Kriol Jazz Festival : Todos os caminhos vão dar à música

PorSara Almeida,11 abr 2014 15:29

 

Chegado à sua sexta edição, o Kriol Jazz Festival apresenta mais um cartaz de excelência, numa altura em que a Praia se torna numa das capitais internacionais da música. A aposta continua a ser na fusão e no encontro, essência crioula que dá o nome ao evento.

 

Nesta semana de Abril, o centro da cidade da Praia fervilha. Os hotéis estão cheios, assim como os restaurantes. Há música em cada esquina e dezenas de estrangeiros, muitos deles profissionais da música, param a ouvir os ritmos de Cabo Verde. Vieram para o grande momento World Music que começa com a Atlantic Music Expo (AME) e termina com o Kriol Jazz Festival (KJF).

Nessa altura poderão verificar por que é que este festival, organizado pela Câmara Municipal da Praia (CMP), em parceria com a Harmonia Lda, ocupa um lugar no top 25 de festivais de World Music da revista inglesa Songlines.

 “Fico contente [com essa posição]. É sinal de que já se está bem [visto]. Mas eu não sei o que isso significa concretamente”, pondera António Lopes da Silva, vereador do pelouro da cultura da CMP. “O que eu sei é que as pessoas estão a falar [do festival] e que este está a ganhar projecção”, tanto a nível de Cabo verde, com pessoas a afluírem de outras ilhas, como do estrangeiro.

“Há pessoas que telefonam, recebemos cartas do mundo inteiro com artistas que querem participar, mandam CDs” com os seus trabalhos. “E isso é que é importante”.

A maior gratificação, diz este responsável é saber que as pessoas descobrem que há “uma pequena cidade, no meio do Oceano Atlântico, chamada cidade da Praia” e pensam ‘um dia vou a essa cidade e vou conhecer Cabo Verde’.

O evento insere-se assim, em termos estratégicos da CMP, na aposta de um turismo voltado para serviços e eventos, com visitantes que venham e tragam algum lucro.

Mas trata-se aqui de algo mais do que dinheiro. Nestes eventos “O mais importante é o encontro com as pessoas, com formas de ver diferentes. Aí é que nós ganhamos mais”.

 

A periferia

 

Em relação a esta IV edição em concreto, o KJF começou com um evento, descentralizado no espaço e no tempo. No tempo, uma vez que teve lugar já no passado sábado, dia 5, com um interregno de vários dias do resto do festival, enquanto decorre o AME.

Descentralizado no espaço, pois, pela primeira vez, abandonou a zona histórica e teve lugar num outro bairro.

“Quem conhece a história do jazz sabe que o jazz veio das periferias para os centros. Hoje está nos centros do mundo, mas nós queremos também que o jazz volte para a periferia e seja escutado pelos jovens dos bairros periféricos”, explica António Lopes da Silva.

“O que queremos é levar boa música para as pessoas”, que muitas vezes desconhecem ou não têm acesso a este tipo de sonoridades, especifica.

Assim, o primeiro dia de festival, gratuito como é já tradição, teve lugar no bairro de Achada de Santo António, o mais populoso da cidade, e o balanço é positivo. A iniciativa é assim para manter nas próximas edições, de preferência de forma itinerante, por diferentes bairros.

 

Festival de fusões

 

O KJF (re)começa então amanhã, 10 de Abril, com um espectáculo reservado apenas a convidados, na Assembleia Nacional, e que marca simultaneamente o encerramento da AME e o início deste Festival de Jazz Crioulo.

Nesse concerto, sobem ao palco o cantor e compositor cabo-verdiano Tcheka, cujo talento é cada vez mais reconhecido, aqui numa actuação com Maya Kamaty, da Ilha da Reunião. As canções desta artista, lê-se na apresentação institucional, são uma “mistura entre a maloya tradicional e a música contemporânea francesa”.

Segue-se o The Ron Savage Trio, que chega da Berklee College of Music. Jazz, gospel, afro-brasileira e soul vão misturar-se em palco numa performance que inclui ainda artistas convidados da Berklee.

Por fim, “vamos ter a Cesária Évora Orchestra”, uma “ideia extraordinária do Djô da Silva”, nas palavras do vereador da cultura da CMP, de juntar em palco vários músicos que tocaram com a Diva. Nancy Vieira e Jenifer Soledade dão a voz a este projecto.

No dia 11, o KJF regressa ao habitual palco da Praça Camões, para mais uma noite de grandes concertos. A começar, um jazzman cabo-verdiano em fusão com uma jazzwoman também crioula: guitarrista praiense Carlos Mendes e Candida Rose”, cantora jazz americana, descente de cabo-verdianos.  Os dois vão “ligar-se” em palco, “mas já começaram a fazê-lo, um no Porto, outra nos EUA, através das novas tecnologias”, conta Lopes da Silva.

Segue-se um grande nome da música, conhecido com o Bob Dylan africano. Comparações à parte, o senegalês Ismael Lo, revolucionou o som tradicional da M´balax, numa fusão folk e blues, apreciada por um vasto público em todo o mundo. Depois, do Mali, chega outro músico reconhecido, Habit Koite, que “toca guitarra de forma única”.

A noite encerra com Bonga, que dispensa apresentações. “Toda a gente já conhece o Bonga, angolano, que também já cantou muitas músicas cabo-verdianas, até mesmo com a Cesária Évora”, salienta António Lopes da Silva.

“No segundo dia [12] começamos com uma senhora também especial: a Sara Tavares”. Uma mulher de força com uma “voz maravilhosa”, bastante querida pelos cabo-verdianos.

Com um percurso invejável e internacionalmente reconhecidos, chegam depois, ao palco KJF, em concertos separados, o dois homens do jazz: Monty Alexander e Kenny Garret. 

A noite encerra com Chico César, e as suas músicas “extraordinárias”. “Um homem que canta e vê a música africana como uma referência para as criações”. Além de músico é um poeta de mérito e Secretário de Cultura do Estado da Paraíba (Brasil).

Em ambos os dias, os concertos da Pracinha são seguidos das já habituais Jam Session, como “objectivo de promover o encontro, a cooperação, essa fusão [entre artistas cabo-verdianos e estrangeiros]. Ao vivo”. Este ano as sessões têm lugar no Freedom Ecologic Beach Club, em Chã d´Areia.

 

 

Morgadinho, o homenageado

 

Todos os anos o KJF homenageia um artista. À lista de homenageados, onde estão já Horace Silver, Codé di Dona, Cesária Évora e Manuel Clarinete, junta-se este ano Morgadinho, do grupo “Voz de Cabo Verde”.

“É um grupo musical que fez história”. O primeiro a usar guitarra eléctrica, e também o “primeiro que conseguiu ultrapassar as fronteiras de Cabo Verde.” Morgadinho foi seu “fundador e elemento preponderante, quer a nível de interpretação instrumental e de voz, quer a nível da sua mística”, elogia o vereador.

 “Acho que fizemos uma escolha óptima”, considera o vereador. E pela primeira vez o evento vai poder contar com a presença do seu homenageado.

 

 

Contribua, comprando

 

O cartaz desta VI edição do KJF faz jus à fama que o evento tem junto ao público leigo e entendido. Mas manter o nível de qualidade “não é fácil”, confessa o vereador da Cultura. 

O KJF tem um orçamento de 20 mil contos, dos quais 10 mil são garantidos pela CMP, e mil são doados pela Cabivel, que apoia o município neste evento.

“O restante, a Harmonia [parceira privada e produtora do evento] vai procurar, através de parceiros e apoios. Está a ser muito difícil”, adianta Lopes da Silva.

Neste momento, o festival tem mesmo um saldo negativo de cerca de dois mil contos, que se espera vir a repor com a venda de bilhetes. Contudo há, por parte do público e por sistema, a tentativa de arranjar os bilhetes de forma gratuita mesmo entre as pessoas que têm posses.

Contra isso, não só foram dadas indicações para controlo dos bilhetes oferecidos, como é feito um apelo aos praienses e pessoas que se encontram na Praia: “Comprem o bilhete e ajudem a continuar com esse grande festival, porque não se pode continuar a perder dinheiro.”

As perdas, diz o vereador, nem dizem aqui respeito à CMP, uma vez que se trata aqui de um investimento na cidade, mas à Harmonia que, sendo uma empresa, “não pode estar consecutivamente a perder dinheiro”.

“ “A única forma de apoiar é comprando o bilhete”, reitera.

 

“É preciso mais formação musical e menos basofaria”

 

A música de Cabo Verde tem-se assumido como o “produto principal” do país e a sua riqueza e potencialidade anda na boca de todos. No entanto, para António Lopes da Silva, esse reconhecido potencial não está a ser devidamente aproveitado nem trabalhado. O que sobra em discursos inflamados, falta na aplicação prática de um ensino que promova a qualidade dos músicos. “Enquanto não construirmos aqui um conservatório musical, andamos a brincar”, afirma.

“Fala-se que se quer que Cabo Verde seja uma referência a nível musical.E eu acredito que Cabo Verde tem potencialidade para ser um país de música, que a nossa música seja de facto o nosso produto número um, já o é, mas é preciso trabalhar nisso, não podemos ficar só pelos discursos”, diz.

Para o vereador do pelouro da Cultura da CMP, é de suma importância a criação de um conservatório musical, que seja um projecto pensado a nível do país. Até porque, considera, com “pequenas escolinhas não se resolve nada”.

Um outro aspecto importante que contribui para a falta de formação na área musical, em Cabo Verde, é o facto da educação musical não estar especificamente contemplada no currículo escolar. A nível do Ensino Básico há a área de Expressões que inclui a música, mas de forma diluída, no meio de áreas como o teatro, a expressão plástica, motora, e afins. No secundário, nem sequer está presente, aponta.

Os responsáveis políticos têm falado, amiúde e de forma “empolgada”, de trabalhar para que a música cabo-verdiana atinja um alto nível. Mas pouco está a ser feito, pois, na formação.

“Se não se fizer isso, por mais que se façam discursos bonitos empolgados, [a conversa da música] é apenas basofaria”, diz.

Não basta dizer que se é bom, é preciso sê-lo de facto. E a corroborar as suas palavras, diz o dito popular que o bom artista é feito de 98% de esforço e trabalho e 2% de talento.

 

Trocas de experiência

 

Onde entra o KJF no meio desta conversa de profissionalização da música cabo-verdiana? Na realidade há dois alvos no conceito por detrás do KJF: por um lado, o público em geral, que assiste aos concertos, por outro, os próprios artistas nacionais. Aos primeiros quer-se dar um espectáculo de referência, aos segundos quer-se abrir oportunidades, a nível de visibilidade e também em termos de aprendizagem.

O Atlantic Music Expo, que antecede o festival, veio assumir, em larga e maior escala, esse papel de promoção e formação dos músicos.

“O que está a acontecer no AME -  workshops e encontros - já vinha do KJF, sempre fizemos isso”, recorda o vereador.

Agora, estes dois eventos dedicados à música complementam-se e a articulação entre os dois tem sido positiva, um sucesso que passa pelo facto de ambas as iniciativas terem o mesmo parceiro de peso, a Harmonia, empresa do muito experiente produtor Djô da Silva.

No entanto, a Câmara seja a título individual, seja no âmbito do KJF, seja como participante do AME, continua a apostar nesse seu “outro” objectivo.

“Por isso é que trouxemos o Dawaun Parker [ver entrevista nesta edição], vencedor de três Grammys, que é para ele conversar com os artistas cabo-verdianos e estes verem como é difícil conseguir ter sucesso”, justifica Lopes da Silva.

“Para nós é importante que essas pessoas [do mundo da música] falem com os nossos artistas, para que eles estudem, trabalhem, e para que comecem a exigir que as instituições ou quem tenha essas competências, criem escolas de referência musical, em articulação com boas escolas a nível mundial”, acrescenta.

Além disso, há ainda o convívio informal das Jam Sessions do KJF que servem também para dar “aos nossos músicos a noção de que é necessário trabalhar muito para chegar ao nível dos outros, ver as nossas limitações”.

 

Bolsa Berklee College of Music

 

A história da relação entre a Berklee College of Music (BCM)- “maior faculdade independente de música do mundo” – e o município da Praia começou de forma quase informal,  com a visita do Presidente da CMP a Boston (EUA), onde a faculdade está sediada. O edil, Ulisses Correia e Silva, acabou por visitar a instituição, primeira escola americana a ensinar géneros alternativos como o jazz, e lançaram-se os primeiros contactos para uma ”boa” relação.

Em 2013, a CMP convidou representantes da escola a visitar a cidade da Praia, por altura do AME e do KJF, “mas não no âmbito destes eventos”, apesar de terem participado nas actividades musicais.

Este ano o convite repetiu-se e faculdade trouxe não só artistas para participarem nos dois eventos, como com vista ao apoio à formação de jovens músicos. Falamos nomeadamente de Ron Savage, Dawaun Parker e do director dos Programas Internacionais da BCM, Jason Camelio.

Nesse âmbito, António Lopes da Silva avança que um dos objectivos em mente é criar uma academia KJF, que evolva a CMP, a Harmonia e a BCM e que pode ser uma “grande contribuição” para os músicos nacionais, em termos de formação.

Entretanto, a Berklee vai atribuir uma bolsa de estudos anual a jovens promessas cabo-verdianas. Os boletins de inscrição para candidatura a esta bolsa de verão, com duração de cinco semanas, estão disponíveis no stand da Câmara, no AME e a selecção do jovem talento será feita numa audição, durante o próximo fim-de-semana, perante um júri de elementos da faculdade.

Apesar de ser uma novidade, a verdade é que já no ano passado uma cantora cabo-verdiana usufruiu de uma bolsa da BCM. Xiomara Barbosa, conhecida do grande público pela sua participação no programa Talentu Strela, impressionou os representantes da escola, que se encontravam em Cabo Verde a convite da CMP, e foi seleccionada para uma bolsa de Verão.  A experiência correu bem, e a jovem cantora conseguiu apoio para continuar a sua estadia e formação nos EUA.

“Nós gostaríamos que ela viesse este ano para o KJF, para que se visse os frutos desta cooperação”, entre a CMP e a aquela faculdade. Mas tal não foi possível, acrescenta António Lopes da Silva.

 

 

 

 

Concorda? Discorda? Dê-nos a sua opinião. Comente ou partilhe este artigo.

Autoria:Sara Almeida,11 abr 2014 15:29

Editado porSara Almeida  em  12 abr 2014 14:17

pub.
pub
pub.

Rotating GIF Banner

Últimas no site

    Últimas na secção

      Populares na secção

        Populares no site

          pub.