Retratos do Quotidiano: Colorido e musicalidade na pintura impressionista de David Lima (II parte)

PorCésar Monteiro,14 ago 2018 8:35

​A pintura, forma antiquíssima da manifestação artística e de representação e expressão visual assente no primado das cores, marca o exercício da actividade profissional de David Lima, por via de um processo gradual e paciente de socialização, que viria a ganhar maior fôlego em Portugal, onde se radica o pintor santantonense, desde inícios da década de 60.

Inspirado, igualmente, nos desenhos do pai João Domila, Levy Lima, ainda na sua ilha natal, na pré-adolescência, teria ele 14 anos, inicia aquilo que, mais tarde, viria a ser o seu longo e invejável percurso pictórico, na linha figurativa, e pinta o seu primeiro quadro centrado no soberbo vale da Ribeira da Torre, cuja paisagem, pela sua empolgância, fora captada por ele próprio, sur place, num dia “particularmente chuvoso” rodeado de esplendor e inspiração.

Em Portugal, onde prossegue os estudos técnicos, que, todavia, não conclui, por “dificuldades burocráticas” de diversa índole, abraça, definitivamente, a causa da pintura, entendida, igualmente, como processo de construção da realidade social, e começa a pintar quadros inspirado em pintores portugueses que, numa primeira fase, norteiam a sua intervenção numa área técnica então incipiente. Nesse processo de aprendizagem artística no contexto urbano lisboeta, David trava relações com um pintor comercial português, de nome Mota e Sousa, por sinal, “falecido prematuramente”, e observa-o a pintar. Assumindo-se, desde 1972, como autodidacta descomplexado, e socorrendo-se da pintura como meio de vida exclusivo, pinta sozinho, “sem ninguém ao lado, a não ser Mota e Sousa, que, apesar de não ser um pintor famoso, abriu-me a porta do seu ‘atelier’ e permitiu-me vê-lo a pintar, em Lisboa”.

Inserido no meio artístico português e numa altura em que escasseavam as galerias em Lisboa e raras eram as exposições de pintura, começa, pouco a pouco, a conhecer diversos pintores e acaba por se fixar, definitivamente, em São Pedro do Estoril, na freguesia de Cascais, e instalar ali o seu atelier, mesmosobranceiro ao mar. Ao longo da sua vida artística, renomados pintores internacionais merecem de David Lima o maior respeito e inspiram-no, com especial destaque, entre outros, para Diego Rodrigues de Silva Velázquez (Sevilha, Espanha, 6 de Junho de 1599 – Madrid, Espanha, 6 de Agosto de 1660), de nacionalidade espanhola, nascido em Sevilha, um artista “muito bom” do período barroco contemporâneo. Pese embora se ter inspirado e “bebido nos clássicos”, a verdade é que, na altura, “eu já tinha olhos postos nos impressionistas e pós-impressionistas e, também, nos modernos”.

Sem dúvida, Rembrandt (Leiden, Países Baixos, 15 de Julho de 1606 – Amsterdam, Países Baixos, 4 de Outubro de 1669), considerado um dos maiores nomes da história da arte europeia e um dos principais pintores holandeses do período barroco da arte, “influenciou-me, sobremaneira”, se bem que o próprio Levy Lima rejeite qualquer classificação rígida da sua pintura, seja ela qual for, e não se confine a correntes que coartem a sua imaginação de criador e a sua liberdade artística. “Não me considero impressionista, chamam-me assim. Não sei o que sou. Não me revejo nenhuma corrente, acho que a minha pintura tem a tendência de interpretar mais uma ideia de um corpo concreto (…) e não o corpo em si. Posso fazer um retrato, por exemplo, traçar a traços rápidos (…) com o resto do pincel e identifica-se imediatamente a pessoa pela postura, pela atitude”.

Fugindo, pois, a conotações ou a rotulações estereotipadas que, no fundo, limitem ou inibam a essência da sua pintura figurativa, dá muito valor “à mancha no quadro (…), não é o real que aparece na mancha, é uma abordagem do real, é uma aproximação do real”. Para lá do peso da mancha e da espontaneidade, que dominam o estilo figurativo eclético de Levy Lima, em contraposição à corrente abstracta de Wassily Kandinsky (Moscovo, Rússia, 4 de Dezembro de 1866 – Neuilly-sur-Seine, França, 13 de Dezembro de 1944), figuram, na sua pintura impressionista, outras componentes técnicas essenciais ligadas, nomeadamente, às cores e à tinta, que valorizam as dimensões humana e paisagística presentes nos seus quadros pictóricos. “Gosto imenso da figura humana, gosto do retrato, gosto de projectar o homem na sua maneira de ser, na sua atitude, na sua postura e na sua relação com outros, isto é, na sua dimensão social. Gosto das paisagens, sejam ela urbanas, ou da Natureza (…), não privilegio nenhuma e trato-as com igual sinceridade”.

Dono de uma “memória fantástica” e de virtuosismo e movido pela “ inspiração, organização mental e concentração” que o transportam, permanentemente, para as suas origens ancestrais, David abraça o rigor, a planificação e a disciplina na pintura, se bem que, via de regra, “comece a execução por traços rápidos”, manipula cores, ou tons, que ali já estão, consoante as circunstâncias, e passa-as para a tela. À partida, “quando começo a pintar, não tenho ideia das cores que vou utilizar (…), que são autênticas abstrações, mas gosto muito dos azuis”. Apesar do seu inegável interesse pelo azul, em vários matizes, aliás bem patente nos seus quadros, o pintor, considerado um dos melhores coloristas cabo-verdianos, diz não ter preferência especial pelas chamadas cores quentes. “Para mim, toda a cor serve. Não sei o que é cor quente. As cores têm igual valor”. Homem de cores, enquanto base da imagem, e valorizador do espaço, do equilíbrio, do traço rápidoe da mancha, Levy Lima, que se considera um “analista social”, privilegia, também, na sua pintura, a presença da luz interior, que, aliás, pela sua intensidade, empresta à sua obra pictórica identidade própria, e pinta ao sabor da música que o viu crescer, auxiliado por instrumentos de trabalho como sejam a tinta acrílica de secagem rápida, o pincel, a paleta e a tela, entre outros.

Associados à intensidade da luminosidade, ou brilho, e à claridade da cor, que confere à sua pintura singularidade e a torna inconfundível, mormente no plano estético, os quadros de Levy Lima transportam consigo a musicalidade, que resulta, em parte, da fina sensibilidade do pintor para a música que interioriza no seio familiar, por via da audição, e a aperfeiçoa no meio musical da Povoação onde nasce e cresce, até à iniciação dos (seus) estudos secundários em S. Vicente. Aliás, na arte musical e na pintura de David convergem o ritmo, o movimento, a harmonia, o balanço, a melodia, o timbre (identidade) e a dinâmica de expressão (intensidade), que, em última análise, enformam a composição formal da obra artística e espelham, ao mesmo tempo, a sua inegável dimensão estética e sociológica, para lá da cor e da presença de outros elementos dinâmicos e estruturantes a ter em devida conta, num processo dinâmico. “Primeiro, debruço-me, mentalmente, sobre aquilo que quero pintar, germino-a na minha cabeça, imagino diversos enquadramentos. Digamos, que é a altura em que estou a pintar, pinto mesmo, Depois, quando tenho o pincel na mão, já estou a executar. Não desenho, primeiro, mas, quando se começa, é preciso saber-se parar num determinado momento, fechar a obra artística, ainda que ela não termine ” e fique aberta, na perspectiva de Umberto Eco (Alexandria, Itália, 5 de Janeiro de 1932 – Milão, Itália, 19 de Fevereiro de 2016).

Visivelmente comprometido com a valorização das espécies, David Lima, que mantém uma relação especial de respeito com o mar, uma das suas diversas fontes inspiradoras, tanto na sua fúria, como na sua mansidão, transmite, na sua pintura, a marca de personalidade do próprio pintor de extracção rural, que consegue transpô-la para a tela, rejeitando qualquer conotação com a chamada pintura de intervenção, seja ela de cariz político ou não. “Basicamente, a minha pintura reflecte a minha personalidade temperamental, doseada, é certo, com alguma autocontenção e serenidade adquiridas ainda na adolescência. Não me considero um pintor de intervenção, não uso a intervenção para me exprimir na pintura. Há casos que me chocam, mas não as passo para a pintura”, podendo fazê-lo. Mais do que retratista ou paisagista, a pintura comprometida de Levy Lima, prenhe de musicalidade, alegria e festa, e, de resto, altamente apreciada, tanto a nível nacional, quanto internacional, através da sua significativa presença em exposições individuais e colectivas, em muitas publicações e, ainda, em museus e coleções particulares, distingue-se e impõe-se, ela própria, pela sua versatilidade e pelo simbolismo que carrega.

(Última parte)

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Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 871 de 07 de Agosto de 2018.

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Autoria:César Monteiro,14 ago 2018 8:35

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  14 ago 2018 8:35

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