
O ALUPEC foi aprovado há dez anos. Que avaliação faz da aceitação deste alfabeto unificado para a escrita do crioulo?
Manuel Veiga - Eu acho que devo esperar pela avaliação dos outros. Como sabe eu fui um dos autores do ALUPEC, fui presidente da Comissão de Padronização que aprovou o ALUPEC. Começamos a fazer a avaliação nos Estados Unidos da América, onde participamos recentemente na Semana Cultural que incluía no seu programa a celebração do Xº Aniversário do Instituto Crioulo Americano (CCI), mas vamos fazer a avaliação também aqui em Cabo Verde; vamos fazer a avaliação junto dos autores desse projecto; vamos fazer a avaliação junto daqueles que utilizaram, que utilização, que ensinam e ensinaram o ALUPEC e possivelmente iremos fazê-lo noutros espaços da diáspora onde se utiliza o ALUPEC. Eu só lhe posso dizer que, pelo simples facto de 10 anos depois do ALUPEC, não ter surgido nenhum outro modelo de escrita sistematizada, isso dá ao ALUPEC uma grande força.
"ALUPEC tem uma grande legitimidade"
O facto de termos verificado, em todos esses anos, que os estudos que se fizeram a nível universitário e de outros institutos superiores, tanto aqui em Cabo Verde, como em Portugal, como nos Estados Unidos, como na França, como na Alemanha, utilizaram o ALUPEC, isso dá ao alfabeto unificado uma grande força e uma grande legitimidade. Mas, como Ministro da Cultura, não devo fazer ainda essa avaliação, quanto mais não seja para não influenciar o processo. Aliás, nos EUA, tive o cuidado de não dizer a minha posição relativamente ao ALUPEC. Acho que de resto toda a gente conhece a minha posição em relação a esta matéria, mas não gostaria de expressá-la aqui, porque como tutela do ministério que recebe os inputs para depois levá-lo ao Conselho de Ministros, não fica bem eticamente eu avançar com a minha avaliação. Neste momento eu quero ter a avaliação dos outros, antes de expressar a minha opinião. Vamos ter várias instâncias para proceder a essas avaliações. Como já lhe disse, há uma instância que é daqueles que fundaram o ALUPEC. Vamos perguntar-lhes: se vocês tivessem de fazer hoje a proposta, seria a mesma, ou sugeriam algumas adaptações? Mas vamos também fazer a avaliação junto de aqueles que já escreveram, que já ensinaram, que têm experiência e legitimidade para fazê-lo. No fim, vamos criar uma comissão alargada que inclui aqueles que fizeram a proposta do ALUPEC (menos algumas pessoas, porque eu não poderia fazer parte da comissão) mais algumas entidades ou personalidades com legitimidade para fazer essa avaliação.
Já em princípios de 2005 tinha prometido uma oficialização gradual do crioulo. Volvidos 10 anos sobre a aprovação do ALUPEC, a pergunta: para quando a oficialização?
MV - Vou corrigir. Nunca prometi a oficialização do crioulo, nem sequer posso prometer.
Oficialização do crioulo não depende do ministro da Cultura
O que terei dito é que, dentro do senso comum, é que eu havia de fazer tudo por tudo, para que a língua cabo-verdiana fosse oficializada. Mas a oficialização não depende nem do ministério da Cultura, nem do ministro da Cultura, nem dos linguistas cabo-verdianos, nem apenas do Governo. Quer dizer, a oficialização que é o reconhecimento constitucional, só pode partir do Parlamento, mesmo no Parlamento terá que ser suportada por dois terços dos deputados. O que tenho vindo a fazer é a sensibilização junto de todos os partidos que têm assento parlamentar no sentido de fazer ver que o que temos de mais importante na identidade cultural cabo-verdiana é a nossa língua materna. Para qualquer povo no mundo a sua língua materna é um elemento fundamental na definição da sua identidade. Aliás, é pela língua que definimos as nações: povo português, porque fala o português; povo inglês, porque fala o inglês e povo cabo-verdiano, porque fala a língua cabo-verdiana. É na língua cabo-verdiana que nós temos formatado muitos elementos da nossa cultura. Veja a música que é um elemento fortíssimo da nossa identidade. Mas veja o que seria da nossa música sem o crioulo. O escritor brasileiro, Jorge Amado, quando visitou Cabo Verde, em 1986, disse que a vida em Cabo Verde decorria em crioulo.
"Queremos oficializar o crioulo ao lado do português"
Naturalmente temos uma outra língua. Nós, o que pretendemos é oficializar o crioulo ao lado do português que já é língua oficial e que nós assumimos como um património descomple¬xa¬damente. O português é mais antigo que o crioulo em Cabo Verde, o crioulo é filho do português também e das línguas africanas. Então, descom¬plexadamente assumimos as duas línguas. Escrevi o livro "A Construção do Bilinguismo" justamente para dizer que Cabo Verde precisa (há tempos eu disse ‘como o ar que respiramos' e alguém contestou). Mas eu acho que nós, quase como o ar que respiramos, precisamos das duas línguas, uma para comunicação interna, outra para comunicação externa. E as duas línguas devem ser ensinadas nas escolas com rigor. Precisamos das duas línguas, mas é necessário que as duas línguas tenham um estatuto válido. Mas o crioulo até este momento não tem o estatuto que deveria ter. O crioulo tem que ser oficializado. Porque se Cabo Verde não oficializar o crioulo está a proceder mal. A nossa geração tem o dever e a missão de valorizar uma língua que nasceu e encontrou.
"Tenho orgulho de ter uma língua, uma história, uma cultura"
Eu costumo dizer que tenho orgulho de ter uma língua, uma história, uma cultura. E se valorizamos tanto a nossa cultura, a nossa identidade, não podemos fazê-lo sem valorizar a nossa língua, porque na tua identidade está a língua, está a história, está a cultura. Você não pode dizer ‘ eu sou cabo-verdiano' excluindo a língua cabo-verdiana. Seria um contra-senso. Uma das maiores homenagens que podemos prestar ao nosso povo é oficializar a língua cabo-verdiana. Voltando à sua pergunta: eu não prometi oficializar a língua cabo-verdiana, senão que fiz tudo por tudo para que acontecesse. De facto, se o Conselho de Ministros aprovou, em 2005, " As linhas estratégicas para a afirmação e valorização da língua cabo-verdiana", foi graças ao contributo do ministro da Cultura como linguista. Com esta medida, quase que a língua cabo-verdiana ficou oficializada. Nós temos que ver que a Constituição quase que oficializou a língua cabo-verdiana. A Constituição não pode deixar de fazê-lo, porque a Constituição diz no seu artigo nono que a língua oficial em Cabo Verde é o português. O mesmo artigo, no ponto 2 diz que o Estado deve criar as condições para a oficialização da língua cabo-verdiana, em paridade com a língua portuguesa. O ponto 3 diz que todos os cidadãos têm o direito e o dever de aprenderem as línguas oficiais. Portanto a Constituição não deve ir para trás. Eu gostaria de ser a oficialização da língua cabo-verdiana como um projecto comum de todos os partidos políticos no Parlamento, porque a língua cabo-verdiana é nossa.
Oficializar o crioulo ao lado do português
Se há uma coisa que podemos dizer que é nosso, e que pertence a todos os cidadãos e que ninguém pode dizer ‘eu tenho um pedaço maior do que o outro' é a língua cabo-verdiana. No segundo semestre deste ano vamos ter uma nova revisão da Constituição. Seria bonito, se, no ano da apresentação da candidatura da Cidade Velha a património mundial da humanidade, conseguirmos também reconhecer a língua cabo-verdiana como língua oficial, ao lado do português, não só seria bonito, mas também uma grande conquista deste povo. E eu só posso fazer votos que assim seja.
Serão neste ano os ventos mais propícios para a oficialização do crioulo, já que seria exigir do cabo-verdiano um duplo esforço: assimilar o alfabeto português saído do novo acordo ortográfico e o alfabeto unificado para a escrita do crioulo?
MV- Veja: as coisas vão etapa por etapa. Portugal já disse que o acordo ortográfico vai ser materializado num horizonte temporal de seis anos. Haverá uma fase experimental. Nós tivemos 10 anos para a fase experimental do ALUPEC. Nós temos que fazer algum esforço para interiorização do ALUPEC, mas não será muito grande. O que quero dizer é que tudo o que é bom exige algum esforço. Repare, o alfabeto é uma convenção. E do ponto de vista linguístico quanto mais económico for o alfabeto, melhor. E o ALUPEC é extremamente económico. E o acordo ortográfico da língua portuguesa está a dar razão ao ALUPEC e vai dar mais razão ainda ao ALUPEC. Na linguística existe a conhecida lei do menor esforço, segundo a qual tentamos dizer o máximo de coisas utilizando o mínimo possível de energia. De maneira que o acordo ortográfico não me espanta. E o saúdo como forma de realizar a integração no seio da CPLP. Aceito o acordo ortográfico da língua portuguesa pacificamente. Agora, é preciso que as coisas se processem passo a passo, na certeza de que vão ter lugar outros acordos no futuro, porque a língua é viva. O ALUPEC também vai ter mudanças. Por isso é que eu recomendo a aprovação do ALUPEC, mas não de forma definitiva, na certeza de que amanhã vai haver adaptações inteligentes que a própria inteligência nos aconselha a fazer.