Efeméride: ‘B.Leza contód de nôs móda’

PorSusana Rendall Rocha,11 dez 2010 23:00


03 de Dezembro de 1905 - 14 de Junho de 1958

Há 105 anos nascia Francisco Xavier da Cruz, imortalizado como B.Leza, autor de ‘Miss Perfumado', ‘Mar Azul', ‘Lua Nha Testemunha', ‘Eclipse', ‘Bêjo di Sôdade' e tantas outras mornas. Não é necessária uma exaustiva pesquisa para perceber que se trata de um dos maiores vultos da música tradicional de Cabo Verde.

A sua criação remonta aos anos 30 e, apesar de clássica, é completamente revolucionária em relação às mornas do seu antecessor, Eugénio Tavares.

Mais meio-tom e a sonoridade ganhou uma riqueza nova e inconfundível. Meio-tom, acorde de passagem antes inexistente na morna. Meio-tom influenciado, dizem os homens da cultura como Moacyr Rodrigues, pela sua paixão pela América do Sul e tudo o que de lá se produzia culturalmente. Algo ainda mais revolucionário, se compreendermos que se tratava de uma época em que apenas se poderia consumir nas ilhas o que passava pelo crivo da censura portuguesa, que tudo fazia para evitar o poder criativo das colónias. O que não sabiam os portugueses, nessa altura, é que apesar de proibido, Jorge Amado chegava a São Vicente com frequência através dos seus livros. A ilha sempre foi favorecida pelo seu grande e movimentado Porto, por onde chegavam obras brasileiras e outras, acabadas de editar, além de acordes das suas quentes melodias, apresentadas aos sanvicentinos pelos marinheiros e suas violas de bordo.

Assim descobrimos, à conversa com Leão Lopes, um B.Leza "claridoso de referência", antropólogo, além de autor, poeta e compositor "que criou uma nova estética para a morna em especial". Um B.leza tio com uma diva como sobrinha. Cesária Évora que levou as suas mornas, da zona do Lombo em São Vicente, para os palcos mundiais, onde ainda hoje, oito décadas depois, continuam a encantar cidadãos do mundo, que se deleitam com a voz de Cesária, sem perceber sequer, salvas raras excepções, uma palavra do que ela canta.

Segundo Leão Lopes, a nossa fonte, "vinte e tal anos tinham eles, Baltazar Lopes, Jorge Barbosa, Manuel Lopes ou B.Leza - que não foi um dos precursores mas também fez parte do Movimento - quando escreveram os primeiros textos", driblando os, aparentemente mais letrados, censores portugueses.

Na verdade, Mindelo não ‘pariu' todos os seus intelectuais, vinham de todas as ilhas, Jorge Barbosa era natural de Santiago e, Baltazar Lopes da Silva de São Nicolau, como de resto se sabe. Juntaram-se no Mindelo porque " o liceu, denominado ‘Liceu Nacional Infante D.Henrique' que em 1936 tinha 366 matriculados, tinha sede nesta cidade[...] Famílias de todo o arquipélago com possibilidades económicas mandavam os seus filhos estudar em São Vicente", lê-se na obra: Linhas Gerais da História do Desenvolvimento Urbano da Cidade do Mindelo.

"Muitos deles não nasceram aqui, fizeram-se aqui, hoje não reconhecemos muito isso porque intelectualmente já não se tem a força daquela juventude. São Vicente era uma cidade cosmopolita, aberta, culta. As pessoas lidavam com os grandes intelectuais na rua, B.Leza tocava em qualquer sítio", afirma Leão Lopes.

A sua paixão pelas ilhas ingratas

A pujança e o vigor dos Claridosos, infelizmente, já não nos contagia a nós, jovens actualmente na mesma faixa etária. A opinião e a crítica são do realizador.

"Hoje há um vazio no nosso sistema, a educação dos sentidos a inteligência perceptiva não existe e isto reflecte-se na juventude de hoje que está sendo prejudicada em termos educativos porque não se investe no essencial da sua educação. Temos um conhecimento estéril, vazio, que não constrói um cidadão completo na sua capacidade de perceber e de intervir e a sociedade acaba por reflectir isso."

Assim, podemos dizer que São Vicente tornou-se estéril em criadores desse gabarito e também estéril em defensores da sua cultura. Talvez por isso, já nada se faça para assinalar datas tão importantes como essa. Hoje, 110 anos depois, mera efeméride, nem tertúlia, nem concerto, nem palestra, nada se fez!

«O ‘menino do Lombo, rapaz de soncent, Frank de Nha Rosa, sport de cinema, rascon e boémio» como lhe chamou Brito Semedo, doutor em Antropologia, num texto que escreveu em sua homenagem não lembrou a Mindelo o seu aniversário.

Nascido e criado nesta ilha e que, um dia teve a pretensão de ajudar Churchill e os Aliados a ganhar a guerra a Hitler. Uma morna, ‘Hitler ca ta ganha guerra, ni nada', não foi suficiente. Por isso, resolveu B.Leza organizar uma colecta para angariar fundos e ajudar a Inglaterra a comprar um avião. Conta-nos, entre risos, Leão Lopes. "O dinheiro obviamente que não chegou para um avião, mas há documentos que provam que os valores chegaram ao destino e que a Inglaterra agradeceu". Tudo isso fizeram os colonizados mas, livres de espírito, tomando partido pelos Aliados, apesar de em Portugal, Salazar procurar manter-se imparcial, na ‘corda bamba', como se costuma dizer.

O mesmo B.leza que em 1940, em Lisboa, ousou desafiar o regime quando juntamente com um grupo de músicos cabo-verdianos, que lá iam participar da segunda Exposição do Mundo Português, ameaçou que a comitiva regressaria a Cabo Verde de imediato, caso não trocassem as palhotas que compunham o pavilhão dedicado ao arquipélago "por casas, como as que existiam em Cabo Verde". Desta vez, o contador de História é Joaquim Saial, mestre em História da Arte, pela Universidade Nova de Lisboa. Com Saial descobrimos um B.Leza corajoso, interventivo e defensor destas ilhas.

Assim, dizer que foi este o criador de mornas que ainda hoje embalam as nossas histórias de amor, a nossa saudade, a partir da diáspora ou a nossa vontade de chegar é pouco.

Novos ritmos e estilos musicais são criados quase que diariamente, arriscamos dizer, muitas vezes melodicamente ocas, ainda não se conseguiu superar o trabalho daqueles que criaram em meados dos Anos 30. Por isso, e como escreveu Manuel d'Novas e cantou Ildo Lobo, "si bô ka krê uvi morna..., muzca rainha di nôs terra..., rancá bõ bai bô tcham li..."Deixa-nos a nós ficar neste Cabo Verde, suave e doce.

Suave, doce e ingrato que deixou de saudar quem, como B.leza, continua a levar o nome de Cabo Verde para o mundo e a colocar os seus estéreis dez grãozinhos no mapa.

 

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Autoria:Susana Rendall Rocha,11 dez 2010 23:00

Editado porExpresso das Ilhas  em  11 dez 2010 23:00

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