Um debate a apaziguar

PorTozé Barbosa,12 jan 2022 13:56

Surpreendente, ou talvez nem tanto, a mensagem do Presidente da República ao Parlamento sobre a promulgação do OGE 2022, está provocando surdas ondas de choque no seio da classe política, eternamente preocupada com o politicamente correto, ainda que logicamente discutível.

Isto é bem evidente em relação aos principais atores da vida política que continuam a dar provas de grande capacidade de contenção, a “omitirem livremente” as suas mais profundas opiniões.

Afinal, o que não se diz, não compromete ninguém. E sobretudo não faz perigar o clima de estabilidade política tão necessária e indispensável nestes tempos de tantas ameaças e calamidades.

No entanto, no grupo dos diversos apoiantes, opositores entre si, as coisas não se passam de igual forma.

Do lado dos indignados, as denúncias fazem eco de informações que contradizem alguns dos argumentos do Presidente da República, ao mesmo tempo que do lado oposto registam-se vagas intervenções de apoio, sem concretizar a substância das afirmações envoltas em polémica.

Tudo isso em bolhas devidamente separadas, graças aos diferentes algoritmos das redes sociais que incentivam o acesso aos conteúdos que confirmam os gostos de cada um.

Sem que uns conheçam as ideias dos outros, ou seja, na tentativa fatalmente inglória de resolver a velha equação “tambarina x ventoinha” cujos caminhos, certos ou errados, continuam a dar resultados desanimadoramente negativos.

É neste contexto de forte polarização política, agravada pela crise de confiança nas instituições, ou melhor, nas suas informações pouco claras, mas que deveriam evidenciar a relação entre os problemas e as soluções, que se fundam as minhas inquietações.

O pano de fundo deste estado de alma tem a ver com a aplicação dos princípios da Pós-verdade ou Verdade Alternativa que reproduzem todo um ecossistema de asserções, informações e notícias, com boa dose de credibilidade devido ao forte apelo à emoção em detrimento da razão.

A função estratégica disto é evidente: criar medos e estimular ansiedades, fatores de viabilização do aparecimento, ascensão e glória de qualquer salvador da Pátria que ampara e cuida das pessoas e do futuro da Nação.

Em termos práticos, a Verdade Alternativa funciona de forma muito simples e prática: primeiro os Factos, depois os Argumentos e finalmente as Conclusões.

Os Factos, obviamente, são claros, observáveis, verificados e verificáveis. Por isso, nada a acrescentar.

Os Argumentos são as leituras “alternativas” e forçadas que abrem as mentes para a aceitação dessas conclusões, dispensando de uma assentada, tanto os factos como a razão. Potencialmente manipuladores da informação.

Essas Conclusões confinam a leitura cativa dos factos. Como se ela fosse a expressão de realidades comprovadas ou verdades absolutas. Por isso mesmo, violadora dos princípios democráticos que presumem uma opinião pública informada e esclarecida.

Deste modo, apreciando a mensagem inédita do Presidente da República ao Parlamento, proponho uma leitura crítica dos factos, argumentos e conclusões nela evidenciados.

1 - Facto – “Orçamento demasiado centrado no consumo público”.

Argumento – “Em detrimento nos serviços públicos e com peso excessivo nas despesas de funcionamento”.

Conclusões – “O OGE deveria ser o início da redução da despesa corrente do Estado”.

O Orçamento tem uma grande componente de consumo público. Mas, não é claro que seja em detrimento dos serviços públicos, pelo menos ao nível em que subjectivamente a mensagem é passada ou entendida.

Na verdade, estão programadas várias intervenções de apoio social, reforço do sistema de saúde, com mais meios e mais técnicos.

Por outro lado, as despesas correntes foram reduzidas por via de um conjunto de medidas de racionalização das despesas públicas. O OGE descreve, quantifica e explica isso muito bem.

Deste modo, a pergunta que aparece é a seguinte: a aplicação de recursos na Saúde, Educação, Segurança, Justiça e em apoios sociais é Investimento ou Despesa corrente?

2 – Facto – “Montante do serviço da dívida elevado, de 24,4 milhões de contos a perfazer 59,2% dos impostos”.

Argumento – Grave porque “mais de metade dos impostos vai para o pagamento das dívidas”.

Conclusão – “A situação não pode continuar sob pena de Cabo Verde hipotecar o seu futuro e da sua população em favor do consumo de hoje”.

Sinceramente, acredito que esta é a parte mais importante e preocupante desta mensagem que veta o Orçamento sem, contudo, o vetar.

A situação não pode continuar? Como assim? O Governo deveria anunciar que não está disposto a pagar uma dívida tão elevada e a coisa ficaria resolvida?

Mas, como não há nada que seja mau e que não possa ficar pior, a questão de fundo é que este serviço da dívida resulta das dívidas contraídas durante o mandato de José Maria Neves, enquanto Primeiro-ministro.

Mas, pode-se argumentar que agora ele tem outro papel. De fiscalizar, controlar, sugerir soluções, etc.

Claro que sim. Afinal, JMN, enquanto PR, não é o mesmo que ele na função de PM. No entanto, o facto é que ele não é outra pessoa.

Uma questão sensível que pode e deve ser levantada, mas nunca instrumentalizada para continuar a porfia na resolução da impossível equação que junta os dois fatores tão contrários e contraditórios.

3 - Facto – “Elevado nível de endividamento do OGE2022.”

Argumento – “Esta situação pode comprometer seriamente a sustentabilidade das finanças públicas” e “ aumento do limite da dívida interna aumenta os riscos de insustentabilidade”.

Conclusão – Anúncio do cenário de “falta de credibilidade externa para contratação de mais dívida externa” recomendando a “não utilização do teto da dívida”.

Ressalvando a legitimidade de melhores entendimentos, acredito que estamos perante um caso de claro exemplo de como se pode, a partir de uma colocação verdadeira, chegar a uma conclusão tendencialmente falsa, tão inquietante e perversa.

Uma conclusão inquietante porque qualquer risco fiscal não é menos do que isso mesmo. No entanto, o aumento do teto do endividamento interno não é uma novidade cabo-verdiana com a pandemia da Covid-19 e foi aprovado pela unanimidade dos Deputados.

Perversa e mãe de todas as perplexidades é, sim, porque envolve questões estratégicas e éticas ao nível da mais Alta Magistratura da Nação.

O Presidente da República a chamar a atenção da comunidade nacional e internacional para a “falta de credibilidade externa” do seu próprio país?

Não sei, não. Em todo o caso, um debate a apaziguar.

Tozé Barbosa

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OGE2022

Autoria:Tozé Barbosa,12 jan 2022 13:56

Editado porAndre Amaral  em  12 jan 2022 13:57

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