previsão do que poderão ser os ganhos associados a curto e médio prazo geraram reações díspares e emotivas. Surpreendeu-me contudo pela positiva o elevado número de reações positivas. Isto porque normalmente propostas arrojadas trazem normalmente incertezas e receios.

Por serem ideias “futuristas” como já foram designadas, já foram também apelidadas de “fantasias” e outros mimos, nada que eu não estivesse à espera. 

Se há 30 anos atrás alguém tivesse escrito que Cabo Verde teria hoje 4 aeroportos internacionais, que Santa Maria deixaria de ser uma pobre vila piscatória para passar a ser a cidade que mais riqueza per capita cria em Cabo verde, ou que a pobre ilha da Boa Vista teria o maior PIB per capita do país, que teríamos um hotel de 5 estrelas da marca Hilton e um Bikini Beach no Sal ou um hotel de 900 quartos na deserta e distante praia de Lacacão na Boa Vista, a maioria dos cabo-verdianos chamariam essa pessoa de lunático ou mesmo de esquizofrénico. 

Hoje vou justificar com números algumas das opções que poderão gerar mais polémica e que normalmente são vistas como difíceis ou mesmo impossíveis, porque o nosso país é pobre, não tem recursos financeiros, ou seja, as desculpas do costume.

Comecemos pela retirada da CABNAVE e a construção no seu lugar de um complexo turístico e imobiliário de alto standing.

A CABNAVE é uma empresa que emprega em média cerca de 200 trabalhadores; o seu volume de negócios anual ronda os €2 milhões de euros e ao longo da sua história tem apresentado normalmente resultados negativos anuais, salvo algumas raras exceções.

Ou seja em termos gerais temos uma empresa que não cria valor. Pior do que isso, as suas instalações estão a ficar velhas e a necessitar de elevados montantes de investimento.

A CABNAVE não é uma empresa rentável, mas ocupa os melhores terrenos da maravilhosa Baia do Porto Grande, numa zona protegida dos ventos e que constitui uma marina natural. Terrenos propícios para se erguer um excelente complexo turístico e habitacional.

Defendi para esses terrenos a edificação de pelo menos 6 torres de edifícios multi-usos, contendo cada uma apartamentos turísticos, casinos, salas de conferência e um hotel de 5 estrelas de 250 quartos. Uma estimativa conservadora baseada numa baixa taxa de ocupação dos terrenos.

Um hotel quando é realmente de 5 estrelas emprega em média 2 empregados por quarto, podendo esse rácio atingir 4 empregados/quarto quando são hotéis de luxo. Assumindo esse mínimo de 2 empregos/quarto, cada um dos hotéis de 250 quartos empregaria 500 pessoas. Como são 6 hotéis teríamos a criação de cerca de 3.000 empregos directos 

Em termos de volume de negócios, projecções feitas por cadeias de topo para Cabo Verde apontam para um hotel de 5 estrelas com 250 quartos se poder atingir médias de facturação de €20 milhões/ano em velocidade de cruzeiro. Ou seja, só um desses hotéis geraria um volume de negócios 10 vezes superior à actual CABNAVE. 

Resumindo, só os 6 hotéis criariam 15 vezes mais empregos do que a actual CABNAVE e gerariam um volume de negócios 60 vezes superior no mesmo espaço. Preferi não falar de lucros, para não entrar em detalhes, mas fariam as delícias de qualquer Ministro das Finanças em termos de cobrança de impostos...

E ainda deixei de fora os outros negócios como a venda e aluguer dos apartamentos turísticos, o lucrativo negócio de aluguer de salas de conferências, da exploração dos casinos, etc, etc, que arrastariam a economia de toda a ilha.

Quanto às necessidades de investimento não custariam um centavo ao erário público cabo-verdiano, pois um projecto destes pode e deve ser feito exclusivamente com investimento privado, incluindo os custos da própria demolição dos estaleiros existentes.

Em relação à retirada da Electra, o processo é ainda mais simples. Com a duplicação da praia da Laginha usando-se as areias provenientes da dragagem do porto para construção do Terminal de Cruzeiros, a valorização dos terrenos da instalação da Matiota e a sua venda pagariam sem problemas a transferência das instalações para Salamansa, a localidade onde os especialistas de dessalinização dizem ser a melhor para a tomada de água, algo que já me foi dito de viva voz pelos engenheiros da empresa.

Recuperei a velhinha ideia (que não é minha) da transferência da CABNAVE para o concelho de Porto Novo, porque me parece coerente que a Zona Especial de Economia Marítima do Porto Grande seja estendida ao vizinho Porto Novo, aumentando as enormes sinergias que as duas ilhas estão condenadas a ter.

Mas será que Cabo Verde precisa realmente de um estaleiro naval? Se sim, que esteja situado lá onde não impede o desenvolvimento de alternativas bem mais rentáveis e potenciadoras de um maior desenvolvimento económico e social que irá beneficiar todo o país. É assim que se deve gerir um país.

Porto Novo é o maior concelho do país e a criação de um estaleiro naval de raiz não coloca em perigo a potencialidade turística desse município gigante, onde cabe inteira a ilha de São Vicente. A gestão territorial de um país é feita assim, não estamos a falar de gestão de capelinhas para agradar a gentes com mentalidade paroquiana.

Uns estaleiros novos, maiores e mais modernos e que possam ambicionar a ter clientes de outra dimensão, como por exemplo a reparação das plataformas petrolíferas que viajam do Golfo da Guiné para irem fazer reparações nas ilhas Canárias, passando por Cabo Verde. Será possível? Os especialistas que façam os estudos e nos digam.

O desenvolvimento foi atingido através da História por povos que conseguiram inovar e fazer as escolhas certas. Porque a vida é feita de escolhas. Há quem tenha a coragem de as fazer e seguir em frente e há quem fique para trás porque não consegue libertar-se das amarras do passado.

O Governo de Cabo Verde tomou a iniciativa de criar uma Zona Económica Especial em São Vicente. É a oportunidade para os sãovicentinos de uma vez por todas consensualizarem o que querem para a sua ilha nas próximas décadas.

Trata-se de escolher entre o déjà vu ou abraçar novos desafios – a cidade do Funchal fez isso há bastante tempo e Las Palmas quer fazer o mesmo: libertar-se dos negócios “sujos” e de baixo valor acrescentado e focar nas actividades com mais futuro e rentabilidade. O desenvolvimento faz-se assim.

São Vicente deverá assumir definitivamente que a sua vocação é receber pessoas e não apenas barcos, saindo desse conceito limitativo de gravitar à volta de um porto marítimo que nunca mais terá a importância que teve no passado.

O actual Ministro da Economia, José Gonçalves tem vindo a repetir que São Vicente é a ilha que mais produtos turísticos pode oferecer, uma afirmação coerente com o que os empresários da ilha vêm a defender há quase duas décadas, suportados por estudos feitos pelos melhores consultores mundiais da especialidade.

Se existe essa convergência entre os sectores público e privado, então é hora de avançar com foco evitando dar tiros para todos os lados. 

O que defendemos nestas últimas crónicas é um desenvolvimento baseado num turismo suportado na vocação marítima da ilha. Esta é a economia marítima que São Vicente precisa; uma economia marítima virada para o futuro, que não fique presa numa perspetiva saudosista de tentativa de recriar actividades económicas que foram no passado motivo tanto da ascensão mas também da queda da ilha; uma economia focada em actividades de alto valor acrescentado como a náutica de recreio, a pesca desportiva, o turismo de cruzeiros, o turismo balnear, os desportos náuticos e na investigação científica voltada para o mar.

Quando o Principado do Mónaco se desenvolveu estava longe de ter reunidas as condições com as quais Mindelo pode contar hoje. Senão vejamos, de forma resumida:

O extremismo religioso e a destruição de algumas ilhas caribenhas pelos furacões está a transformar Cabo Verde numa das poucas alternativas turísticas tropicais (e seguras) perto dos mercados emissores ocidentais.

Há hoje no mundo mais milionários e bilionários do que antes da crise de 2008, o que tem gerado uma corrida exponencial à compra de iates de luxo, não havendo mais lugares nas marinas ocidentais para os estacionar;

O turismo vai continuar a ser a maior indústria do mundo segundo todas as previsões; nunca se viajou tanto e cada vez vai haver mais gente a viajar no mundo, rareando as localizações exóticas e ainda autênticas, que no futuro serão disputadas por milhões de turistas;

A Europa precisa desesperadamente de encontrar novas localizações tropicais onde as suas ricas e envelhecidas populações possam disfrutar as suas reformas ao sol;

Nunca houve no planeta tanto dinheiro disponível à procura de projectos interessantes para investir.

Quem dera ao avô do actual Príncipe do Mónaco ter desfrutado destas condições.

A transformação do Porto Grande na maior marina do mundo e de Mindelo numa das capitais mundiais da pesca desportiva já está a acontecer debaixo dos nossos narizes. Falta Tarrafal de S. Nicolau e de Santo Antão começarem a tirar partido deste enorme e rentável bolo que irá crescer exponencialmente nos próximos anos aqui na Riviera Crioula. 

PS: o hotel Hilton do Sal abriu neste mês de Novembro de 2017 e pelo que sei está já esgotado até fevereiro de 2018; escreveu-se uma importante página da história do turismo cabo-verdiano, com a abertura do primeiro hotel de 5 estrelas do país que não funciona em regime all-inclusive, poucos dias depois de um alto funcionário da Organização Mundial do Turismo ter vindo à cidade da Praia afirmar durante o Fórum Mundial para o Desenvolvimento Local que que a modalidade all-inclusive não é sustentável e que o turismo de Cabo Verde deve seguir outros rumos. Os leitores assíduos desta crónica sabem do nosso combate em relação a este tema, ao qual voltaremos brevemente.  

 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 833 de 15 de Novembro de 2017. 

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Autoria:José Almada Dias,21 nov 2017 6:22

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  16 nov 2017 13:26

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