Com as comemorações de datas históricas de Cabo Verde aparecem recorrentemente polémicas à volta de questões como a independência, a abertura democrática e os símbolos do país, ou a sua troca. A controvérsia voltou à Assembleia Nacional, na segunda-feira da semana passada, quando se discutia o Memorial Amílcar Cabral, recuperada pelo deputado do PAICV Nelson Centeio que voltou à questão da mudança da bandeira e do hino nacional nos anos 90.
A questão da bandeira de Cabo Verde voltou a ser hasteada na sessão parlamentar de 29 de Junho. O PAICV criticava a Câmara Municipal da Praia por ter instalado um mercado provisório à frente do Memorial de Amílcar Cabral, quando o deputado Nelson Centeio interveio para considerar esta medida mais uma “afronta aos símbolos nacionais, como já fora feito quando trocaram a bandeira e o hino nacional”.
A intervenção do parlamentar passou sem reacções, mas as polémicas à volta dos símbolos nacionais não são novas.
Cabo Verde foi o único dos cinco Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa que mudou os respectivos símbolos nacionais. Estas alterações aconteceram na década de 90, depois da abertura política e da alteração de poder, com a chegada ao governo, em 1991, do Movimento para a Democracia.
Até então, a bandeira de Cabo Verde e da Guiné-Bissau era comum, embora com algumas diferenças: a bandeira cabo-verdiana tinha espigas de milho à volta da estrela negra, enquanto a bandeira guineense ostentava apenas a estrela de cinco pontas, símbolo do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) desde 1956.
No livro Cabo Verde Os Bastidores da Independência, Érico Veríssimo, autor da bandeira de 1975, conta ter sido contactado, poucos dias antes da independência, por João Pereira Silva para conceber as armas do país, que depois seriam inseridas no pavilhão do PAIGC. “Deram-me as divisas Unidade, Trabalho e Progresso e as orientações que deveriam ser levadas em conta na concepção das armas. Para além da concha que significava a vocação marítima de homem cabo-verdiano, constavam as espigas de milho - a base alimentar de Cabo Verde; a estrela negra - a África; a roda dentada e o livro, que simbolizavam a ideia do desenvolvimento e estudo. Na parte superior havia ainda uma picareta que depois foi retirada.” Elaborado o projecto, Érico Veríssimo foi a Bissau para os acertos finais com Luís Cabral e, a partir daí, saiu a versão definitiva da bandeira. Na referida obra, Veríssimo sublinha ser “absolutamente legítimo” que a primeira bandeira da República de Cabo Verde tivesse sido concebida em cima da do PAIGC, uma vez que tinha sido o partido que conduzira a luta pela independência.
As relações entre Cabo Verde e a Guiné-Bissau foram completamente cortadas após o golpe de 14 de Novembro de 1980 e só vieram a ser reestabelecidas, ao nivel diplomático, a 18 de Junho de 1982, na sequência de uma mediação realizada por Samora Machel, Presidente de Moçambique.
Humberto Cardoso, no livro O Partido Único em Cabo Verde: Um Assalto à Esperança, considera que Cabo Verde, “sem quaisquer escrúpulos”, manteve os símbolos nacionais criados no quadro do projecto da Unidade. O hino era o mesmo para os dois países, as bandeiras tinham uma ligeira diferença. O lema adoptado para a Guiné era “Unidade-Luta-Progresso” e, para Cabo Verde “Unidade-Trabalho-Progresso”.
“O PAICV não mexeu nos símbolos porque, no seu afã de absorver o legado histórico do PAIGC e legitimar-se como poder em Cabo Verde, sabia qual o valor dos mesmos no inconsciente dos indíviduos e que a sua persistência asseguraria a invocação permanente da sua condição de dirigentes históricos do país. É a mesmíssima razão por que os dirigentes da Guiné Bissau mantiveram o C no PAIGC, apesar da raiva mal contida dos seus ex-companheiros caboverdianos”, escreve o autor.
Com a chegada do multipartidarismo, o MpD, que tinha obtido a maioria qualificada no Parlamento, optou pela renovação dos símbolos. O arquitecto Pedro Gregório foi o vencedor do concurso para a criação da nova bandeira. “Para mim, a bandeira, o hino, as armas, são símbolos de um povo ou de uma nação. Daí que não pode, no meu entender, ser confundido com outro povo ou outra nação. Foi a razão principal porque resolvi tomar parte no concurso”, contou ao Expresso das Ilhas.
A mudança foi alvo de resistências, sobretudo a bandeira, por parte de sectores mais conservadores do que fora até então o “partido Estado”. Outras críticas diziam que a mudança tratava-se puramente de uma forma de afirmação do MpD e houve comentários que a bandeira denotava um certo anti-africanismo, por retirar o protagonismo das cores típicas das bandeiras africanas, amarelo, vermelho e verde, e assumir um visual semelhante à bandeira da União Europeia (UE).
“Era necessário que não fosse igual a outros países”, diz Pedro Gregório, “apesar do nome, Cabo Verde, de verde temos pouco. O que é constante e permanente é o azul, o branco, das ondas, e o esforço que é necessário fazer, como o ferro. Quem tem experiência de agricultura sabe que antes da época das águas preparam-se as enxadas, com uma parte de aço, geralmente vermelha, porque esteve no fogo, que depois é batida, para dar resistência. Passei essa mesma ideia, que é necessária a resistência da enxada”.
“Há dois elementos que são essenciais em Cabo Verde; o mar e o céu, daí o azul existente na bandeira”, reitera o arquitecto, “mais ainda, somos um povo de emigração, por isso mesmo estamos abertos ao mundo e, pela mesma razão, devemos estar também abertos a receber os que vêem de todo o lado. Daí a razão das estrelas em círculo, nenhum ponto é mais importante do que outro, há pontos de convergência e pontos de expansão. Há uma conotação, se quiser ir mais longe, com as descobertas e com a esfera armilar, com a navegação, porque também nós somos um povo de marinheiros. E as dez estrelas representam as dez ilhas. Mas, há na bandeira outros elementos. Ela está dividida em três partes principais – superior, intermédia e inferior –, dois azuis, em cima e em baixo, e mais três faixas, na zona central – com dois brancos e um vermelho. A faixa vermelha esteja ladeada por duas faixas brancas, porque psicologicamente e historicamente consideramos a cor branca como a cor da paz. Ou seja, é necessário fazer um esforço para o desenvolvimento de Cabo Verde, mas é necessário que esse esforço seja controlado dentro da paz”.
Dizem as regras que as bandeiras têm de ser simples ao ponto de poderem ser desenhadas, de memória, por uma criança. “E qualquer criança pode desenhar esta bandeira. A bandeira é um símbolo, e ela não deve ser confundida com nenhuma outra coisa”, conclui Pedro Gregório.