Oficinas mecânicas
Ismael (nome fictício), responsável por uma oficina de mecânica na Várzea, fala com autoridade sobre o assunto. Ele próprio procurou a oficina quando era adolescente, numa tentativa de encontrar rumo. Hoje, é ele quem recebe jovens com histórias semelhantes à sua.
“Eu já fui um adolescente sem rumo. Repeti o quarto ano três vezes. Aprendi a ler no sexto ano. Concluí o oitavo, cheguei ao nono, mas não fui mais além. Comecei a beber cedo, passava o dia a dormir e o fim de tarde a beber. A oficina salvou-me. Larguei o álcool, agarrei-me ao trabalho. Hoje sou mecânico, com orgulho.”
A experiência pessoal de Ismael molda a forma como gere o seu espaço. Conta que muitos adolescentes aparecem por indicação das famílias, como é o caso de um rapaz que lá está a trabalhar actualmente, a pedido da mãe, mas já teve caso de adolescentes que chegaram ali por necessidade e até mesmo por “não ter paz em casa”.
“No caso do rapaz que actualmente está aqui, veio a pedido da mãe. Ela pediu-me que não lhe pagasse em dinheiro, porque ele anda com más companhias. Aqui ele comporta-se bem. E essa é a condição. Se não houver respeito, não entra. Não tolero mau comportamento. Já apliquei castigos físicos a quem roubou aqui dentro. Dou oportunidade, mas não facilito.”
Apesar da dureza, Ismael acredita que a oficina pode ser uma escola de vida, desde que acompanhada. Mas alerta para os perigos. O responsável conta que a maior dificuldade é implementar uma disciplina nos rapazes, fazer com que abandonem o caminho da má influência e voltem à escola.
“Vejo miúdos de 15 anos a fumar haxixe e a beber álcool à frente dos pais, como se fosse normal. A oficina não é lugar de salvação automática. Aqui, se quiseres, podes ganhar muito dinheiro, mas também podes afundar-te. O que tentamos fazer é aconselhar, orientar, dar exemplo. Alguns voltam à escola, outros procuram formação. Nem todos querem ser ajudados, mas alguns conseguimos tocar.”
Regras claras
Noutra zona da capital, Nilsson e Jailson (nomes fictícios) abriram uma oficina conjunta. Ambos assumem que a convivência com adolescentes nem sempre é fácil.
“Hoje em dia, os rapazes só querem ganhar dinheiro. Não querem aprender. Não têm paciência. Aqui não pagamos para aprender. Mas quando há boa vontade e disciplina, damos uma gratificação no fim do trabalho. Como em qualquer lugar, as oficinas têm de tudo um pouco. Nós mesmo fazemos o que muitas vezes não é bom exemplo, mas não insentivamos nem financiamos o mau comportamento”, explica Nilsson.
Jailson acrescenta que muitos querem abandonar a escola para ficar na oficina, mas não aceitam.
“Se estão em idade escolar, só podem vir se estiverem a estudar. A oficina pode complementar, mas não substituir a escola. Eu próprio terminei o liceu, fiz formação profissional, e digo-lhes sempre que o diploma faz falta. Há alguns rapazes que chegam aqui e, quando começam a ganhar algum dinheiro, querem abandonar a escola de vez. Compreendemos que seja por causa das dificuldades em casa, mas impomos a frequência escolar como condição, para os incentivar a ter um futuro melhor”, conta Jailson, que acrescenta: “Temos um rapaz, hoje, que já repetiu o sétimo ano pela segunda vez. Foi o único caso em que mostrámos mais compreensão, a pedido da mãe, porque o pai tem problemas com o álcool. O lar é totalmente desestruturado, e é aqui, na oficina, que ele se sente mais seguro e em paz.”
Nesta oficina encontramos Emersom, um adolescente de 16 anos que se destacou pelo bom comportamento. Frequenta o 8.º ano, mas já repetiu duas vezes. Abandonou a escola antes do fim do ano, desanimado.
“Não tenho cabeça boa para os estudos”, confessa, com timidez. “No início até tentei recuperar. Estudava em casa, ia às explicações quando a minha mãe conseguia pagar. Mas depois de repetir outra vez, perdi a vontade. Já não conseguia entender nada. Sentia-me burro, como se os outros todos fossem melhores do que eu. Aqui na oficina faço de tudo um pouco, procuro manter o foco no trabalho e não pensar muito. Pretendo voltar à escola novamente e tentar mais uma vez. Eu quero estudar e ter um bom futuro.”
Apesar das dificuldades, Emersom sonha com a sua própria oficina: “Quero ser mecânico. Ter a minha oficina, ajudar a minha mãe. Vou tentar concluir o 12.º ano e fazer uma formação.”
A mãe, que é vizinha da oficina, garante que o filho sempre teve bom comportamento e nunca se envolveu em maus ambientes, mas admite que a frustração escolar o tem deixado retraído e agressivo ao falar do assunto.
“Depois da segunda repetência, ficou diferente. Mais calado, mais fechado. Quando se fala em escola, responde mal, fica nervoso. Eu insisti para ele voltar este ano. Vou insistir mais uma vez. Não quero que ele desista de si.”
Fora das oficinas, também nas obras de construção civil, a escola tem sido trocada pela necessidade imediata.
Entre blocos e cimento
Na construção civil, o cenário repete-se. Andé, de 16 anos, deixou de estudar quando passou para o 7.º ano. A mudança de comunidade, para Eugénio Lima, deixou-o longe da escola, em Achada São Filipe. Sem dinheiro para transporte, começou a faltar. Até que desistiu. “Ia com o meu ‘spidente’ para a escola. Saía muito cedo, caminhava sozinho, com sono e com fome. Quando chegava, já estava cansado. Um dia faltei, depois dois, depois três... e nunca mais voltei.”
Hoje, trabalha como servente. Vai para a obra com o tio e faz pequenas tarefas, como carregar blocos, misturar cimento e limpar o terreno. Tem calos nas mãos e fala com maturidade inesperada para a idade.
“Não era o meu sonho. Mas não posso reclamar. Ajudo em casa, compro as minhas coisas. Arrependo-me de ter desistido da escola. Agora estou a fazer uma formação profissional gratuita. Quero tirar o 12.º ano numa escola particular. Sei que o diploma abre mais portas.”
Outros procuram alternativas no comércio informal, com trajectórias igualmente marcadas pela frustração escolar.
Vender ou estudar?
Cleiton, 16 anos, é hoje porteiro numa loja chinesa. Estudou até ao 7.º ano. Lida com vergonha e desconforto cada vez que encontra um ex-colega na rua.
“Nunca fui bom aluno. Não gostava da escola. Ia porque tinha de ir. No ano passado fui vender no mercado com a minha mãe. Mas não gostava, sentia-me envergonhado. Disse-lhe que não queria continuar. Ela disse que ou fazia algo na vida ou saía de casa.”
Foi assim que arranjou trabalho numa loja, onde faz de tudo um pouco — limpa o armazém, organiza produtos e, na hora de almoço, fica à porta como porteiro.
“Não gosto muito, mas estou a adaptar-me. Não tenho contrato, sou menor. Mas eles confiam em mim. Agora penso em fazer uma formação. Talvez em hotelaria, ou segurança. Quero fazer alguma coisa.”
Já o seu colega, conhecido por Já, de 17 anos, abandonou o 8.º ano por escolha própria. Hoje diz, sem hesitação, que não pretende voltar à escola.
“Não é dali que eu vou tirar o meu pão. Tentei estudar, mas não me via ali. Depois fui para Boa Vista com a minha mãe. Comecei a trabalhar nas lojas chinesas e gostei. Sou comunicativo, sei vender, sei lidar com pessoas. Voltei para Praia e continuo a trabalhar. Talvez ganhasse melhor se tivesse um diploma. Mas não posso reclamar. Já estou a fazer a minha vida.”
Em comum, estes testemunhos mostram um padrão que se repete: rapazes que não se sentem capazes de acompanhar o ritmo da escola, que enfrentam barreiras económicas ou logísticas, e que, perante a frustração, procuram refúgio em espaços de trabalho. Muitas vezes, esses espaços oferecem regras, ocupação e até algum dinheiro, mas também riscos, sobretudo quando a escola é completamente deixada para trás.
Apesar das adversidades, muitos revelam vontade de regressar, ou pelo menos concluir a escolaridade mais tarde. No entanto, o atraso na educação básica tende a limitar o acesso a formações mais qualificadas e oportunidades de trabalho estável.
Enquanto isso, nas oficinas, nas obras e nos pequenos comércios, a vida segue. E, com ela, os desafios de um sistema educativo que ainda não consegue, plenamente, manter os seus rapazes nas carteiras.
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Governo reconhece abandono escolar e exclusão social de rapazes e promete respostas específicas
A secretária de Estado da Família e Inclusão Social, Lídia Lima, alertou hoje que o abandono escolar e a exclusão social dos rapazes representam um desafio crescente, exigindo respostas urgentes, integradas e específicas do Governo e da sociedade.
A governante explicou que, apesar de os investimentos estarem centrados no empoderamento económico das mulheres, o executivo tem em curso iniciativas destinadas a travar o fenómeno da desistência masculina no sistema educativo.
“Temos rapazes que, efectivamente, estão a abandonar o sistema formal de ensino e a perder oportunidades em termos de educação e de integração social. Precisamos focar melhor nos adolescentes, perceber o que se passa e o que podemos fazer para melhorar a sua participação”, sublinhou.
Segundo Lídia Lima, o Governo, através do Ministério da Educação e de instituições como o Instituto Cabo-verdiano para a Igualdade e Equidade de Género (ICIEG) e o Instituto da Criança e do Adolescente (ICCA), já iniciou intervenções de sensibilização em escolas, unidades formativas e comunidades, procurando prevenir o afastamento precoce e criar condições para que os jovens regressem ao ensino.
“O próprio Ministério da Educação já está a sinalizar essa problemática e nós, através das entidades competentes, estamos a trabalhar na promoção da masculinidade positiva no país”, indicou.
A responsável recordou que as políticas de igualdade e inclusão social não se restringem às mulheres, mas abrangem todos os cidadãos, incluindo os rapazes e a comunidade LGBTQI+, com vista a garantir condições iguais de desenvolvimento psíquico, social e económico.
“As oportunidades estão a ser criadas e queremos que todos os públicos as aproveitem, principalmente os mais vulneráveis”, afirmou, acrescentando que novas medidas mais concretas serão desenhadas à medida que forem identificadas necessidades específicas em cada comunidade.
Lídia Lima alertou que a exclusão escolar e social dos adolescentes do sexo masculino compromete o seu futuro enquanto cidadãos e trabalhadores, e reiterou que o Governo vai reforçar o acompanhamento e os projectos orientados para este público.
*Com Inforpress
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1234 de 23 de Julho de 2025.