Critica-se-lhe uma certa arrogância no trato com as pessoas. JLT, igual a si próprio, defende-se, melhor, como ressalta, " não me defendo nem tenho que me defender, pois não reconheço a confrades nem a frades legitimidade para me acusar ou deixar de acusar", notando sarcasticamente: "para alguns dos meus confrades se não sou o próprio demo, devo andar «mancomunado».
Na sua opinião não é a sua pessoa que deve estar no centro das atenções: " é a obra que é importante, se o for", embora relativize que nada é mais incerto ou ilusório do que a glória literária. O estatuto da língua cabo-verdiana "sou pela oficialização plena e em paridade com o português, ainda que, no meu entendimento, se esteja a apegar demasiado à questão formal, legal e constitucional", o acordo ortográfico da língua portuguesa e a questão do ALUPEC e das variantes da língua cabo-verdiana são outros tópicos que animaram esta entrevista, além, é claro, do lançamento do seu mais recente livro, "Cidade do Mais Antigo Nome"
Expresso das ilhas - Porquê um livro sobre a Cidade Velha e porquê o título "Cidade do Mais Antigo Nome"?
José Luís Tavares - O nascimento de um livro tem sempre o seu quê de misterioso, embora os meus livros surjam na minha cabeça com os contornos já definidos, começando pelo título, ainda que durante o processo da escrituração acabem por se desencabrestar tomando, e ainda bem que assim acontece, rumos nem sequer anteriormente considerados.
Eu comecei a pensar neste livro há muitos anos, logo após a publicação do meu primeiro, «Paraíso apagado por um Trovão», em 2003. Porquê a cidade velha e «Cidade do mais antigo nome»? Talvez porque precisasse de reflectir sobre certas realidades e questões, e o burgo com a sua trajectória atribulada servisse na perfeição para aquilo que pretendia.
Quanto ao título, pensei-o como simples metáfora de «Cidade Velha». Eu costumo dizer que um título é uma espécie de buraco na fechadura por onde o leitor vai espreitando. E, consoante a dimensão do buraco, poderá ou não revelar-se com mais nitidez o conteúdo da obra. No caso de «cidade do mais antigo nome», sem sequer ter presente o santíssimo nome, padroeiro da localidade (trata-se apenas duma coincidência feliz), é por se constituir como berço primevo de germinação daquilo que viria a ser um povo, uma nação, uma identidade.
"Cidade do mais antigo nome" é escrito em co-autoria com o fotógrafo português Duarte Belo. Como nasceu este projecto?
Na verdade, o livro não é escrito em co-autoria, mas não me importava que assim fosse, pois tinha com quem repartir as angústias e as alegrias que a escrita duma obra implica, e além disso o Duarte Belo escreve maravilhosamente. Como disse anteriormente, os meus livros ganham forma na minha cabeça bastante tempo antes de passarem a escrito. Quando comecei a pensar neste livro ficou claro desde o primeiro instante que era um livro que pedia um complemento visual, e como eu já conhecia e admirava o trabalho do fotógrafo, decidi convidá-lo para o projecto. Quando a parte escrita já estava praticamente concluída, certo dia soube de um evento onde iria estar um poeta português meu conhecido e amigo do pai do Duarte Belo. Como não conhecia o Duarte decidi ir a esse evento afim de falar com o tal poeta, com a finalidade de nos pôr em contacto. Ao chegar lá, e como estivesse de muletas devido a um acidente, veio uma senhora ajeitar-me, gentilmente, a cadeira para que me pudesse sentar. Quando disse ao meu amigo poeta ao que vinha, ele respondeu-me «a senhora que acabou de ajeitar-te a cadeira é a mãe do Duarte Belo». Achei aquilo uma coincidência incrível e um sinal auspicioso. Contactado o fotógrafo, aceitou, com grande entusiasmo, participar do projecto, sem qualquer contrapartida. O resto são as peripécias por que passámos durante cinco anos até conseguirmos ver o livro impresso.
Em alguns poemas deste livro emprega metáforas com sabor a Ruy Belo que foi também um grande cultor do soneto. Existe, de facto, essa influência?
Antes de mais, um reparo: Ruy Belo, que é um dos gigantes do século xx português, não foi um grande cultor do soneto. Em toda a sua obra poética não deparamos com mais de uma dúzia de sonetos, se tanto. Foi, isso sim, um dos mais relevantes cultores do poema longo, na esteira do celebrado Álvaro de Campos.Quanto à questão da influência, ela não se coloca, pois eu não sou influenciado por ninguém - escolhi demasiado bem o meu baptismo e o meu caminho. Só posso entender a questão como uma extrapolação a partir da epígrafe, que é muito posterior à escrita do livro. Como já disse algures, eu pratico uma espécie de canibalismo poético. Tudo aquilo de que me alimentei, poeticamente, torna-se carne minha. Não sofro, nunca sofri de angústia de influência, nem nos termos interessantíssimos em que a coloca o crítico e teórico judio-americano Harold Bloom na obra The anxiety of influence. Se vozes outras ressoam na minha poesia será apenas a evidenciação consciente de um certo lastro cultural através de estratégias citacionais, paródicas ou homenageantes. Referência, diálogo, confluência, sim; influência, não.
Queria discordar quando diz que Ruy Belo não foi um grande cultor do soneto. Já no prefácio do seu primeiro livro escreve que se só no seu terceiro livro o soneto surgiu, foi porque não conseguiu resistir por mais tempo à irresistível sedução dessa forma " quem, durante nada menos de que uns longos quinze anos, a praticara com o carácter oculto e obstinado de um vício. Logo a seguir escreve, e é o que nos interessa agora, que não acredita na inspiração, porque a própria poesia se aprende. Como estudioso do seu metier, pode-se dizer que é mais artífice do que artista? Será devido a este facto que é o único poeta cabo-verdiano premiado nas línguas nacional e oficial?
Convém não confundir as teorizações dos autores acerca da obra com a própria obra. Eu como tento ser sempre rigoroso e conheço em profundidade a obra do Ruy Belo, digo-lhe que a obra toda dele comporta uns quinze dezasseis sonetos (nem de longe do melhor que ele escreveu), quase todos fazendo parte do já citado terceiro livro. Uma coisa são as afirmações autorais, outra a realidade textual. E para o caso é o que importa. Só o facto de os não ter publicado é já significativo. Se um autor que publicou quinze sonetos é um grande cultor, que dizer desse desmesurado paulistano de nome Glauco Mattoso, um dos mais desconcertantes escritores brasileiros da actualidade, que já publicou para cima de mil sonetos? Quanto à questão que me coloca, artífice, artista e artesão serei, mas prefiro o termo criador. Se os primeiros têm a ver com uma capacidade técnica que se pode aprender ou desenvolver, este último já tem que ver com qualquer coisa da ordem do espírito, inato, se quisermos essa capacidade que os latinos chavamam ingenium, e eu traduziria, de um modo tosco, por dom. Aliás, para clarificar melhor o meu pensamento, recorreria a uma analogia bíblica: o artífice pode moldar o barro, mas apenas o verdadeiro criador lhe pode transmitir o sopro que o anima e que constitui o mistério de toda a grande arte e que não é fruto de um processo cumulativo, como já notara o filósofo Gianni Vattimo no seu ensaio «as estruturas das revoluções artísticas» em contraponto «às estruturas das revoluções científicas» de Thomas Kuhn. Eu experimento uma certa ambivalência quando me dizem poeta em língua caboverdiana. Costumo dizer, algo provocatoriamente, que, literariamente falando, a minha língua materna é o português, ou que sou poeta «do português», porque, sem falsas modéstias, consigo realizar verbalmente através da língua portuguesa escrita, e a um nível que os meus leitores podem testemunhar, tudo o que a minha mente seja capaz de engendrar. Já não acontece assim, por razões que já expliquei noutro local, com a língua caboverdiana, e tem basicamente a ver com isto: uma língua para atingir o seu cume, o seu esplendor literário, precisa de séculos de burilamento e sedimentação que a nossa ainda não possui. Se pareço estar na dianteira, o que não creio, é graças a um trabalho metódico e porfiado de tentativa e falha que venho levando a cabo e que está apenas no seu início.
Aquando da entrega do prestigiado Prémio Mário António da Fundação Calouste Gulbenkian pelo seu primeiro livro de poemas, «Paraíso Apagado por um Trovão», afirmou que não se devem agradecer os prémios. Depois foram vários os prémios que ganhou. Quais foram eles e mantém ainda a mesma opinião a este respeito?
Revejo-me na afirmação, embora ela tivesse sido proferida num contexto particular e estivesse relacionada com a ambiência que presidiu à atribuição desse prémio. Em todo o caso, posso dizer-lhe que esse texto é o manifesto que marca a minha entrada no mundo da literatura, sem meiguices, mas também sem hipocrisias. Mantenho o entendimento de que a forma de agradecermos os prémios é produzirmos obras iguais ou ainda de qualidade superior. No meu caso, os prémios já são tantos e tão variados que não vale a pena enumerá-los. Vejo até que isso passou a ser uma coisa tão banal que certos órgãos de imprensa do meu país se abstêm de noticiar essas distinções quando Portugal e o Brasil o fazem à saciedade. Bendita a pátria que tem tantos escritores a serem distinguidos por esse mundo fora que as distinções atribuídas a um deles já nem constituem notícia. Olha que não me estou a queixar (até porque acho que tenho boa imprensa), mas apenas a fazer uma análise comparativa com relação a outras personalidades desse nosso pequeno mundo das artes quando provenientes de certas geografias territoriais ou político-ideológicas, até porque o que importa são as obras que alargam as fronteiras do humano e nos acrescentam enquanto agregado civilizacional.
Agora não posso deixar de manifestar uma certa estranheza (eu que nunca tive, nem tenho as costas quentes) que num país que se rejubila, e com razão, por cada notícia boa acerca do torrão, se emudece quando um dos seus é distinguido lá fora. Só pode ser mesmo culpa da electra, essa entidade obscura e sinistra, e dos malvados dos thugs, que dizem estar a soldo da dita cuja.
Em 2004 afirmou que o futuro do poeta é escrever mais e mais e o do homem civil é apetrechar mais o poeta para o exercício da escrita". Domina hoje mais a técnica do verbo e que evolução poderá constatar desde a publicação do seu primeiro livro até à "Cidade do mais antigo nome"?
Para ser franco, não sei se hoje domino a técnica do verso e do verbo mais do que dominava, pois eu escrevo sempre no fio da navalha, através da experimentação incorporação e amadurecimento de novos processos e técnicas. Daí poder afirmar que nenhum dos meus livros constitui lebre para o próximo, pois o que vem é sempre diferente do anterior, ou, pelo menos, tenta sê-lo, o que traz custos e perigos quer em relação ao conseguimento artístico, quer ao nível da recepção mediática e crítica. Mas eu sou assim, só sei viver e trabalhar arriscando, sem o conforto do já feito e do já adquirido. Se acontece eu fazer um relance sobre aquilo que está para trás, é para constatar o que terei feito menos bem, e nunca para descansar sobre os louros conquistados. Exemplo disso é a publicação do meu segundo livro poucos meses após a saída de «Paraíso apagado por um trovão», quando eu podia aguardar e desfrutar confortavelmente os ecos mediáticos e a consagração quase instantânea que esse livro me proporcionou. Outro aspecto ainda é a opção por uma escrita em língua caboverdiana, usando o único instrumento sistematizado e reconhecido, num momento em que fazê-lo te expõe às mais vis calúnias e aos insultos desses embuçados que andam pelos esgotos que são as caixas de comentários dos jornais electrónicos caboverdianos. E é uma pena, pois esses locais podiam ser palcos abertos de visões plurais e livres, não se desse o caso de meia dúzia de indivíduos os monopolizar para bolçarem as suas frustrações, calúnias e invejas. Não se trata da crítica ou da discordância, ainda que viril, mas aquilo é pura velhacaria, a que não deveríamos atribuir qualquer valor se não fosse o sintoma de algo mais grave.
Escreveu que "aos olhos daqueles que me não conhecem, mesmo aos daqueles que conhecendo o homem desconhecem o poeta, passarei por intratável, ou coisa pior". Esta crítica, de facto, existe, pelo menos em Cabo Verde: os seus confrades criticam-lhe uma certa arrogância no trato com as pessoas. Como é que se defende dessa crítica?
Primeiro, não me defendo nem tenho que me defender, pois não reconheço a confrades nem a frades legitimidade para me acusar ou deixar de acusar. Não estamos em tribunal. Vou responder porque me dá um enorme gozo fazê-lo. Para alguns dos meus confrades se não sou o próprio demo, devo andar «mancomunado» com ele (forte gargalhada). Mas, para sermos rigorosos, não conheço nenhuma crítica deles a este respeito. Crítica é aquilo que se diz ou se escreve com o nome assinado por baixo. Pode mostrar-me algum exemplo disso? As evidências que eu possuo são exactamente o contrário disso, desde os becos e botecos do brasil, ao café sofia; do poeta às ruas do tarrafal; da cintura suburbana de Lisboa aos pátios das universidades. E mesmo que assim não fosse, acaso participo de algum campeonato de popularidade, ou serei algum político à caça de voto para ter que dizer apenas aquilo que agrada às pessoas? Bastava ler o corolário desse texto para não haver dúvidas sobre o meu entendimento em relação ao posicionamento do poeta na polis. Ou você andou a visitar certos subterrâneos, que é lugar impróprio para gente moralmente decente, e por isso deve evitá-los, ou isto é uma boa provocação na qual terei todo o gosto em embarcar. Mas cuidado em armar-se em advogado do diabo comigo, pois eu sou o próprio diabo em pessoa. Posto isto, avancemos. É claro que eu tenho posições desafiadoras, contundentes, provocatórias e, dizem-me, que até radicais, e eu que sou cândido mas não inocente, sei que isso tem consequências num país em que quase tudo é dito em surdina ou por meias palavras, como se tivéssemos medo de ser homens livres e integrais. Eu espero dos outros desafios intelectualmente viris, e não esses florilégios de elogios mútuos, vãos como o ranço de inveja que alguns, poucos, tentam bolçar para cima de quem apenas se preocupa em exercer o seu ofício o melhor que sabe e pode. Repare: eu há pouco podia não ter replicado à questão acerca do Ruy Belo (e, já que estamos com a mão na massa, atente no terceiro parágrafo do citado prefácio), mas eu não quero estar aqui consigo numa cavaqueira amena como dois íntimos discreteando num boteco, pois estamos num espaço público, e só o facto de estarmos aqui faz impender sobre nós certas responsabilidades. Eu quero pô-lo em xeque, torná-lo mais agressivo, fazendo com que tente encostar-me às cordas, e, deste modo, conseguir respostas mais inesperadas e mais interessantes. Para mim é tudo uma espécie de pugilato mental, questão de estímulo e resposta. Não é o indivíduo José Luís que deve estar sob o foco - é a obra que é importante, se o for. E eu que, como já disse, sou tudo menos inocente, tenho que colocar estas questões: quem leu os livros do JLT?, quem pode lê-los? Que notícias temos disso? Repare-se que o próprio entrevistador não me fez, ainda, perguntas substantivas acerca de alguns dos meus livros, por exemplo, «agreste matéria mundo», «cabotagem&ressaca», «lisbon blues». Quase ninguém leu os meus livros em Cabo Verde, ou porque não chegam lá, ou porque não há circuitos de distribuição eficientes, ou porque as pessoas têm outras legítimas prioridades, ou por mil e outros motivos. Dá-se até o caso caricato de um livro meu distribuído pelo instituto da biblioteca nacional e do livro não se encontrar na biblioteca nacional. Pelo menos não constava da base de dados quando a consultei. Com isso tudo não quero dizer que as pessoas estão inibidas de fazer as críticas que entenderem justas, pois, humano e pecador que sou, devo carregar mais faltas que aquelas que o meu pobre esqueleto pode suportar, mas o que importa e importará sempre é a obra e não o suposto (mau) feitio do seu autor. Assumo que sou vaidoso, mas o próprio eclesíastes já não dizia que debaixo dos céus só há vaidade? Não possuo sagacidade nem manha suficientes para ocultar aquilo que sou. Fingimento, apenas aquele mais alto e mais verdadeiro a que arte nos obriga, e, mesmo esse, apenas para revelar e não para esconder.
É o tributo que paga um grande poeta? Ocorre-me agora que Jaime Figueiredo, João Vário e mais recentemente Arménio Vieira são ou eram tidos como pessoas de trato difícil. E ocorre-me também ter Rui Belo escrito mais ou menos isto: "poetas, só em forma de livro". Que comentários.
Você acabou de citar dois nomes que admiro imenso, embora a minha suposta intratabilidade possa ser mais de ordem intelectual do que pessoal ou social. Devo ter é demasiados tomates para o gosto dessa confraria de capados (sem desprimor para com os ditos) que devia estar mais preocupada em fazer coisas que se vejam do que estar a patrulhar o comportamento alheio. Agora uma coisa é certa: não vou dizer aqui quem é esse outro JLT, pois àqueles a quem isso possa importar não são precisas provas para passarem a saber quem eu sou. E digo mais: eu aprendi a rir de mim mesmo, a flagelar-me sem contemplações, daí já estar um tanto couraçado contra os estilhaços que voam à minha passagem, embora consciente dos danos que podem causar.
Se é o tributo que paga um grande poeta? Não sei se é tributo, dízimo, onzena ou juro. Isso é melhor perguntar aos gajos do templo maior que são especialistas na matéria (gargalhada). Mas, para encerrar de vez este capítulo desinteressante, conto-lhe o seguinte episódio: certa vez um amigo muito ponderado e de poucas falas disse-me que o nosso universo literário se assemelhava a um pequeno queijo disputado por vários ratos, e que eu teria vindo sabe-se lá de que parvónia (como dizia o Mário Fonseca com indisfarçável ternura) e teria arrebatado o queijo quase todo para mim.
Posto isto, posso dizer-lhe que não há nenhum sentido triunfalista nas minhas palavras ou nas minhas atitudes, muito menos sobranceria, pois a glória literária é muitas vezes conjuntural, e sempre tive a clara noção de que sou apenas mais um na vasta cadeia daqueles que em diferentes tempos e lugares tentaram lançar luz sobre os mistérios da condição humana e sobre o nosso comum viver aqui à face da terra.
Reparo que nunca se refere à obra duma grande voz do exílio que é o Daniel Filipe, também um poeta premiado em vida. Há algum ponto de contacto entre as duas obras e porque é que o vate da Boa Vista é silenciado em Cabo Verde?
Acaso serei eu algum cristo para carregar o mundo todo sobre os meus ombros? Não bastarão os livros que tenho escrito e a forma como tenho levado um pouco o nome e a cultura erudita do meu país a tantos lados? Só falta perguntar-me porque não tenho referido as últimas palavras de cristo na cruz ou os primeiros vagidos do homo sapiens. Parece que passei a ser o grande canonizador de quantos um dia publicaram um livro em Cabo Verde. Mas como não sou de fugir às questões, digo-lhe que não creio que em relação ao Daniel Filipe haja premeditação no silêncio à sua volta. Isto em Cabo Verde, pois em Portugal a Invenção do Amor é um livro que tem feito um precurso não desprezível. Penso apenas que o tempo, esse supremo juiz, não se terá ocupado dele tão benevolamente como terá acontecido com alguns outros nossos. E quando assim é, não há coroa ou trono, prémios ou louvores que nos valham. Volto a repetir que nada é mais incerto ou ilusório do que a glória literária.
Na sua opinião em Cabo Verde existem poucos bons livros. Escapam para si o Filinto, o Mário Lúcio e o Vadinho, "ainda que por vezes demasiado enredado em alguns labirintos metafísicos". Não é uma visão algo redutora do que se escreve cá na terra?
Ah, você também se queixa de eu mencionar escassos nomes?! Mas não é Cabo Verde um país de escassez, onde abundante mesmo só a nossa bazófia e, valha-nos isso, a nossa indomável tenacidade? Mas queria o quê, um milagre de multiplicação de grandes autores? (Recomendo-lhe a leitura de George Steiner e logo perceberá porque não é isso possível). Talvez mesmo um desses milagrizinhos à la carte que os gajos do templo maior obram, mas que eu saiba ainda não estão a operar nesse nicho.
Por este andar ainda um dia desses teremos os nossos tribunos a colocarem as suas empáfias tonitruantes, qual estrondo di bóka bedju, em luzidias escadinhas e a apodarem-nas de poesia. Aí, sim, eufóricos todos cantarão kabu verdi, téra di pueta sima areia.
Voltando ao Vadinho. São justamente os labirintos metafísicos que criticas na poética do Vadinho que projectaram a obra de Jorge Luís Borges. Não acha que a crítica veio de onde era menos de esperar: portanto de um licenciado em filosofia?
O Vadinho é um bom poeta e um bom amigo. Sou livre de gostar ou não daquilo que ele escreve, e ele idem aspas em relação a mim. Isso não aumenta nem diminui a amizade nem o mérito de nenhum de nós. Mas uma coisa lhe digo, e nem precisava de fazê-lo: eu sou dono das minhas palavras e das minhas ideias e batalhei no duro para conquistar um espaço para poder dizer aquilo que penso. Se isso incomoda alguns próceres, que não ao Vadinho, e que provavelmente nunca leram uma única linha do que ele escreveu, melhor ainda. Daí que lhe digo: se há crítica aqui, ela vem exactamente donde devia vir - de quem escreve também poesia e se interessa pela filosofia. E a questão não é dos labirintos metafísicos ou empíricos em si, mas a maneira como são atravessados.
Abraão Vicente, numa entrevista, questionou-lhe sobre os nomes mais pujantes, donos da melhor literatura feita por cabo-verdiano nos últimos anos. Depois de mencionar escassos nomes, remata desta forma "Ah, falta o JLT, mas desse não posso falar". Porque é que não pode falar de JLT. Há alguma ironia nesta asserção ou é para ser entendida no sentido literal da palavra? Mesmo à margem da teoria linguística de L. Wittgenstein, segundo o qual sobre daquilo que não se pode falar é melhor calar-se.
Quanto ao sentido da minha afirmação, outros que se preocupem com ela, que não quero transformar-me hermeneuta de mim mesmo, e deixemos o coitado do Wittgenstein em paz, pois se ponho a falar das consequências hermenêuticas desse seu postulado nem o expresso inteiro chegaria para tal empresa, e receio estarmos invocar o nome dele em vão, e ainda o homem poderia levantar-se e vir pedir-nos satisfações com um atiçador na mão. Deve conhecer a história acontecida em Londres entre ele e o Karl Popper.
Ainda em relação à proposição de que acerca daquilo que não se pode falar é melhor calar-se, que é a sua definição do místico, contraposta a do mundo, a poesia é exactamente o contrário disso. Ela existe para falar do que não se pode falar, dar voz a todos os interditos, alargar os territórios do dizível e com isso os limites da liberdade e a própria fronteira do humano. Aliás, o próprio Platão que expulsou a poesia da sua cidade ideal (e isso tem muito que ver com a disputa entre a poesia e a filosofia na configuração e educação da polis, e em alguma medida com a centralidade de Homero na paideia grega), reconhece isso ao assumir que a dialéctica só pode ir até um determinado limite. Daí para a frente, só a visão, que é apanágio da poesia, ainda que no passo seguinte a classifique de delírios em relação aos quais o poeta não tem consciência dado se encontrar sob a influência da musa.
Numa entrevista afirmou que em Cabo Verde há alguns, poucos, livros bons. Que livros são esses?
Nunca é demais referir os vários «Exemplos» de João Vário, um monumento poético de difícil superação, e ao qual cheguei tarde, muito tarde. Pudesse eu ler o Vário aos 16 17 anos, e não esse ranger de dentes atávico em forma de verso que enxameia os compêndios escolares, talvez pudesse ter encontrado o meu caminho um pouco mais cedo.
Estarei a ser outra vez escasso, mas não há escapatória nem antídoto para aquilo que nos enforma e nos torna irredutivelmente únicos.
Brevemente realiza-se Março Mês do Teatro. Teremos algum dia JLT a surpreender-nos com uma peça de teatro?
Ah, você quer teatro?! Prefere tragédia ou comédia? Então toma lá esta: declaro aqui que sou candidato à presidência da república e que não vou desistir a favor de nenhum vampiro, ainda que invoque a mais alta linhagem faraónica. Aceitam-se apoios de todos os quadrantes. Não é preciso
apresentação do registo criminal. O único requisito é saber um verso de cor, ainda que seja do mais obscuro poeta da Mongólia. Por estes dias montarei banca à entrada do sucupira para a recolha das assinaturas necessárias. Terei um letreiro pendurado à volta do pescoço. Apoiantes, ainda que consigamos um único mísero voto de um defunto com paradeiro conhecido há mais de três décadas, celebraremos condignamente inundando a cidade de poesia.