De forma recorrente, assiste-se aqui em Cabo Verde (e não só) a discussões, opiniões e declarações sobre a diplomacia e os diplomatas, muitas das quais não contribuindo para uma clarificação e melhor entendimento sobre a natureza da função e sobre a especialidade e exclusividade que são exigidas àqueles que servem a carreira diplomática, no contexto de uma politica externa cada vez mais complexa.
Este artigo visa contribuir para o debate de ideias sobre a matéria, pelo que se espera que eventuais comentários e opiniões posteriores tenham apenas como objeto isso mesmo, ideias em debate.
A diplomacia é tão velha como a humanidade, passando esta pela sua evolução e divisão territorial com grupos, tribos, nações e estados e pela necessidade de representação nas relações e negociações entre eles. Foi, porém, a partir do Congresso de Viena de 1815 que se deram os primeiros passos no sentido de ordenar e harmonizar as praticas diplomáticas, levando, posteriormente à 2ª Guerra mundial, à conclusão da Convenção de Viena de 1961, sobre relações diplomáticas. De 60 signatários iniciais, hoje os 193 países membros das Nações Unidas são todos Estados partes à Convenção.
Subjacente à Convenção, conforme narra o seu Preâmbulo, está a codificação em direito internacional do reconhecimento do estatuto do agente diplomático, assim como de normas para o estabelecimento de relações e atribuição de privilégios e imunidades diplomáticas, visando o desenvolvimento de relações amistosas entre as nações e para garantir o eficaz desempenho das funções das missões diplomáticas, em seu carácter de representações dos Estados.
A Convenção, dito de outro modo, define conceitos e normaliza regras que concorrem para o estabelecimento e funcionamento de relações e missões diplomáticas, as quais, por um lado, são partilhadas e implementadas pelos Estados ao nível internacional e, por outro lado, são transpostas e informam, no plano nacional, as leis que definem o Estatuto do Diplomata em cada Estado.
Cabo Verde conheceu varias edições do seu Estatuto da Carreira Diplomatica (ECD), estando atualmente em vigor o promulgado pelo DL 35/2020 de 26 de março. Este diploma estipula que os funcionários diplomáticos constituem um corpo único e especial de funcionários do Estado, (artigo 3), sujeitos ao regime de exclusividade (artigo 5) e, por essas razões, sujeitos aos deveres, incompatibilidades e interdições que enumera (artigo 89 e seguintes). Determina, igualmente, que a carreira diplomática integra uma hierarquia de cargos, indo do Embaixador no topo ao Terceiro Secretário na base (artigo 11), que o ingresso a partir da base está condicionado a concurso publico por cidadãos habilitados com curso superior que confere grau de licenciatura, com domínio do português e bons conhecimentos de língua inglesa e/ou francesa (artigo 12 e seguintes) e que o desenvolvimento profissional na carreira obedece a critérios e requisitos de tempo de serviço, avaliação de desempenho, formação em conteúdos adaptado a cada cargo ou nível e promoção mediante aprovação em concurso (artigo 20 e seguintes).
Estamos, por conseguinte, perante uma carreira estruturada para ter capacidade de responder finalisticamente ao objeto da sua criação e cujo desempenho tem merecido o reconhecimento público, com destaque para a sua contribuição histórica, com resultados concretos, ao afirmar de Cabo Verde no exterior, em defesa da soberania e segurança, assim como para a promoção do desenvolvimento económico e social do país.
Porém, a perceção que muitas vezes se tem da classe diplomática nem sempre corresponde ao relato do paragrafo anterior, quer por motivo de interpretações politicamente divergentes, quer ainda porque a classe enfrenta a necessidade de investimento publico permanente na sua capacitação e especialização, o que, e de per si, apela a algumas correções conceptuais e ou de políticas, como a seguir indicado.
A implementação do ECD, no que tange ao Quadro do pessoal diplomático que prevê um total de 155 vagas, mas que se encontra dotado em apenas 48%, todas as categorias confundidas, assim como no que se refere ao desenvolvimento profissional na carreira, por se tratar de uma condição sine qua non e urgente para que a carreira mantenha o número e a qualidade para servir, como também para funcionar como viveiro para o recrutamento preferencial de chefes de missão no seio da carreira, a partir da categoria mínima de Conselheiro, conforme reza o artigo 42 do ECD.
A nomeação de individualidades estranhas à carreira diplomática para a Chefia de missões diplomáticas, geralmente dito «embaixadores políticos» é outra questão que merece atenção. Trata-se de uma pratica prevista na maior parte dos países e que o próprio ECD de Cabo Verde admite (Artigos 2.b e 43), desde que em numero inferior aos da carreira diplomática. Uma exceção que existe somente na carreira especial de diplomatas, já que não há cabimento admitir um não médico para a carreira de médicos, um não magistrado para a carreira de magistrados ou que eu possa bater à porta do Ministério da Defesa para me propor como general de quatro estrelas. E por se tratar de uma exceção exclusiva à carreira diplomática, então que ela seja regulamentada dentro do ECD para evitar justificações aleatórias ou ad hoc umas mais estranhas que outras. No mínimo, o chefe de missão «político» proposto deveria passar por um crivo de critérios de exigências semelhantes aos que se aplicam ao chefe de missão de carreira. Para além da preferência e da proporcionalidade, os critérios deveriam contemplar a formação superior, o grau de experiencia em áreas afins, o domínio falado e escrito do inglês e do francês e a familiarização com os dossiers junto ao MNE. Enfim o mesmo limite de idade aplicável a ambos os casos.
A melhoria das condições remuneratórias e a preservação de direitos adquiridos pela classe diplomática devem contribuir para valorizar a função. No primeiro caso, trata-se de rever o quadro remuneratório de base assim como o subsidio de exclusividade, de modo a adaptar um e outro aos novos tempos, às exigências da função e, comparativamente, à evolução do quadro remuneratório de outras carreiras especiais, bem como, para corrigir as anomalias que se verificam na situação dos diplomatas de carreira nos postos em comparação com as condições auferidas pelo pessoal não diplomático contratado localmente. No segundo caso, concernente à preservação dos direitos da classe, e como exemplo flagrante, refere-se ao direito à importação de bens pessoais e de um automóvel, pelo funcionário diplomático transferido dos serviços externos para os serviços centrais. Neste caso, a evolução foi redutora, tendo-se passado, principalmente no caso da viatura, de um direito à franquia total, com fundamento na mobilidade constante do diplomata, para isenção apenas de direitos aduaneiros, tendo sido acrescentados, entretanto, o IVA, o ICE (imposto de consumo especial) e a Taxa da CEDEAO, entre outros impostos.
Cabe ao diplomata ter o Dia do Diplomata, como acontece em outros países, para comemorar a profissão e celebrar a classe, evidenciando o papel do agente diplomático, à semelhança, por exemplo, do professor que tem o dia do professor e não da educação ou do médico que tem o dia do médico e não da medicina. Em Cabo Verde decidiu-se pela criação do dia da diplomacia. Coisa diferente.
Outro instrumento valorativo da carreira diplomática e cuja possibilidade está cabimentada no artigo 87 do ECD é o direito dos diplomatas em se constituir e participar em associações representativas dos mesmos e defensoras dos interesses da classe. Essa possibilidade depende exclusivamente dos diplomatas que deverão se organizar para o efeito, e pôr de pé uma Associação que funcione, aditando outros objetivos, como a promoção da diplomacia, do dialogo com o Governo e a sociedade, fazendo da Associação também uma autoridade de parecer e de opinião em matéria de politica externa.
Enfim, porque de política externa se trata, a dialética com a diplomacia deverá ficar claramente entendida do ponto de vista funcional. Por um lado, a política externa tem por foco a defesa do interesse nacional no plano internacional, e poderá ser entendida como a condução da política interna no exterior. Por outro lado, a diplomacia, enquanto meio e não fim, define-se como o instrumento de ação ou de intervenção no âmbito da politica externa e, o diplomata, como o agente especializado para operar essa instrumentalização.
Sem prejuízo das prerrogativas de outros órgãos de soberania ou sectoriais neste domínio, cabe ao Ministerio dos Negócios Estrangeiros ter centralidade, para inculcar coerência e unicidade, na condução da politica externa, o que não vem acontecendo quando, cada vez mais, sectores agem como ministérios de negócios estrangeiros das suas áreas. Por sua vez o diplomata incorre em risco de marginalização sempre que esteja impedido de agir como agente que é da centralidade na ação diplomática.
A centralidade, e não centralização, em ambos os casos está prevista e passa por uma participação sistémica e articulada de todos os intervenientes, sem diluição do papel do diplomata, para ser mais efetiva tanto como processo como em resultados.
Concluindo, somente uma carreira diplomática, plenamente constituída e permanentemente atuante com os pressupostos de número e de especialidade e menos exposta às exceções que tem vindo a acumular, servirá os desígnios da política externa e da diplomacia e, em última instância, o interesse nacional.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1182 de 24 de Julho de 2024.