Memória: Desastre da Assistência foi há 68 Anos

PorExpresso das Ilhas,4 mar 2017 7:14

Assinalou-se a 20 de Fevereiro passado mais um aniversário do trágico acidente conhecido por Desastre de Assistência. Passados 68 anos, volta-se a recontar a história de um dos períodos mais negros da vida do arquipélago.

Estava-se em Fevereiro de 1949. O mundo ainda recuperava das feridas da Segunda Guerra Mundial. Portugal sofria com vagas intensas de calor e em Cabo Verde os efeitos das fomes que de 1946 a 1948 tiraram a vida a dezenas de milhares de pessoas ainda se faziam sentir com dureza.

À cidade da Praia chegavam centenas de pessoas para se juntarem a outras tantas na mesma situação de pobreza e de carência alimentar, sobretudo crianças e mulheres. Foram estes a maior parte das mais de 232 vítimas mortais resultantes da queda do paredão do edifício dos Serviços Cabo-verdianos de Assistência, onde diariamente se reuniam mais de duas mil pessoas para receberem uma refeição quente e alguns donativos de alimentos.

“O facto ocorreu cerca do meio-dia. Debaixo do telheiro dos Serviços Cabo-verdianos de Assistência reuniam-se milhares de pobres que diariamente ali se deslocavam para receber alimento. Essa distribuição, que fora feita durante muito tempo no recinto do quartel do Exército, passara entretanto a ser concretizada no barracão pertença da Repartição de Obras Públicas do ministério das Colónias, próximo da Delegação Marítima. A sopa fora servida e estava-se na altura do resto da entrega alimentar, o que deu oportunidade a que muitas das cerca de 2500 almas que ali iam todos os dias já não estivessem nas imediações. Tudo aconteceu de repente. A um grande ruído sucedeu-se o desabamento e consequente soterramento das vítimas. A muralha contígua, de sete metros de altura por 30 de comprimento, incipientemente construída com calhaus rolados apanhados na costa da ilha, ruíra sobre o telheiro”, reconta o pesquisador Joaquim Saial no blogue “Praia de Bote”, onde reúne memórias e documentos históricos sobre Cabo Verde.

Os vários relatos e documentos existentes sobre este tema dizem o mesmo sobre o que se seguiu. O espanto e a angústia da população da capital que logo acorreu a prestar socorro às vítimas, trabalhando lado a lado com os soldados e funcionários dos serviços públicos na remoção dos escombros e transporte dos mortos e feridos ao Hospital.

 

Choros e lamentos

A notícia do acontecido rapidamente chegou às outras ilhas e causou grande comoção. Em Portugal, o histórico jornal “Diário Popular”, vespertino lisboeta de grande tiragem noticiou assim a tragédia: “Começou então, através das ruas da cidade, o trágico cortejo dos mortos e dos feridos, cujos corpos iam sendo retirados dos escombros. Uma vaga de choros e lamentos invadia toda a cidade. O trabalho de remoção das terras prosseguia lentamente e o número das vítimas ia subindo de modo assustador, verificando-se que na sua maioria era crianças. Pouco depois o hospital estava repleto de feridos, muitos dos quais em estado grave. Cerca de 40 jaziam ali, contorcendo-se com dores. Ao mesmo tempo, na casa mortuária, os cadáveres iam-se acumulando em número impressionante”.

Este relato - onde se lia “O número destes infelizes aumentara ultimamente, pois aos necessitados da cidade haviam-se juntado outros, vindos de diversos pontos da ilha, com a esperança de na capital obterem auxílio das entidades oficiais” - terá escapado à censura do regime colonial. Eventualmente, terão estado mais atentos nos dias seguintes já que o desastre não voltou a ser mencionado por aquele diário lisboeta.

Na altura era governador de Cabo Verde o comandante João de Figueiredo que, segundo Joaquim Saial relata, tomou medidas para que não faltassem materiais básicos para acudir aos feridos e decretou que as despesas dos funerais decorressem por conta do Governo de Cabo Verde.

“No dia seguinte, abriam-se no cemitério da Praia as valas para a deposição dos corpos recolhidos nos escombros. O comércio fechou as suas portas nessa segunda-feira de luto intenso e os sinos da igreja paroquial dobraram continuamente a finados”.

As causas concretas do Desastre continuam por esclarecer. A estrutura em si já era frágil. Se a queda resultou da força do vento, ou de alguma pressão que se fazia sobre a parede, são questões que se têm levantado ao longo dos tempos e cuja resposta não se sabe ao certo. Na época, foi ordenada uma investigação cujas conclusões se desconhecem.

Um artigo da jornalista Filomena Silva sobre este assunto, datado de 1989, dá conta da onda de solidariedade que o acontecimento gerou não apenas no país mas também nas outras colónias portuguesas em África.

“É neste contexto que se cria uma comissão para angariar fundos e promover a utilização desse fundo na ajuda às vítimas deste desastre. Chegam apoios de diversas proveniências, especialmente das outras colónias portuguesas em África, e, é desta forma que se conseguiu arrecadar alguns milhares de contos”, cita Carmen Barros Furtado, na sua dissertação de mestrado (Bairro de Pertença, Bairro de Música: Espaços, Sociabilidades e Trajectórias de músicos n(d)omeio urbano cabo-verdiano).

Sobre o destino do dinheiro arrecadado não há informações oficiais. Mas há testemunhos de vários dos primeiros moradores do Bairro Craveiro Lopes (então Bairro de Santa Filomena) a reiterar que a quantia foi usada na construção das primeiras casas deste emblemático bairro da capital cabo-verdiana, que viria a ser inaugurado em Maio de 1954.

Em meados da década de 2000 construiu-se junto à rampa de São Januário, na zona da Gambôa que liga à Avenida dos Combatentes da Liberdade da Pátria, a poucos metros do local onde se deu a tragédia, um monumento de homenagem às vítimas.

O “Monumento às Vitimas da Fome e do Desastre da Assistência de 1949” é da autoria do arquitecto Carlos Hamelberg e foi inaugurado a 08 de Março de 2006, simbolizando as três barras de ferro uma família e as argolas as vítimas.

No Arquivo Nacional de Cabo Verde a exposição permanente “As Fomes em Cabo Verde: Causas e Efeitos (1580-1949)” dedica um painel ao Desastre da Assistência.

 

Cadáveres retirados dos montões de pedras, aguardando sepultura


Cerimónia de enterramento de parte das vítimas


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 796 de 28 de Fevereiro de 2017.

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Autoria:Expresso das Ilhas,4 mar 2017 7:14

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  6 mar 2017 9:17

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