Quando Kay chega pensamos, "ok, vamos afinar o inglês que é para conseguirmos comunicar". Não foi preciso. Logo nas primeiras palavras o português sai-lhe claro, fruto de estudo e imersão na língua.
Há uns anos entrou num programa de intercâmbio universitário, semelhante ao Erasmus, e foi estudar para Coimbra. Foi aí que aperfeiçoou o português e conheceu a língua cabo-verdiana, que diz ainda estar a aprender.
"O meu primeiro contacto com os cabo-verdianos aconteceu quando estava a estudar em Coimbra, porque a comunidade cabo-verdiana, lá, é bastante grande. Eles falavam em crioulo e eu não percebia nada. Comecei, então, a ter interesse na língua crioula de Cabo Verde."
Desse interesse surgiu o tema da tese de licenciatura em Estudos Linguísticos e Cultura Luso-Brasileira, que versou, pois, sobre a língua materna do arquipélago.
Escreveu a tese, mas percebeu que a sua abordagem era um pouco limitada.
"Faltava muita coisa na tese a nível da cultura cabo-verdiana, porque acho que a alma de Cabo Verde tem muito a ver com a música. Depois, percebi que a literatura e a música têm uma grande ligação, mas ainda não sei especificar mais". Por isso, veio estudar o fenómeno in loco.
É a primeira vez que este japonês, filho de mãe inglesa, visita o arquipélago. A viagem de um mês, é dividida equitativamente pelas ilhas de Santiago e de São Vicente.
"Como o tema da minha tese de mestrado é a cultura cabo-verdiana, sobretudo a música e a literatura, vim a Cabo Verde para fazer o estudo de campo, encontrar os músicos e outras pessoas para poder ter conselhos para escrever a tese", explica. Escolheu estas duas ilhas pois considera serem as mais importantes.
O nosso encontro com Kay ocorreu antes do mestrando, de 23 anos, ter partido para São Vicente. Na altura, tinha já visitado a Cidade Velha e tencionava visitar o interior da ilha.
A sua passagem pela Praia, foi marcada pelo encontro com escritores, jornalistas, sociólogos e estudantes.
Encontros bastantes informais que a morabeza cabo-verdiana acolhe com prazer. Mas Kay quer também falar com as pessoas mais humildes, o povo, para tentar perceber o que leva a que, em Cabo Verde, se cante o que se canta e como se canta.
No início, o estudo iria assentar na morna, mas aqui descobriu outros géneros representativos da identidade cabo-verdiana.
Para além da morna
A sua introdução à morna (em Coimbra) foi feita, como tantos outros, com Cesária Évora, que infelizmente já não poderá entrevistar. Não conseguia perceber o que aquela Senhora de pés descalços cantava, mas sentiu.
E quando começou a "entender pouco a pouco a língua crioula" percebeu melhor o que a morna conta.
"Conta a história de Cabo Verde e o sentimento, a morabeza, a criolidade". Tudo isto está presente na morna. "Quando ouvi, senti um arder lento", a tristeza, a saudade e a alegria a par e passo.
"Acho que é a morna é uma maneira de viver. Não é só cantar. A música é uma matéria para poder sobreviver", analisa.
Na sua deambulação por Santiago, descobriu no entanto que há muito mais para além da morna e que terá de alargar o seu especto inicial de estudo.
"No início estava a pensa abordar só o domínio da morna, mas vim aqui, falei com as pessoas e percebi que não existe só a morna, tenho que abarcar todos os géneros", confessa.
E quer também sair do espectro dos interpretes e autores conhecidos internacionalmente e estudar os músicos que residem nas ilhas.
A questão da miscigenação, devido à sua importância na formação da identidade cabo-verdiana, deverá também ser abordada na sua tese.
Segundo o estudante, a música reveste-se de extrema importância na concretização da identidade cabo-verdiana, e concretiza a própria geografia. Situado entre a África, a Europa e o Brasil (América), Cabo Verde soube usar esta "mistura". "A miscigenação, o concretismo tornam-se a cultura de Cabo Verde é uma ferramenta para viver. E isto é importante".
Primeiras impressões
Kay revela que no espaço de uma semana conseguiu "sentir" a cultura cabo-verdiana, através, por exemplo, da comida, da língua no dia-a-dia e do modo de viver.
Em análise retrospectiva à primeira impressão que teve do país, refere que já tinha algum background, adquirido nomeadamente com os livros da linguista francesa Nicolas Quint e com as mornas, mas como foi a primeira visita, há sempre alguma surpresa.
A ideia romantizada de encontrar pessoas a tocar violão e a cantar a cada esquina, a cada rua, desvaneceu-se.
"Mas ainda não vi muitas cidades e não posso dizer nada sobre isso", salvaguarda.
Sobre a língua, que já estudou e poderá voltar a ser objecto da sua pesquisa noutras oportunidades, defende que é importante que se passe da oralidade à escrita porque é uma "língua rica", cujas diferenças devem ser pensadas em termos de dialecto.
"Não é só a cultura cabo-verdiana que é rica, a própria língua também o é", salienta.
Nascido em Ibaraqui perto de Tóquio, Kay fez a licenciatura em Quioto. E é também lá, na Universidade de Estudos Estrangeiros, que dentro de aproximadamente um ano deverá entregar a sua tese de mestrado. Uma tese sobre um país cuja cultura não é muito conhecida no Japão.
Se tiver oportunidade, voltará ao arquipélago para tentar visitar outra ilhas, garante.